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Viver à custa do caniço

Viver à custa do caniço

Apesar dos constantes riscos que corre no exercício da sua actividade (corte de caniço) nas imediações do rio Incomáti, em Marracuene, Maputo, Júlio Chibale continua a fazer jus ao provérbio segundo o qual “Deus ajuda quem trabalha”.

Júlio Chibale, de 34 anos de idade, é natural de Monapo, província de Nampula, e chegou a Maputo há sensivelmente 20 anos. O seu objectivo era um e único: procurar melhores condições de vida. Porque esta cidade não é uma varinha mágica para a solução de problemas, como muitos erroneamente podem pensar, Chibale viu os seus sonhos ruírem.

À semelhança de muitos moçambicanos, em Maputo passou meses a fio na interminável fila dos desempregados. As suas condições de vida degradavam- se a cada dia que passava. De tanto sofrimento por que passava, em 1998 decidiu apostar no autoemprego, neste caso o corte de caniço nas proximidades do rio Incomáti, no distrito de Marracuene, província de Maputo.

A dura infância e a chegada à cidade de Maputo

Júlio Chibale só tem a terceira classe porque os pais não tinham condições para que ele fosse à escola. Mas ele teve a oportunidade de trabalhar numa casa agrária como tractorista, porém, teve de parar cinco anos depois porque a empresa foi à falência.

Mesmo assim, Júlio não desistiu da vida, e arranjou uma outra forma de ganhar dinheiro. Para não ser tão dependente dos outros, a melhor ideia que teve foi tentar a sorte num outro lugar, mas longe da província que o viu nascer.

Em 1990, deixa a família e ruma à cidade de Maputo, onde ficou aproximadamente um mês a dormir na rua. “Eu não tenho familiares aqui em Maputo, o único lugar que podia servir de abrigo eram as esquinas e os passeios da cidade. Estava exposto à intempéries, mas não tinha alternativa”.

Durante a sua “estadia” na capital, Júlio fazia biscates através dos quais ganhava o dinheiro com o qual arrendou uma casa na zona do Grande Maputo. “Eu fazia qualquer trabalho que me fosse proposto ou que me aparecesse. Carregava sacos, caixas, polia viaturas. Não escolhia porque a situação na qual eu me encontrava não permitia. Eu só queria fazer dinheiro”.

“Levei aquela vida durante muito tempo. Foi quando um senhor me ofereceu um terreno aqui em Marracuene. Quando cá cheguei, dediquei-me ao corte de caniço. Era a única actividade que eu podia exercer”, explica Júlio, quando questionado sobre as circunstâncias em que chegou a Marracuene.

Os mistérios do “barco de caniço”

Engana-se quem pensa que este jovem não tem consciência do quão é arriscado atravessar um rio num barco feito de molhos de caniço. “Já houve situações em que o nosso pequeno meio de transporte se destruiu no meio do rio. Os molhos desprendiam-se. Valeu-nos a mão de Deus”, conta.

Um destes episódios deu-se nos fins do ano passado, num dia em que o tempo não era favorável à navegação. Segundo aponta, se tivesse tido informações sobre o estado de tempo antes de se fazer ao rio de certeza que não se atreveria a sair.

O pequeno barco é composto apenas por seis molhos de caniço, sob forma de quadrado, com quatro molhos nas laterais e dois no meio para poderem suster a carga.

Tem capacidade para transportar 500 molhos de caniço de 50 quilogramas cada. “O segredo é amarrá-los bem. Para a sua movimentação basta um pau para servir de remo. Usamos este meio há quase 20 anos e não fomos os pioneiros”.

Porque de uma margem à outra são mais de 100 metros, tem de haver pelo menos dois homens que, durante a viagem, se ajudam mutuamente. “Não é possível remar sozinho, principalmente quando temos muita carga. Cansamo-nos facilmente, é por isso que trabalhamos em conjunto”.

Os inquilinos do pântano

Júlio Chibale trabalha com o amigo, Zacarias, com quem faz a sinuosa viagem. Chegados ao destino, atracam o “barco” nas margens do Incomáti e percorrem cerca de 20 metros até uma zona pantanosa, onde levam cinco dias com catanas em punho a cortar caniço, e só regressam aos fi ns-de-semana à vila para comercializá-lo.

Porque ninguém vive no lugar de onde tiram o caniço, os dois (Júlio e Zacarias) compram produtos alimentares básicos (arroz, farinha de milho, massa, óleo, entre outros). “Durante o dia preparamos as nossas refeições com recurso à lenha. É um processo difícil porque é uma zona muita húmida e não é fácil acender o lume”.

Em relação aos ganhos, estes dizem que, por mês, conseguem cortar 1000 molhos e vendem-nos a 60 meticais cada, o que equivale a 60 mil meticais. “O mercado é bastante favorável e satisfatório. Aos sábados, quando regressámos, encontramos muitos clientes à nossa espera nas margens do rio”.

“Sentimos que há uma grande procura deste material. Só em dois dias conseguimos vender os 250 molhos que cortamos semanalmente. Não queremos desistir deste trabalho, antes pelo contrário, queremos duplicar a quantidade”, promete.

Durante os dias úteis da semana, Júlio e Zacarias trabalham arduamente. “De noite, acendemos a lanterna para podermos ver melhor. Só fazemos uma pequena pausa para cozinhar e para comer”.

Um trabalho desprezível, mas rentável

Há quem possa olhar para a actividade com desdém, mas dela há quem consegue sobreviver e até sustentar a família. Só quem faz este trabalho conhece o sabor dos frutos que o mesmo dá. De tantas alternativas que tinha, Júlio Chibale apostou no corte do caniço e, pior, numa zona de difícil acesso.

“Eu e o meu companheiro escolhemos aquele local porque há caniço consistente e com uma boa altura. Tem esta qualidade porque dificilmente as pessoas vão cortar naquele sítio. Elas preferem praticar esta actividade em zonas habitacionais”, justifica.

Sonhos em realização

É graças a esta actividade que Júlio diz estar a realizar gradualmente os seus sonhos. Se nos primeiros dias da sua chegada à cidade de Maputo ele dormia na rua e depois de um tempo arrendou uma casa, hoje orgulha-se de ter o seu próprio tecto.

Depois de lhe ter sido cedida uma pequena porção de terra, comprou mais um terreno por 20 mil meticais e já está a erguer uma casa do tipo 3. “Já está quase no fim e, se tudo correr bem, até o fim deste ano vou poder viver com a minha família num novo e condigno lar”.

Mais ainda, diz ter construído uma pequena mercearia no mercado distrital de Marracuene, cuja gestão é feita pela esposa, de nome Ana Baúque.

“Quero investir em Nampula”

É assim que nascem os empreendedores neste país. Depois de vencer os obstáculos da vida em Maputo, o sonho de Júlio Chibale é investir em Monapo, sua terra natal, onde pretende abrir uma mercearia e um estaleiro de venda de material de construção para que os irmãos possam fazer o que ele não pôde: estudar.

“Eu não estudei mas quero apostar nos meus irmãos. Vê-los formados será a materialização de um dos meus sonhos, e dos meus pais. Quando isso acontecer, uma das minhas missões estará cumprida”.

Depois de partilhar connosco a sua história, Júlio respira de alívio: “Já não tenho motivos para chorar, reconheço que passei mal na vida. Mas, a minha coragem e espírito de trabalho fizeram com que eu me tornasse um herói. Dei a volta por cima”, diz a terminar.

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