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Xïkwembo – Antes do juízo II

Pensas que sabes muito sobre África? Sobre a Europa, sobre as Américas ou sobre a Ásia de Bollywood, onde vivem os primos afastados e as sobrinhas bonitas? Pensas que sabes muito sobre a tua terra, a tua cultura, as tuas raízes ou o que são os interesses da tua raça, do teu grupo social, da tua família, dos teus amigos?

Não estejas certo. A vida é mutante. Tu e eu também. Um destes fins-de-semana fui convidada a uma celebração. Um aniversário de uma criança. Eu fui. Fui segura, armada com o meu pré-juízo. Não esperava grande desafio, nem grande teste aos meus talentos de comunicação: vivo em África há algum tempo – em Moçambique há mais de dois anos; a festa era no Fomento – vivi na Liberdade; a família é a da minha empregada – que conheço há um ano, de quem conheço irmãos, mãe, filhos, morada, credo e condição económica… Surpresa…

Contava eu que ia a uma festa. Cheguei tarde, e logo aqui fui desafiando as questões do respeito. Tudo é relativo mas é comum a muitas culturas, localizações geográficas, contextos sociais e religiosos – é quase seguro que chegar a horas não ofende ninguém. Mas mesmo assim eu resolvi desafiar os meus talentos e… chegar atrasada. Chego, e a cerimónia que devia começar há cinco horas atrás e estar agora no momento descontraído dos comes e bebes, está ainda no início, na celebração religiosa.

Eu encolho-me e repito os “Ámen”, meio envergonhada, meio afirmativa, em ataque de fé inesperada, em afirmação involuntária dos antecedentes da formação religiosa. Eu não presto culto ao deus cristão mas aqui saime da boca… porquê? Eu não sabia o que fazer, eu não entendia metade do que se dizia, do que se fazia, do que se esperava de mim, interpretava cada frase como lição para a minha própria falha e cada olhar cansado como censura, descodificava os gestos como desconfiança, e até o meu lugar à mesa parecia desafiar as capulanas nas esteiras onde até os mais velhos estavam sentados.

Eu sentada, e a mente a viajar em falhas imaginárias e medos reais. Não sabia o que fazer. Durante duas horas não soube, falhei o cumprimento à mãe e pai da casa, a homenagem à criança e a atenção à anfitriã. Bebi Fanta que nunca bebo e nem toquei na cacana que foi feita para mim, não elogiei as músicas cantadas, não aprendi com o que me intrigou nem mostrei que sei, que sinto, que gosto, que posso dar. Não dei nem recebi. Não me diverti. E logo que pude fugi.

 Quando não me aproximo sou eu que fujo, decido ficar no meu ovo de conforto, defendo-me. O que podia fazer? Não sei, podia ser: “quero cumprimentar mãe da casa, onde está?”; “Desculpe ter chegado tarde mas e agora… como se faz aqui em casa?” Podia dizer! Pensemos juntos, quem iria eu ofender? Ninguém. Então porquê? Entrei como mulungo, estrangeira, mas podia ter saído de outro modo, não foi o que escolhi… mas a pergunta então é, porque fui? Que fui fazer ao ocupar a cadeira de destaque na cerimónia da família?

Quando me sento entre uma família africana não sou eu que me sento, é um mulungo que toma lugar, que toma a palavra, que respeita ou desrespeita os cultos. Como um africano numa comunidade chinesa é “o” africano e não um indivíduo qualquer, único, com sua personalidade, suas manias, gostos e defeitos, não, ele é África, porque é tudo o que conhecem sobre ela. A vida é cheia de negociações e re-negociações, de comunicação, de hierarquia, de ritos, de hábitos, de códigos, de regras, e a não ser que escolhamos a vida na montanha temos de descodificar.

 E a toda a hora. Sempre. Viver é descodificar, mais nada. Mas é bom quando a tradução é simultânea! Claro que depende dos intervenientes, de um tempo, de um espaço, de uma situação específica. E aqui o delay foi inevitável… Mas agora, em casa, sentada nas almofadas da sala em estilo oriental, aqui descobri.

Porque agi assim? Por medo. Por medo do ridículo. Eu escondi-me, nada fiz por cobardia, por vergonha, por defesa. Preferi correr o risco de ser mal-educada que ser ridícula. Pela experiência que vivi até hoje tenho poucas certezas e as que tenho testo-as todos os dias. Esta continua actual: todos somos ignorantes.

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