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Uma vida dedicada à música!

Uma vida dedicada à música!

O marasmo na evolução da música moçambicana – fruto da inacção de certos mecanismos (necessários) por parte de quem de direito – incomoda-lhe. Vive em Portugal há cerca de 20 anos, no entanto, duvida da fundamentação eurocêntrica em relação à origem da música clássica. Dirigiu a inovadora orquestra Mostly Made in Mozambique enquadrada no âmbito do VIII Festival Internacional de Maputo. Saiba quem é…

O estimado leitor já descobriu de quem se trata? Quem será a personalidade moçambicana em alusão? Caso a resposta não seja afirmativa, então, nada melhor que acrescentar outras variáveis: “nasceu num meio musical, deixou-se cuidar por ela tanto é que, nos dias que correm, a sua vida pode ser considerada o resultado de uma educação e formação baseada na cultura da música”. E agora?

Na verdade, a figura de que estamos a falar é uma conceituada instrumentista moçambicana Kika Materula. Muito recentemente, tivemos a rara oportunidade de travar uma breve conversa consigo, por ocasião do VIII Festival Internacional de Música que decorre na capital do país desde o passado dia quatro, devendo terminar hoje, 11 de Abril, com a realização do Awareness Concert, às 18.30 horas no Teatro Avenida.

A impressão que tivemos no contacto mantido com ela é a de que (apesar da sua insistência em sentido contrário) Kika Materula é uma cidadã portuguesa, restando-lhe a nacionalidade e o amor que nutre pelo país, como elementos fundamentais na perpetuação da sua identidade como moçambicana.

De qualquer modo, é importante notar que, para si, “a visita a Maputo encerra duas vertentes, a familiar e a artística, porque, apesar de eu estar a viver há 17 anos fora do meu país, longe dos meus familiares, sou uma pessoa muito próxima e apaixonada por eles e por Moçambique”.

Como tal, “estar em Maputo é realizar uma das coisas mais importantes da minha vida, principalmente porque consigo aliar as duas práticas essenciais da minha vida, a família e a música, na mesma ocasião”.

Mais importante ainda é que “tenho imenso prazer em participar no VIII Festival Internacional de Música. Trata-se de uma iniciativa que me dá a possibilidade de realizar concertos para um público que é meu, o que dificilmente tenho conseguido fazer porque trabalho em Portugal”.

O Festival Internacional de Música (faz parte) dos meus sonhos

No entanto, ainda que viva em Portugal, pelo facto de ser artista, vezes sem conta, Kika Materula tem realizado digressões em diversas partes da Europa, o que faz com que passe algum tempo nos países vizinhos da sua segunda nação. “Aproveito a ocasião para absorver a cultura dos demais povos e, isso faz com que eu seja uma cidadã do mundo”.

A par disso, Kika associa a experiência que tem em relação à dinâmica dos eventos culturais a que se assiste nas cidades europeias para, acerca da capital moçambicana, considerar que “é salutar felicitar o Festival Internacional de Música, particularmente, à sua directora Moira Forjaz, sobretudo pelo facto de que, quando comparado com as edições passadas, o evento registou uma evolução enorme ao nível da organização artística. Posso dizer, inclusive, que se está diante de um festival com os mesmos padrões de qualidade exigidos na Europa”.

Noutro desenvolvimento, a nossa interlocutora considerou que, “no fundo, o Festival Internacional de Música faz parte de muitas iniciativas que eu gostaria de realizar em Moçambique. Conheci a Moira Forjaz há muitos anos em Portugal, onde ela, no passado, organizou um outro festival em que eu participei.

Foi na mesma circunstância que comentei com ela sobre a necessidade de trazer música para Maputo, principalmente para os moçambicanos. Ou seja, o grande objectivo que tal iniciativa devia ter era a realização de concertos envolvendo os moçambicanos”, reitera.

E aqui é necessário esclarecer que “os moçambicanos não somente são as pessoas que vivem no centro da cidade (ou as elites), mas também as pessoas que residem nos bairros suburbanos de Chamanculo, de Xipamanine, de Mafalala, de Maxaquene, etc. que, efectivamente, são os nossos irmãos. Os meus pais são de Chamanculo, portanto, as pessoas que os rodeiam constituem o circuito social que importa incluir nos eventos culturais”.

O memorável Chamanculo

A teoria geral do Jazz revela que aquele estilo musical, a par dos demais estilos, não é popular. Por isso, é pouco consumido no subúrbio.

No entanto, um dado curioso em relação aos artistas moçambicanos que exploram a música clássica é que, muitos deles, têm originam nas zonas suburbanas de Maputo, onde a música clássica quase não é explorada.

Ao realizar eventos como o Festival Internacional de Música na periferia de Maputo, envolvendo artistas locais, o Festival Internacional de Maputo rompe com a referida ideia teórica. O impacto a longo prazo desta prática é que muito mais pessoas do espaço suburbano poderão explorar de várias maneiras a música clássica.

Para Kika Materula esta tendência tem um sentido e significado: “Finalmente, o Festival Internacional de Música está a conseguir concretizar o seu objectivo. Recordo-me de que no ano passado realizámos um belíssimo concerto em Chamanculo, onde conseguimos atrair um público sempre presente e muito interactivo que nos acompanhou do princípio ao fim, procurando saber sobre vários aspectos referentes à arte e não só”.

Em parte, “o referido evento foi um dos melhores da minha vida. Basta que se tenha em mente que, “apesar de eu já ter actuado em muitas das melhores salas mundiais, o concerto de Chamanculo (também) conseguiu conquistar um espaço cativo no meu coração”.

Será que a música clássica é europeia?

Na edição do ano 2012, ao Festival Internacional de Música juntou-se uma orquestra denominada Mostly Made in Mozambique ou simplesmente Quase Tudo Feito em Moçambique (constituída pelos artistas moçambicanos Moreira Chonguiça, Luka Mukhevel, Feliciano de Castro, entre outros artistas oriundos da Europa e EUA sob direcção de Kika Materula) que representa um passo adicional para a projecção da arte moçambicana no mundo em que se procura associar, no mesmo espaço, “a arte moçambicana que tem muito valor com a europeia, salvo seja, porque se nos recordarmos de que África é o berço da humanidade, nada nos garante que a música é europeia. Aliás, o Jazz é música popular dos escravos. É música de África”, diz.

No rol das suas indagações, Kika Materula levou a sua opinião ao extremo nos seguintes termos: “Será que a música clássica é europeia? Eu penso que qualquer músico africano que tenha as oportunidades e condições que eu tive podia estar no local em que eu me encontro a dar esta entrevista”.

Por isso, na verdade, “o maior sonho que eu tenho é que os moçambicanos tenham a oportunidade que eu tive no sentido de, ao invés de termos de emigrar para a Europa, podermos trazer música e bons artistas para ensinarem sobre a arte de musicar e ampliar as possibilidades de os nossos artistas evoluírem”.

“Mas até que ponto estão criadas as condições para que se perpetue o Mostly Made In Mozambique, tomando em conta que no fim do Festival Internacional de Música, alguns dos seus integrantes regressarão para os países onde trabalham?”, questionámos.

A interlocutora assegura que a meta do Festival Internacional de Música não é, simplesmente, realizar uma semana de música. Mas criar condições para que se continue.

“É plantarmos uma semente que possa germinar e dar frutos. É óbvio que eu e alguns dos artistas envolvidos depois partiremos. Mas, falando particularmente de mim, penso que estarei continuamente disponível para apoiar no sucesso da iniciativa em tudo o que for preciso”.

Presentemente, ainda em Portugal, “tenho estado em permanente contacto com músicos e professores de música moçambicanos no âmbito desta iniciativa que comprovam o comprometimento colectivo em relação ao êxito do evento e do Mostly Made in Mozambique”.

Logo, “o Quase Tudo Feito em Moçambique não é um novo segmento ou uma nova iniciativa, mas é a continuidade de tudo quanto temos estado a fazer desde o início do Festival – porque nos apercebemos de que estavam criadas as condições para o efeito – de tal sorte que, no próximo ano, poderemos fazer muito mais”.

Não se trata de autopromoção!

Antes de finalizar, questionámos sobre as possíveis frustrações profissionais da artista na área da música, ao que nos respondeu do seguindo modo: “Participo no Festival Internacional de Música graças ao convite de Moira Forjaz a quem agradeço imenso. Quero que isto fique muito bem claro: eu sou moçambicana. Nasci neste país e amo- -o porque os meus país são daqui. O Festival Internacional de Música é um evento, maioritariamente, patrocinado por entidades estrangeiras”.

“Eu gostava de ter mais actividades musicais no meu país, para que possa transmitir os conhecimentos que tenho na área da música, sobretudo porque ainda temos muitas lacunas no ensino desta disciplina artística. Acredito que sou uma das poucas pessoas locais com formação e experiência para poder fazer modificações em relação a alguns aspectos em que isso é urgente”

E atenção: “Não quero autopromover-me porque – tenho uma família, uma vida construída no Porto – não estou a procura de emprego. Não se trata de busca de dinheiro porque, mensalmente, tenho salário garantido e, graças a Deus, o mesmo não é mau”.

No entanto, “em certos aspectos, a música em Moçambique devia estar dez passos mais avançada e não está por falta de conhecimento. É uma pena porque, além de mim, existem muitos artistas moçambicanos com boa formação e experiência no exterior que não estão a ser valorizados. Muitos deles não vêm a Moçambique porque desistiram”.

Ora, “o facto de termos duas universidades que leccionam artes e cultura musical confere ao país melhores condições para tirar partido dos quadros que possui, formados no exterior, a fim de se imprimir passos largos e rápidos no desenvolvimento da música. Em contra-censo, não é o que está a acontecer”.

De acordo com Kika, o outro aspecto que deve ficar claro é que, “não estou a criticar as pessoas que trabalham nas universidades – que, em certo sentido, estão a dar o seu melhor de si – mas será esta a maneira certa?”, questiona recordando-nos de que “durante dois anos estive no Brasil, onde trabalhei num projecto de criação de uma orquestra infantil. Fiquei muito feliz quando ao fim de dois meses de trabalho, fui convidada a integrar a direcção pedagógica da referida iniciativa em resultado das minhas capacidades e conhecimentos”.

Aqui, isso não se faz. Porquê?

Na verdade, o que a nossa interlocutora pretende dizer-nos é que, respondendo ao convite do povo brasileiro, contribuiu para a formação de uma orquestra musical bem-sucedida naquele país. Um feito sobre o qual a artista se congratula. Por isso, a pergunta que nos coloca tem muita pertinência: “Porque é que nós, em Moçambique, não fazemos o mesmo em relação à nossa música?”.

A par disso, nós podemos colocar uma outra questão: Porque é que os governos dos outros países, aparentemente, investem na sua cultura e nós (supostamente) não? Kika não encontra outra resposta senão a que se prende com vontade política. “As pessoas de direito devem querer”.

Por exemplo, “depois de eu terminar a minha formação, o Governo brasileiro convidou-me propondo trabalho no seu país, de tal sorte que fui trabalhar durante dois anos. E, sinceramente, eu não busco dinheiro mas para a arte é preciso dinheiro. E está claro que pessoas que possam pagar existem. O Festival Internacional de Maputo é exemplo disso”.

“Se nós podemos reunir-nos durante uma semana, no mesmo evento, é porque existe dinheiro envolvido. Agora porque é que não podemos investir (melhor) na/para a formação dos nossos artistas em Moçambique?”, questiona lamentando o facto de que, enquanto não se despertar para a necessidade de apostar mais nas artes e nos recursos humanos locais envolvidos, “passaremos a vida a importar os nossos produtos”.

Enfim, de uma ou de outra forma, vale a pena felicitar as entidades envolvidas na realização do VIII Festival Internacional de Música. Ele evoluiu de tal sorte que se pode equiparar a um evento realizado na Europa.

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