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Vemo-nos na próxima cólera

Vemo-nos na próxima cólera

“O ano da cólera”, diziam os povos medievais, ao recordar uma daquelas chacinas que a epidemia havia feito entre eles. Os sobreviventes iam, assim, se situando, de época em época, num mundo em que só as guerras apinhavam pessoas e dificultavam o saneamento. O que acontece aqui connosco é uma certeza tão cíclica da cólera, como é o período das férias ou do Natal. Podemos, seguramente, falar de um calendário de actividades associadas à época da cólera. Vamos, deste modo, planear uma viagem para a altura da cólera ou, já agora, a segunda volta das eleições durante a cólera.

Pela pontual normalidade dos factos, a cólera não eclode, como mal se diz, ela aparece no seu tempo, constroem-se-lhe as tendas, alocam-se fundos, meios humanos e materiais, leva algumas vítimas, deixa uns tantos decrépitos e lá vai…..até próximo ano, que Deus sempre quer e manda. Ora, este é o grande problema sobre o qual as autoridades sanitárias e o público têm de agir com determinação.

De acordo com a explicação que o doutor Hélder Lopes dá sobre as causas da cólera, num programa que já tem mais de dois anos no ar, fica-nos a sensação de que é preciso desenvolver algum esforço para podermos manter viva esta doença. E, com efeito, há factores que objectivamente sustentam a cólera.

O moçambicano, particularmente aqui na capital, convive com o lixo, um lixo putrefacto, nauseabundo, que pavimenta locais de maior concentração das pessoas. E não é preciso chover para que estes resíduos constituam uma espécie de papa lamacenta nos locais em que se concentram.

E as moscas, claro está, circulam tão livremente como as pessoas, acompanhando-as até junto dos alimentos.

Não conhecendo as características da mosca que transporta o vibrião colérico, vou falar da abundante mosca ou moscardo verde metalizado, que surge do nada mal, se tira a casca de uma manga ou uma pata choca defeca ou, ainda, quando, inadvertidamente, um ovo podre se parte. É esta mosca que durante todo o santo dia paira por cima do peixe e do camarão que se vende na Tendinha, bem na berma da estrada.

Esta mosca consegue cobrir quase por completo as carnes que se vendem nos mercados do Xipamanine, Chiquelene, Benfica, T3, Patrice Lumumba, mercado da Matola, perante a total indiferenças das vendedeiras, que só as sacodem para o cliente atestar a boa qualidade do produto. Que garantia de qualidade pode oferecer uma carne quando temos de pedir licença às moscas para apreciá-la?

Em conclusão, toda essa carne fresca, o peixe, o camarão que se adquire nos nossos mercados e esquinas de especialidade é comida que passou necessariamente pelas moscas, que põem mil ovos por hora. Quantos é que a nossa higiene nos alimentos pode eliminar?

Estamos a falar de alimentos laváveis. Mas nesses mesmos sítios, vendem-se pão, bolos, chamussas, badjias, para não falar das refeições que são aí servidas. As moscas partilham directamente esta comida. Quanto ao pão, basta olhar para as mãos de quem o vende e para o chão em que se encontra sentado para perceber quanta porcaria vai à boca do cidadão. A faculdade de escolher dada ao cliente permite perceber que muitas mãos passam por cada pão, deixando os seus lixos pessoais, uns de coceira e outros de urinóis públicos.

Nessas zonas periféricas, que é onde está a maioria da população de Maputo, a latrina acaba por ser apenas um símbolo ou mera possibilidade de se defecar sem se ser visto por outros. De resto e no mais, a distância entre a latrina de um e a cozinha de outro morador é a espessura de um caniço, com as óbvias folgas para as moscas passarem sem custos de portagem.

Como o número de vítimas da cólera é extremamente reduzido, quase insignificante em relação ao daqueles que vivem na imundície, podemos estar confiantes por via da imunização progressiva, ou pela certeza de que foram outros os que morreram. Por isso aqui estamos para contar a história.

E a médica chefe da cidade de Maputo há-de aparecer anualmente para dizer que “hoje deram entrada trinta e um casos de cólera, talvez pela intensificação das chuvas”. E a cidade de Inhambane não teve cólera, mesmo com chuva que fez de algumas casas autênticos navios. Em Maputo, somos suínos?

 

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