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Toma que te dou: Uma mulher bitonga à ilharga de mim

Estou sentado na esplanada do restaurante Tic-Tic, na cidade de Inhambane, onde gosto de estar e degustar do sossego que o lugar oferece. Na mesa ao lado da minha está uma mulher tremendamente estranha, comendo uma sopa de peixe, sorvendo lentamente cada colher que segura de forma delicada.

Está concentrada no prato, ignorando completamente o movimento à sua volta, os carros, as pessoas, e a mim, que estou ali pertinho quase que a sentir a sua respiração.

Observo-a discretamente. Distingo os olhos. Profundos. Belos. Belos demais que parecem sinistros. Olho para os lábios, grossos, apetecíveis e depois para os dedos das mãos, em cujo dedo anelar do lado esquerdo reverbera um metal de ouro e eu disse, de mim para mim, esta mulher é casada. Mas ela trazia um vestido preto, de seda, e corrigi o meu raciocínio, deve ser viúva!

De repente, retiniu o telefone dela e quando atendeu senti o sotaque bitonga no português que articulava correctamente. Apercebi-me de que falava com a filha, do outro lado, num ambiente que não era muito cordial e depois desligou, afastando suavemente, de seguida, o prato de sopa que ainda tinha conteúdo. Parecia desanimada.

Vi de novo as mãos a segurarem o guardanapos e a levá- -lo aos lábios, e foi nesse momento que nos encontramos, olhos nos olhos. Frente a frente. Peguei no copo de cerveja e dei uns tragos goela abaixo. Ela também pegou no seu copo e fez o mesmo gesto. Não resisti, precipitei umas palavras para provocar conversa, preparado para o que pudesse dar e vir.

– Perdeu a vontade de comer, minha senhora?

– Estas crianças às vezes descontrolam-nos.

– É verdade, as crianças às vezes descontrolam-nos.

A mulher falava com pausa. Com distinção. No seu sotaque bitonga que me fez lembrar o governador do Banco de Moçambique, o senhor Ernesto Gove, que nunca dissimulou as suas origens, como o fazem muitos nenhumanos espalhados por aí.

Bebi mais uns tragos à procura de outras palavras para voltar à carga, só que as palavras não me vinham. Ela também bebia, tranquila. Serena. Agora sem deixar de olhar para mim, de frente, com aqueles olhos loucamente grandes e belos. Senti-me pequenino demais perante esta figura. Pedi mais uma cerveja para ver se consiguia aclarar as ideias, e ela também pediu outra. Meu Deus!

O tio Rody, proprietário da casa de pasto onde nos encontramos, estava numa outra mesa, alheio à beleza que se sentava na sua esplanada e ao meu embaraço. Puxei por um cigarro e dei longas baforadas. Ela também puxou por um cigarro e deu longas baforadas, sem tirar os olhos de dentro dos meus olhos. Parecia uma tigresa que se queria atirar sobre mim.

– Esta cidade continua sossegada, bonita, só espero que esse tal do Guimino consiga fazer alguma coisa para preservar esta dádiva de Deus.

– É verdade, eu também espero bem que ele seja capaz de preservar esta dádiva de Deus!

– O senhor é daqui?

– Sou, sim senhora.

– Tem características de makonde!

– E a senhora, é daqui?

– Sou daqui, sim senhor. Há trinta anos que não sentia o cheiro desta jóia.

– Percebi pelo sotaque que era daqui.

– Tenho um sotaque horrível?

– O sotaque é um sinal poético, e a poesia é a forma de falar de Deus.

A mulher vergastou-me ainda mais fortemente com os olhos, bebeu mais um trago, e disse-me palavras que até hoje me ressoam no coração.

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