O quotidiano do Jardim dos “Madgermanes” é um testemunho exemplar da luta pela sobrevivência do povo moçambicano: uma multidão de vendedores ambulantes expõe quinquilharia chinesa, sapatos, roupas, carregadores de telemóvel, artesanato, relógios, laranjas, castanha de caju, etc. É uma atmosfera que revela a vitalidade da economia informal, sustento de grande número de famílias moçambicanas, e que confere ao dia-a-dia do famoso jardim uma animação permanente.
“Ei boss! Olha só para preciar, só para dar golpe de vista…”. Nem a indiferença da nossa equipa de reportagem consegue apagar a esperança e a persistência dos vendedores. À entrada do jardim passámos por velhos mendigos que estendem as palmas das mãos vincadas por fundos sulcos e no interior encontrámos crianças andrajosas de olhos tristes suspensas num baloiço que, na verdade, é um autêntico atentado à integridade física dos utentes daquele espaço. Ainda assim, estas flores que nunca murcham brincam, todos os dias, à sombra de árvores decrépitas, pelo excesso de urina, com moscas a passearemlhes sobre as carinhas sem sonhos.
São 12 horas e os trabalhadores acocoram-se junto aos bancos que já não existem para restabelecer energias para mais um período de trabalho. Ao largo cães pelados que parecem inteiramente feitos de ossos deambulam. Agrilhoado num canto, o urinol, com a inscrição ‘base central dos madgermanes’, é uma figura solitária e estranhamente singela. À beira do urinol pequenos órfãos, a que em Maputo é comum chamar molwenes, vagueiam como anões irados e os trabalhadores deixam para trás os restos do seu almoço que agora vão servir de alimento para os filhos da rua.
Depois de termos feito uma ronda pelo recinto conversámos com a chefe da feira do Jardim da Liberdade, Dona Missibay Issufo Daúdo Mala, uma senhora receptiva e conversadora. A chefe dos feirantes explicou- nos que o comércio informal naquele recinto é exercido há sensivelmente quatro anos, com a anuência do Concelho Municipal à luz da resolução 3/ AM/2005, de 15 de Dezembro que regula o exercício da actividade comercial através de feiras em recintos abertos e via pública. Na mesma resolução, o município estabelece o valor de mil meticais/mês por cada feirante ou 10 meticais/dia. O dispositivo orienta ainda que o comércio deve ser feito em quatro dias por semana, nomeadamente terças, quartas, sextas e sábados, das 6 às 17 horas.
Esta resolução, que autoriza o exercício de feiras comerciais nas áreas pavimentadas e em passeios, estabelece a venda de calçado, roupas, cintos, pastas de viagem, quinquilharia diversa, excluindo produtos perecíveis. “Estamos aqui com a autorização do município. Querem aliviar o exercício do comércio ambulatório na baixa e em outros lugares não admissíveis. Nós gerimos o jardim”, gaba-se.
Questionada pela nossa redacção sobre se o Concelho Municipal atribuía alguma verba para o efeito, Missibay respondeu: “Não! Nós somos um conjunto de 190 feirantes, contribuímos com algum valor para a compra de vassouras e outros instrumentos de limpeza”. A nossa interlocutora mostrou- se, a dado passo, indignada com o facto de a edilidade não cobrar a taxa devida, situação que remete a uma certa insegurança no que respeita ao futuro da sua actividade naquele espaço.
“Não estamos confiantes, o Concelho Municipal não nos cobra nada, significa que qualquer dia vamos ser obrigados a sair deste lugar”. Ainda relacionado com este assunto, Missibay refere que “se o conselho municipal assim o desejar nós (feirantes) podemos fazer as cobranças e canalizar para a edilidade, o que não queremos é viver sem pagar”. Com o negócio de pastas, sapatos, roupas entre outros já referidos, cada feirante arrecada, em média, 1500 meticais/dia.
Outrora
O Jardim dos Madgermanes, segundo moradores das redondezas, já foi um cartão de visitas e de lazer para turistas e nacionais. Hoje virou uma babilónia. Salomé Zaqueu, de 52 anos, mora nos arredores e conta que “na minha juventude isto estava lindo, estava verde, respirava vida. Hoje virou naquilo que estão a ver. Apesar de possuir urinóis, estamos perante árvores a murcharem por causa do ácido da urina, para além da onda de assaltos que acontecem muitas vezes, à calada da noite”.
Outro residente que se identificou por Jota C, lamenta a marginalização daquele recinto que se localiza numa das principais zonas da nossa cidade. “O Jardim dos Madgermanes devia ser um dos espelhos da nossa cidade, como acontece com os outros na cidade do Maputo. Quem vem de fora passa pela 24 de Julho, para ter acesso a vários destinos da cidade de Maputo.”
Violação da postura municipal
Como acima referimos, a postura municipal estipula a venda de produtos não perecíveis. No entanto, no Jardim dos Madgermanes vende-se muito mais do que o município estabelece. Naquela tarde, por volta das 13 horas, duas senhoras carregadas de panelas de arroz e feijão irromperam pelo jardim adentro e logo uma procissão de tigelas seguiu no seu encalço.
Os pratos são transaccionados a preços que partem dos 20 meticais sem, contudo, ultrapassarem a barreira dos 30. Para o pequeno-almoço os preços oscilam entre 10 e 20 meticais. A ementa é quase sempre a mesma: arroz com feijão, arroz com guisado de frango, arroz com carne de vaca e arroz com carapau. Quanto ao desrespeito pela postura Missibay franze o olho e diz: “A vida é difícil.”
Os milhões que o município perde
O município não cobra os mil meticais por feirante que a postura estabelece. Olhando para o número de feirantes (190), estamos a falar de 2.280.000 meticais por ano. Efectivamente, o município perdeu, até Junho deste ano, 3.420.000 meticais em cerca de ano e meio. Feitas contas ao alto, com este montante seria possível fazer a manutenção e a reabilitação parcial do jardim.
Porquê Jardim da Liberdade ou 28 de Maio No dia 28 de Maio de 1926, em Portugal, desencadeiase um golpe protagonizado pelo então designado “Movimento de Maio”, que também ostentava o nome de revolução nacionalista e antiparlamentar que pôs termo à primeira República Portuguesa. Este movimento levou à implantação da autodenominada ditadura nacional, depois transformada, após a ratificação da constituição de 1933, em Estado Novo.
Este regime manteve-se em Portugal até à revolução dos cravos, de 25 de Abril de 1974. O movimento começou em Braga, comandado pelo general Gomes da Costa sendo seguido de imediato em outras cidades como Porto, Lisboa, Évora, Coimbra e Santarém. Consumado o triunfo, a 6 de Junho de 1926, na avenida da Liberdade, em Lisboa, Gomes da Costa desfila à frente de 15 mil homens, sendo aclamado pelo povo da capital, daí, em homenagem a este dia inesquecível para o povo luso se tenha atribuído o nome de Jardim da Liberdade (nome colonial que se mantém até hoje).
Refira-se uma grande parte dos que conhecem a história colonial daquele espaço prefere usar a designação Jardim 28 de Maio