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Viver até onde a bala quiser

Viver até onde a bala quiser

O homem simpático da fotografia é um lutador e não se verga aos obstáculos. Chama-se Emílio Matata e vive com uma bala hospedada na cabeça há pouco mais de um ano, após ter sido alvejado por um agente da Polícia da República de Moçambique que disparava contra um suposto criminoso em fuga.

Olhando para a forma como se apresenta, os gestos e o optimismo com que encara a vida, a questão de ter uma bala dentro de si perde dimensão, ao ponto de parecer algo natural. “Mas, não tem sido fácil”, conta. “Agradeço a Deus porque ando, falo e me alimento. Confesso que quando me dou conta de que transporto comigo um dispositivo de guerra, fico stressado”. Além de afectar o seu estado psicológico, queixa-se de dores, sobretudo, quando faz frio.

Mas nunca se deixou abater. Com a excepção das restrições médicas pós-operatórias, tais como não praticar modalidades desportivas além da natação, não ingerir álcool nem fumar, ter um sono tranquilo, evitar quedas e trabalhos pesados, Emílio está em condições de desenvolver qualquer actividade que lhe permitam, depois, enfrentar os contratempos da vida como garantir o sustento da família. Algo, diga-se, que só não é mais difícil porque conta com a ajuda e o apoio incondicional da esposa, com quem arrenda uma casa no populoso bairro do Maxaquene.

Bala interrompeu formação

Até o dia do acidente, Emílio frequentava o quarto ano de Licenciatura em Estatística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Sonhava com outros voos. Mas viu o seu futuro hipotecado por uma bala de uma AK-47 no dia 13 de Fevereiro de 2010. Perdeu um ano e deixou de dar aulas de explicação, por sinal, o seu principal ganha-pão na altura.

Hoje “convive” com uma bala e com uma incerteza, até porque tudo pode piorar a qualquer momento. “O médico que está a acompanhar o caso disse que, neste momento, não há nada a fazer. Se a bala se deslocar um pouquinho pode ser fatal”, conta a esposa Inês Muiambo.

A tragédia

Antes de se mudar para o bairro de Maxaquene, o casal vivia no Chamanculo. No dia do acidente, Emílio estava em casa. De repente, ouviram-se tiros vindos da estrada. Infelizmente para Emílio, um dos projectéis introduziu-se na sua residência e alojou-se no seu pescoço tendo ido parar na sexta vértebra, parte cervical da coluna vertebral.

Emílio perdeu os sentidos no mesmo instante. Porque estava a perder muito sangue, os vizinhos levaram-no ao Hospital Geral de Chamanculo, onde estancaram a henorragia e, de seguida, ao Hospital Central de Maputo (HCM).

A polícia nunca mais voltou

Mais tarde, ficou a saber que os agentes da PRM vinham numa viatura e perseguiam um indivíduo em estado de embriaguez e que acabava de criar um acidente de viação.

Se nos romances policias o criminoso sempre volta ao local do crime, o mesmo não se pode dizer do comportamento negligente e criminoso dos homens da lei e ordem. Ou seja, a polícia não prestou socorro à vítima e nem regressou ao local do crime, embora tivesse, na ocasião, prometido que regressaria a fi m de prestar cuidados. Facto estranho, segundo testemunhas, é que mesmo depois de o fugitivo parar a sua viatura e levantar as mãos, os tiros continuaram.

Uma cirurgia complicada

No mesmo dia, em reacção à atitude da polícia, os vizinhos e amigos fi zeram queixa na décima oitava esquadra. Nesse lugar, foram encaminhados ao comando da cidade, onde o chefe das operações confi rmou o acto e reconheceu a culpa dos agentes. Para se inteirar do assunto, aquele responsável dirigiu-se ao HCM e pediu o contacto da família. Depois prometeu voltar para acompanhar o caso, mas nunca mais o fez.

Três dias depois de dar entrada no HCM, a 17 de Fevereiro, foi transferido para o Instituto do Coração (ICOR). Feitos os exames, os médicos do ICOR concluíram tratar-se de um caso difícil a nível local e sugeriram que fosse transferido para o estrangeiro.

No dia 4 de Março, retornou ao HCM. Contrariamente à versão dos médicos do ICOR, após observar o caso, um especialista em neurocirurgia de nacionalidade cubana afecto ao HCM concluiu tratar-se de uma questão simples e que em 45 minutos seria possível operar e extrair a bala.

Foi nesse contexto de contestação de algum pessoal médico que foi marcada a operação para o dia 8 de Março de 2010, na clínica do HCM, mediante o pagamento de 125 meticais. Um valor, diga-se, resultante das contribuições de familiares e amigos.

Maldita bala

A seguir, fez-se a operação mas a bala não foi extraída. Houve um erro de procedimento médico. Contudo, o terapeuta disse que a bala já tinha sido extraída. Com a pressão da esposa, que insistia em pedir o projéctil, o médico confessou que não conseguiu extraí-lo, mas assegurou que improvisou uma cirurgia que permite acomodar a bala entre duas vértebras.

No dia 16 do mesmo mês, Emílio teve alta e com ela outro dilema. Não se sabe ao certo o tamanho da bala e as consequências que podem causar ao organismo. Mas este não é um caso isolado. Um pouco por todo mundo aparecem doentes com balas na cabeça e que não são retiradas.

Segundo o neurocirurgião João Lobo, que fez uma operação similar no ano passado em Portugal, em termos de riscos nesses casos, a excepção são as balas de cobre, porque destroem os tecidos. Os outros tipos de projécteis são inertes. O risco de infecção é reduzido porque a temperatura com que a bala entra no corpo serve de esterilizante.

Antes de partir para Cuba, o médico que o operou descreveu a sua situação como estável. Mas, o que fazer depois? Eis a questão. @Verdade tentou ouvir o médico que actualmente acompanha o caso, mas foi impossível. Anda sem tempo.

E o que fez o Estado?

Até ao momento não há resposta a essa pergunta. Além da falta de clareza nas questões médicas, Emílio nunca teve qualquer apoio do Estado. O número 2 do artigo 58 da Constituição da República defende que o Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei.

Contudo, Inês Muiambo, que acompanha o processo desde o princípio, diz que já fez de tudo para resolver a situação do marido, mas é impossível diante da arrogância e falta de consideração das estruturas do Ministério do Interior. Uma das vezes que se deslocou para lá ouviu da boca de uma secretária as seguintes palavras: “Não me chateie porque não fui eu quem baleou o seu marido”.

Preferiu desistir, mas antes conversou com o vice-ministro José Mandra, que prometeu levar o caso avante, só que o funcionário que o ministro indicou para o efeito nunca o fez. Do Estado, a família recebeu apenas mil meticais. A mesma falta de colaboração de que a esposa de Emílio é vitima, acontece para com a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, que acompanha o caso.

Segundo Arquimedes Varinelo, advogado do processo, há, por parte do MINT, uma tentativa de fugir das responsabilidades, mesmo depois de reconhecer o erro dos seus agentes. “Já fizemos duas cartas a exigir a responsabilização. Uma remetemos em Junho de 2010 e outra em Janeiro deste ano, mas nenhuma foi respondida”, disse o advogado.

Para dar mais celeridade ao processo, vai-se recorrer ao Tribunal Administrativo donde se pretende exigir uma indemnização. Mas é preciso reunir provas como facturas e recibos referentes a tudo o que foi gasto para tratar o doente.

Esta semana, em conversa com uma fonte do MINT, que se escusou a identifi car-se, ficámos a saber que o processo está a decorrer sem sobressaltos. O mesmo reconheceu que o Estado está a dever aos lesados e acrescentou que a vítima tem direito a uma intervenção médica, porque se trata de um acidente de trabalho dos homens da lei e ordem, mas tudo depende do resultado dos exames médicos, que se submetem à medicina legal para provar a gravidade da situação. Emílio não acredita e diz que tudo não passa de mentira.

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