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Xivanene: uma lagoa ignorada e desprezada

Xivanene: uma lagoa ignorada e desprezada

Depois da nossa revolta contra os mangais – desnecessários – que infestam a nossa baía, tornando-a um matagal, agora volta a descer sobre o nosso sentido do belo a mesma dor. Xivanene, uma lagoa secular que guarda lendas, situada nos arredores da cidade de Inhambane, à ilharga do aeródromo, está descuidada, completamente abandonada, nas suas proximidades a edilidade criou uma lixeira e já não funciona como um oásis, sobretudo espiritual. Era um lugar de beleza arrebatadora, agora desvirtuada pela imundice, que tinha os coqueiros, de longe, como cúmplices de uma história que está prestes a cair no esquecimento.

Além de coisas inverosímeis, Xivanene é conhecida pela existência de peixes monstruosos que, entretanto, nunca ninguém nos veio provar que alguma vez terão devorado alguém. No último sábado, 01 de Fevereiro, para sacudir a modorra de calcorrear os mesmos lugares, ver as mesmas pessoas e ouvir as mesmas conversas repetitivas e fastidiosas, resolvi sair de casa para revisitar Xivanene, com a minha “Fuji” a tiracolo, vestindo a pele do maior repórter fotográfico do mundo. E para registar detalhes daquele espaço não devia ter pressa, e eu não tinha nenhuma.

A chuva cai intermitente, obrigando-me a levar o adereço que sempre me incomodou, o guarda-chuva. Mas tenho que portá-lo, pois a idade que tenho já não me permite apanhar banhos forçados da natureza, para além de que tenho a máquina fotográfica que não pode apanhar água. E lá vou eu, feliz por ir rever um lugar profundamente silencioso.

Xivanene jaz entre dunas precárias, mas já não posso contemplá-la cá de cima, porque as mesmas foram ocupadas por habitantes que correram para ali e dali nunca mais saíram. E são eles, sozinhos, que assistem ao espectáculo gratuito que a dádiva divina lhes oferece, em detrimento da maioria. Como se Xivanene fosse sua propriedade privada. A lagoa foi apertada, humilhada até as vísceras. Quer dizer, além de erguerem as suas casas, abriram hortas que agora estão alagadas pelas chuvas que caem.

As plantas de nenúfar estendem-se, tapando quase completamente as águas que nunca desapareceram, mesmo com as implacáveis secas e estiagens. Acciono a minha “Fuji” quando vejo um casal de pássaros castanhos, parecidos com corvos (nhamangondrongodrwane, em bitonga) levantando voo à minha frente, mas não pude fotografá-los por dois motivos: primeiro porque estava contra o sol, segundo, quando a máquina abriu eles já tinham desparecido. Fiquei frustrado.

Eu quero ver na sua plenitude a lagoa onde as mulheres, em grupos inúmeros, iam, muitas delas com os filhos de menor idade, lavar a roupa e banhar-se. Era uma imagem de beleza única, onde as roupas mais pesadas, como as mantas e outras peças, eram batidas em tábuas de madeira, num movimento artístico em que o tronco verga para baixo e para cima, com os seios, livres do sutiã, balançando como a poesia. Elas demandavam o lugar em procissões diárias e eternas, transformando Xivanene em átrio também para tagarelar, falando da vida, de um e do outro do lado. De todos os lados. Elas lavavam a roupa e levavam-na para casa, perfumada com as folhas de nenúfar, com um cheiro característico, suave, natural e único.

Eram as mulheres dos subúrbios que faziam isso, pois não tinham água canalizada nas suas casas. E aquelas águas nunca acabavam. Cada vez que eram usadas pareciam cada vez mais limpas. A presença das pessoas era o orgulho de Xivanene. Os jovens, também, do sexo masculino, encontravam, em particular nas tardes, oportunidade para darem um mergulho e voltarem para casa rejuvenescidos.

Claro que o veraneio destas pessoas de pouca idade tinha que ser feito discretamente, sem ferir a privacidade das mulheres. E havia respeito mútuo. Entretanto, após isso tudo, o que recebi, em contrapartida, foi uma completa desolação em virtude de as plantas de nenúfar terem tomado, quase em absoluto, conta das águas. Já ninguém se importa com Xivanene. Cercaram-na. Esmagaram-na. Humilharam-na. Desprezaram-na. E, por aquilo que parece, já não serve para nada.

Depois desse cenário desolador, estou do lado do pôr-do-sol, mais ou menos a meio da manhã, e a chuva continua a cair a espaços. Sem, entretanto, conseguir demover-me do sonho de estar sozinho no berço de Xivanene. Quero andar sempre rente à margem, já que do alto da duna não posso ver nada por causa das casas, e não posso voltar atrás.

Os antigos caminhos que percorri nos meus tempos de menino já não existem. Estão fechados, ou pelas machambas, ou pelas precárias casas. E com este tempo chuvoso a situação torna-se ainda mais degradante. Não existe a qualidade mínima de vida aceitável para os munícipes que foram para ali. Alguns por ignorância, outros por pura pobreza. Tenho de andar aos ziguezagues, por vezes, entrando inadvertidamente em espaço alheio, mas eu quero ver Xivanene. Revisitar o mito, e vou. Quando já não posso fazer o desvio obrigatório, invado as machambas, entrando no matope com o risco de contrair filária.

Quero ir até onde as minhas energias permitirem. Estou determinado, e não posso claudicar porque seria trair um rito. E se porventura a minha carcaça se cansar, a alma terá que arrastá-la. Revolto-me contra a forma como aquelas pessoas vivem, junto à água. Quebro a lança e atiro-a no espaço para ver se oiço um grito, um gemido, do outro lado, onde está sentado quem pode reorientar Xivanene.

Para agravar as coisas, o município de Inhambane instalou uma lixeira num dos cantos da lagoa, desvirtuando completamente o meio ambiente. O lixo ergue-se e, do ponto onde me encontro, posso ver aquela violação flagrante contra a natureza. Mas daqui não posso fazer a foto porque a minha “Fuji” não tem teleobjectiva, e o respectivo “zoom’” é limitado. Tenho de ir até lá. Fazer a imagem de perto. Sentir o cheiro dos detritos. E todos os caminhos estão bloqueados. Vesti a pele de bisonte. Furei as machambas alagadas e, no percurso, vejo de longe, num banco de areia, três jovens pescavam. Perguntei-lhes, aos gritos, como é que eles tinham conseguido chegar até ali. “Viemos na nossa canoa”.

– Não podem vir buscar-me?

– Para fazer o quê?

– Quero vos tirar uma fotografia.

– Não queremos.

De novo a frustração. A máquina fotográfica volta a não ajudar. Tentei tirar a imagem dali mesmo, e os meninos aparecem, de facto, na retina, mas muito de longe, sem a beleza que eu pretendia. Não posso fazer mais nada. Vou ao encontro da lixeira e, quanto fotografava, perguntava: o município não tinha outro lugar para fazer isto? Tinha que ser aqui, junto à lagoa? Xivanene é um potencial turístico. O que a edilidade devia fazer era retirar as pessoas que construíram nas margens e nas dunas para outros lugares que existem no município de Inhambane. E transformar toda aquela paisagem em lugar atractivo. Sem a lixeira.

 

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