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Uma luta desigual

Maria Emília tenta sobreviver ao transplante do fígado, entre a hemodiálise que tarda em chegar e o descaso das Linhas Áreas de Moçambique (LAM). O corpo prostrado num quarto algures – num apartamento no centro da cidade de Maputo – revela o desmoronamento da responsabilidade social da empresa que detém o monopólio do espaço aéreo nacional, a esperança soterrada e uma voz silenciada à força de tanto gritar. O desespero do companheiro de toda a vida mostra essa desigual medição de forças entre o funcionário e a empresa; a medicação, a interrupção do tratamento, a impotência e a falta total de recursos vão traçar o destino de Maria Emília. Esta, também, é uma história de amor…

Maria Emília, de 61 anos de idade, caiu doente a 1 de Fevereiro de 2008 e teve de vir a Maputo para que fosse feito um diagnóstico mais informado. Em Nampula, cidade onde sempre residiu, o hospital não reunia condições para o efeito. A solução, pensou, estava na maior unidade hospitalar do país. O problema, porém, era bem maior do que supunha e a médica gastroenterologista que atendeu a esposa do ex-funcionário das LAM foi clara: o caso era grave e exigia tratamento urgente na vizinha África do Sul.

A evacuação de Maria Emília para o país vizinho só foi possível porque, em 2008, ainda vigorava um regulamento de benefícios sociais na LAM datado de 20 de Julho de 1985 que dava conta de que os trabalhadores – efectivos ou reformados – da companhia que monopoliza o espaço aéreo do país gozam do direito a assistência médica e medicamentosa.

Na África do Sul o diagnóstico confirmou as piores suspeitas dos médicos moçambicanos. Maria Emília tinha de fazer um transplante de fígado para poder sobreviver. Era mesmo uma questão de vida ou morte. “Ela tem de ser submetida a um transplante de fígado urgentemente para se salvar”.

Em Julho de 2008 entrou em coma e no mês seguinte, Agosto, recebeu um novo fígado. A operação foi um sucesso e Maria Emília voltou a sorrir. Mas essa alegria foi sol de pouca dura. Em Maio de 2009 os rins começaram a falhar com níveis de creatina e ureia elevados. Pouco tempo depois as infecções renais passaram a fazer parte da vida da doente.

Os exames subsequentes na África do Sul, país onde passou praticamente a residir depois que adoeceu, indicaram que a paciente deveria começar a fazer hemodiálise para “não afectar o fígado transplantado”. A solução encontrada foi a aquisição de um máquina para fazer hemodiálise peritoneal em casa.

A viagem para o país vizinho não aconteceu sem antes a família depositar os 600 mil meticais de comparticipação correspondente ao trabalhador, de acordo com o regulamento de benefícios sociais das LAM.

Com a solução veio outra complicação de saúde: hérnia abdominal causada pela introdução de glucose. A cirurgia abdominal para combater a nova situação obrigou a interromper definitivamente aquele tipo de hemodiálise.

Em finais de 2011 a doente regressou para Moçambique por causa de um “boa” nova. O país contava com serviços de hemodiálise no Hospital Central de Maputo. Em Janeiro de 2012 iniciou o tratamento no HCM.

Porém, um mês depois, teve uma recaída decorrente de uma infecção no cateter introduzido no seu peito na África do Sul. Estava obstruído. Os médicos do HCM informaram as LAM que havia necessidade de substituir o cateter. A paciente seguiu para Joanesburgo para o efeito.

Naquele país vizinho, os médicos verificaram que a infecção estava a afectar o fígado. Os médicos sul-africanos solicitaram a autorização do Ministério da Saúde daquele país para a colocação de Maria Emília na lista de urgências para transplante renal. Em Maio de 2012 as autoridades sul-africanas autorizaram. As LAM receberam a informação, mas, volvidos seis meses, deram instruções para que a paciente regressasse ao país devido a “despesas excessivas”.

@Verdade teve acesso a uma troca de correspondência entre os médicos sul-africanos e o departamento dos recursos humanos das LAM. Diante da intransigência das LAM, os médicos sul-africanos trataram a paciente durante três semanas garantindo o mínimo de assistência sem custos para Maria Emília. Nessa altura a mulher já não se podia movimentar. O último exame que visava detectar a causa das recaídas não foi feito e a paciente teve de voltar ao país.

“A empresa não assumirá qualquer responsabilidade por quaisquer outros custos relacionados com a paciente depois de19 Fevereiro”, lê-se numa correspondência electrónica enviada à clínica sul-africana.

Os responsáveis da clínica levantaram algumas questões relacionados com o perigo de evacuar a doente naquelas condições e procuraram saber se tinham sido feitas, da parte moçambicana, diligências no sentido de colocar a doente numa unidade hospitalar do Estado. Não houve resposta.

O esposo e ex-funcionário das LAM foi aos Serviços Sociais da empresa, mas não encontrou a resposta que esperava. “Faça o que quiser pois nós não queremos saber mais desse problema”.

Também falou com a gestora delegada que informou que não continuariam a suportar as despesas futuramente por gastos excessivos. Porém, a título excepcional, iriam solucionar a consulta para detectar as complicações de saúde que os médicos sul-africanos recomendaram. Debalde.

O que saiu da boca da administradora delegada não passou de um promessa e Maria Emília caiu desemparada sem chão para a segurar. A paciente não atravessa esse calvário sozinha. Cupido Rodrigues est(eve)á sempre ao seu lado. Aliás, a percepção de que as LAM não estavam a cumprir a sua obrigação foi o início de um tumulto interior.

Em conversa com o @Verdade, ele próprio admite que já não sabe o que fazer. Por muito que queira. “A constatação de que não posso cuidar da saúde da minha mulher e que descontei quase 1.800.000 de meticais abalou as minhas fundações mais profundas”. Então ao lado da deterioração da estado de saúde da mulher foi fundado o seu inferno pessoal. “Estou à espera de a minha mulher morrer para eu regressar a Nampula”. Nem as exposições ao Presidente do Conselho de Administração surtiram efeito.

A justificação para interromper o tratamento e justificar os gastos excessivos está condensada num regulamento de 2012. No entanto, a paciente adoeceu e iniciou os tratamentos em 2008 quando vigorava o Regulamento de Assistência Social de 1985.

Advogados ouvidos pelo @ Verdade fizeram saber que em situações do género aplica-se a retroactividade, fazendo valer a lei anterior uma vez que os factos constitutivos de direito ocorreram sob a égide do regulamento anterior.

A questão, diz-se, não é assim tão linear porque a disponibilização destes serviços é um extra que a empresa oferece. O problema coloca-se quando se subtraem direitos irrenunciáveis como o salário. Contudo, o tratamento deste caso é diferente porque as LAM nunca estabeleceram o montante, mas sim a percentagem das comparticipações.

Com a decisão das LAM a paciente teve de sair da clínica e regressar em maca a Maputo. Os relatórios médicos são claros e revelam que ela não reunia condições de saúde para deixar a unidade hospitalar. Contudo, por imposição das LAM, teve de abandonar o local mesmo com a recusa dos médicos sul-africanos de lhe darem alta.

Um delegado das LAM em Joanesburgo informou ao esposo da paciente de que, chegados ao país, esta seria encaminhada para tratamento num hospital. O casal chegou ao Aeroporto Internacional de Maputo e não encontrou ninguém à espera. Nem os responsáveis dos Serviços Sociais.

Graças à disponibilização da ambulância, a doente conseguiu chegar ao HCM. No banco de socorros daquela unidade hospitalar não foi possível marcar consultas para hemodiálise e nem internar a doente.

O médico que os atendeu disse ao acompanhante que seria um risco por causas das infecções que poderia adquirir. A solução foi levar Maria Emília para casa de uma irmã onde se encontra a morrer.

Seis anos depois, Maria Emília regressou ao seu país. Cupido Rodrigues, o esposo, ficou devastado. Um caso emocional. Foi da boca da administradora delegada da empresa onde dedicou 37 anos da sua vida que ouviu o pior.

O tratamento foi considerado demasiado caro. Ninguém percebeu as suas expectativas e os seus direitos. Ainda acredita que fez o seu melhor. Lutou como soube e perdeu como sempre.

O que diz o regulamento?

O Regulamento de Benefícios Sociais, no seu artigo número 6 que aborda a comparticipação nas despesas, não fixa um tecto de gastos para as LAM.

Estabelece, isso sim, uma percentagem na comparticipação em função do salário dos funcionários ou pensão de reforma. As despesas do trabalhador variam dos 10 porcento até um máximo de 50. Foi, portanto, sob a égide deste regulamento que Maria Emília começou o tratamento.

No entanto, a justificação dos Serviços Sociais das LAM é a de que o regulamento de 2009 estabelece um tecto. O artigo 11 refere que “o Fundo Social comparticipa” com 70 porcento para as despesas provenientes da substituição de lentes e aros; 80 para despesas provenientes da aquisição de óculos e alteração da graduação das lentes e 50 em caso de internamento”.

A diferença em relação ao documento anterior reside nos limites de comparticipação. 1500 dólares é o máximo por beneficiário ao ano dentro da província onde habita. Quando o caso exige assistência médica fora da província de residência o valor duplica. No estrangeiro o valor é de 5000 mil dólares ao ano. Em casos de urgência o mesmo duplica e chega aos 10 mil.

O silêncio das LAM

Esta terça-feira, 19 de Março, o @Verdade contactou os Serviços Sociais de Assistência Social das LAM a fim de que estes se pronunciassem sobre o caso de Maria Emília.

O director daquela repartição, Domingos Pene, disse, depois de se aperceber de que conhecíamos profundamente o assunto, que iria consultar os responsáveis de outros departamentos da empresa com vista a proporcionar-nos uma explicação exaustiva acerca do assunto, tendo prometido contactar-nos no mesmo dia ou na quarta-feira, o que não aconteceu até o fecho desta edição.

Uma situação complicada

@Verdade procurou ouvir alguns médicos a respeito dos problemas de Maria Emília e das suas possibilidades de sobrevivência. Em Moçambique, no Sistema Nacional de Saúde, existem apenas nove máquinas de hemodiálise e a fila de espera é longa. O único lugar onde a paciente poderia ser recebida é nos Serviços de Urgência.

No entanto, tal acarretaria riscos incalculáveis para a sua saúde. “Poderia contrair facilmente uma infecção e isso custaria a sua própria vida”, refere um médico que prefere que o seu nome seja omitido. “Ficar em casa não é uma solução, mas é bem melhor do que ficar nos Serviços de Urgência”, garante. “Seria o mesmo que assinar o seu atestado de óbito”, explica.

Um dos médicos ouvidos pelo @Verdade faz notar que o tratamento é caríssimo e reprova o comportamento das LAM quando a paciente se encontrava numa clínica na África do Sul.

Lembre-se de que as LAM deixaram de pagar as contas na clínica quando a cliente ainda estava em tratamento. Nem mesmo a advertência dos médicos sul- -africanos demoveu a empresa moçambicana. “Isso é um crime. Não se pode arrancar com um processo destes e parar pelo meio”.

“As condições nas quais foi transportada e chegou ao país precipitaram a deterioração das suas condições de saúde. Isso é inequívoco”.

Os médicos alertaram para o perigo das campanhas que são desencadeadas para transplantes de órgãos. O drama, dizem, não está na operação, mas nos momentos posteriores.

“É bem mais caro o pós-operatório. Não adianta, portanto, reunir 10 mil dólares para fazer o transplante de um rim ou fígado se depois o doente terá de viver o resto da sua vida a gastar cerca de 48 mil dólares ao ano”.

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