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“O povo que espere!”

No fim do texto “Sambroera em Aurélio”, lido na apresentação de As Hienas Também Sorriem, o professor José Teixeira considera que, a par de Aurélio Furdela, os escritores moçambicanos não precisam de ser aplaudidos pela sua produção, mas os seus livros devem ser lidos urgentemente. No entanto, o escritor – cuja obra capta as peripécias do Moçambique pós-independência – explica que “escrevi o livro com um sentido de oportunidade histórica”. Lendo-se a obra percebe-se que se está diante de uma série de denúncias – contra as atrocidades e fraquezas humanas – feitas por um homem preocupado com os problemas da sua época. O que fundamenta esta posição?

Uma pista em direcção aos desvios sociais, até certo ponto estruturados por um sistema de governação, no país, os quais consolidam a constatação de que Furdela escreveu um livro de denúncias encontra-se no comentário de Mbate Pedro que, no prefácio da obra, escreve: “As Hienas Também Sorriem é a cómica imagem, a metáfora cruel, do mundo amorfo em que vivemos, em que, quando a justiça não consegue condenar os ladrões e corruptos, defende-os e eleva-os à categoria de Doutores deputados”.

Na verdade, “o negócio da venda de carros roubados na terra do Rand tinha-lhe atraído a cobiça, juntando-o, assim, a quatro outros patifes”, reporta-se na crónica de Furdela referindo-se ao deputado Sebastião Costa Zimba, o corrupto.

Diante do que se expõe, ao leitor vontade não falta – e essa é a questão premente – de questionar a origem dos nossos deputados, os tais defensores dos interesses do povo, muito em particular quando esta figura reconhece que 30 anos depois de em 1983 se verificar um período de muita fome em Moçambique, nesta segunda dezena do século XXI há lugares no país onde as pessoas morrem do mesmo mal. E o deputado, impávido, simplesmente considera que “Cada qual tem o seu 83. O mais importante agora é resolver os problemas de quem trabalha para o povo. O povo que espere!” (Sic.).

Uma vida de zumbies

Ora, tomando a precariedade do sistema de saneamento da cidade de Maputo como exemplo, sobretudo sempre que chove, a impressão que fica é de que as entidades a quem se confiou, por meio do voto, o governo dos seus destinos, preterem o povo para satisfazerem os seus interesses individuais.

Se for citadino desta urbe, o estimado leitor irá convir que (mesmo no centro da cidade de Maputo) sempre que chove a situação torna-se um caos. É nesse sentido que na terceira crónica do livro, Pescando o Meu Filho, Furdela capitaliza o subúrbio que pouco difere da urbe para recordar-nos de que “toda a extensão do bairro, mergulhada numa maré de água e dejectos, a escaparem das latrinas levando a passear, pelos becos do bairro, os vermes e toda a ordem de germes que se misturam com as nossas vidas de zumbies” (Sic).

No entanto, para contextualizar o momento actual, o texto de Furdela é multitemático. Nele encontramos colectividades ou representações sociais reais, como é o caso dos desmobilizados de guerra e dos madjermane sobre quem se pensa que “ lhes vão acabar a dívida, deixando-os morrer um a um até ao último centavo!” Aliás, nessa discussão, esta constatação tem o seu sentido. Afinal “a fila dos madjermane está a diminuir cada vez mais, nas manifestações” (Sic).

É também nesse subúrbio sublimado pelo autor onde coabitam estes grupos sociais oprimidos. E aqui a opressão não é interpretada, necessariamente, como fruto da acção de alguém. Mas também da sua inacção. Por exemplo, naquele dia, “as gotas começaram a cair do céu, acumulando-se no quintal, depois nas ruas, onde o demorado e primitivo processo de evaporação natural das águas ainda não foi substituído pela vala de drenagem”.

Tal como se descreve no livro, para o dito pai, aquele dia de chuva mantém-se imemorável. E não faltam argumentos: “Às apalpadelas, busquei um pedaço de rede mosquiteira, daquelas de esticar sobre a cama. Lancei-a à água, para aqui, para lá, e consegui, finalmente, pescar o meu filho” morto.

Enquanto o tragédia desta natureza ocorria, o autor escreve que “A Rádio transmitia (…) uma notícia de louvores a um grupo de deputados que apoiavam, algures, nos subúrbios da cidade, outras vítimas das enxurradas distribuindo pacotes de bolachas e rebuçados às crianças”.

 

O que se diz sobre o autor

Mbate Pedro, um leitor atento da obra de Furdela, afirma que “o essencial da escrita Furdeliana encontra-se, creio, no estilo profundamente satírico e mordaz, já apurado em O Golo que Meteu o Árbitro, acabando por dar aos seus textos uma qualidade espacial, como se o mar fosse salgar os pés à praia”. De qualquer modo, será na ausência de um respeito sagrado e de uma angústia, reforçados por “uma permanente provocação em relação ao mundo espiritual, às sombras, às trevas, aos intervenientes” que surpreendem José Teixeira nessa obra.

Ainda que na produção artística comparações que nos mostram evolução e/ou regressão não se façam, diante de As Hienas Também Sorriem, José Teixeira afirma que “algo de muito profundo mudou pois agora à anterior ironia sucede, às vezes, o sarcasmo até rude sem cerimónias”.

Alinha-se a produção de Furdela no mesmo patamar que os livros Nós Matámos o Cão Tinhoso, Ualalapi, Nghamula, O Olho de Herzog, de Luís Bernardo Honwana, Ungulani Ba Ka Khosa e João Paulo Borges Coelho, respectivamente, a fim de que se afirme que “é também nestas Hienas Furdelianas que encontramos a marca totalmente actual da literatura moçambicana destes tempos”.

Se os argumentos apresentados neste texto não atraem o leitor, há que se ler As Hienas Também Sorriem, mesmo que seja para que se perceba, no contexto moçambicano, o que pode mover um homem – que tenha trabalhado por muitos anos – a abdicar do seu direito de reformar. Ou, no fim, para que se irritem com o sarcasmo com que o autor, no texto Doutor Seringas e a Burra que Sabia, provoca a moralidade dominante, sobretudo a instituída pelo Criador.

As Hienas Também Sorriem, livro que ostenta uma cor castanha com uma iconografia de um homem sentado a reparar o sapato, foi chancelado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, organização em que o escritor é membro efectivo e de direcção. A sua publicação é financiada pelo FUNDAC.

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