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Uma banda que quebra barreiras nas artes

Em Moçambique ainda é persistente o uso de tabus, pura e simplesmente, para impedir o crescimento das habilidades pessoais, incentivando-se, assim, a consequente exploração dos mais fracos na sociedade: as mulheres, as crianças e pessoas de condição humilde. Por exemplo, há tabus que preconizam que “o lugar da mulher é a cozinha”. Porém, essas sentenças não se fazem sentir no seio da banda Likute. Composta por quatro mulheres, esta colectividade quebra preconceitos a fim de se afirmar nas artes e servir de exemplo de persistência para a classe feminina no país. Em conversa, com o @Verdade, Neia Naene e Nguilozy Aleixa, constituintes da formação, falam sobre a sua afirmação nas artes e as dificuldades que enfrentam.

@Verdade: Quando é que surgiu o Grupo Likute?

Likute: Na verdade, o conjunto existe há muito tempo, mas não como Likute. Quando se formou nós – Neia Naene e Nguilozy Aleixa – ainda não éramos membros do grupo. Eu, Neia Naene, entrei na banda quando recebi uma solicitação de uma das fundadoras para ser a baixista, formando assim um trio com o mesmo objectivo, quebrar as fronteiras estabelecidas pelas diferenças de género na sociedade e no seio das artes.

Na altura, o grupo era constituído por eu, a Neia Naene, a Tinoca Zimba e a Lídia Mate. Com o andar do tempo decidimos, então, levar a sério o nosso trabalho, mas faltava-nos, ainda, uma pianista. Para completar o número de elementos de que precisávamos convidámos a pianista Nguilozy Aleixa a associar-se à banda. Então foi em 2007 que, todas juntas, decidimos dar o nome ao grupo que ficou conhecido por Likute.

@Verdade: Porque é que a banda se chama Likute?

Likute: O nome surgiu em função da visão de cada uma dentro do grupo. Foi por causa do nosso estilo de música que se produz com base na utilização do piano, da viola baixo, da flauta incluindo alguns instrumentos tradicionais como, por exemplo, o batuque. Queríamos algo que nos identificasse em função dos nossos ritmos africanos. Então, escolhemos a designação Likute que é o nome de um batuque. Na verdade, esse não é um batuque comum.

Usa-se mais na dança Mapiko. Nesse bailado, o instrumento é rico em termos de simbologia. No ritual, seu som é que serve de alerta para o dançarino começar a bailar. Quando se toca tal instrumento, mesmo que seja apenas uma vez, o praticante fica em alerta e de seguida vai ao palco. Por isso, escolhemo-lo para nos identificar.

@Verdade: De que falam as vossas músicas?

Likute: É importante que, antes de mais, se explique que nas nossas músicas resultam de uma fusão de ritmos africanos. Ou seja, contrariamente ao que normalmente acontece – em que temos artistas preocupados em formar bandas de Jazz – nós tentamos fugir dessa orientação estabelecida. Capitalizamos a diferença. Nas músicas falamos sobre vários aspectos sociais. Criticamos a sociedade, mas, de uma maneira figurativa.

Há uma música, por exemplo, com o título “Baba”, que na verdade sai como louvor a Deus. Nessa canção pedimos o Seu auxílio para que olhe por nós, os seus filhos de todas as nações. Eu, Neia Naene, não acredito tanto, principalmente, quando se fala de conflitos entre gerações, alegando-se o facto de a nova geração estar a usar a arte como um veículo para criticar e sem tentar ser discreto. Essa “mania” não é só de hoje, pois mesmo os da “velha guarda” eram directos e mais ultrajantes. Então, não se pode dizer que nós os jovens somos os mais ousados quanto à crítica social.

@Verdade: Que línguas mais utilizam para interpretarem as vossas músicas?

Likute: Cantamos em Macua, Swahili, Changana, Ronga incluindo outras línguas moçambicanas. Nós buscamos mais as músicas folclóricas, isto é, as canções populares de uma determinada região que, muitas das vezes, senão sempre, são usadas para a diversão. O único aspecto novo e que produz alguma diferenciação é que recompomos as referidas cantigas conferindo-lhes uma nova roupagem.

@Verdade: O que fundamenta a criação de uma banda unicamente composta por mulheres?

Likute: A ideia da Likute era fazer algo diferente e isso começa a partir desse aspecto – o de, unicamente, criar espaço para as mulheres. Não somos feministas, mas queremos enaltecer o esforço feminino. Por exemplo, há muitas mulheres que podem ser artistas, mas devido a preconceitos sociais acabam por desistir. Então, foi a partir dessas experiências, em que as mulheres não têm tido esse privilégio de se afirmar nas artes, que fundámos esta banda. Uma e outra vez tocamos com homens, mas a ideia não é de ter algum homem dentro do grupo como membro, mas sim como um convidado.

@Verdade: Como artistas mulheres já sofreram algum tipo de preconceito?

Likute: Para ser sincera, o preconceito nas artes é normal. Da mesma forma que existem pessoas para te apoiarem, vai ser de igual modo que haverá pessoas para te arruinarem. No início da nossa caminhada, o preconceito ofuscava o acesso ao apoio uma vez que as pessoas, dentre elas vários artistas consagrados e amadores, nos subestimavam.

Por exemplo, no primeiro espectáculo que fizemos no Núcleo de Arte, para além da presença dos nossos familiares, havia vários artistas que só nos foram ver actuar simplesmente porque queriam ter a certeza de que o nosso projecto existia. Outros ainda queriam “gozar-nos” porque, para um homem, o lugar da mulher é a casa, a cuidar dos filhos, e a cozinha. Mas, mesmo diante dessa discriminação, não ficámos abaladas pois jurámos desde o princípio que tínhamos de ultrapassar todas as barreiras e conseguir alguma afirmação social.

@Verdade: Que dificuldades ainda enfrentam?

Likute: Nós estamos juntas há, sensivelmente, sete anos. No entanto, a analisar pelo espaço onde realizamos os ensaios, facilmente poderão concluir que o nosso trabalho é feito por amor. É difícil trabalhar, uma vez que nos falta um pouco de tudo, desde os instrumentos, a sala para ensaiar e até um meio de transporte para as nossas deslocações. Nós temos o nosso material mas precisa de manutenção.

Por exemplo, o batuque quando é aquecido e tocado gasta a pele, e há vezes em que se rasga em pleno concerto. Por exemplo, a falta de um meio de transporte do grupo é sempre um dos aspectos que nos transtorna bastante quando temos um concerto. É que é difícil carregar todo o material necessário para o lugar do evento. Há vezes que as pessoas que nos contratam afirmam que somos caros porque os valores dos nossos contractos incluem o transporte dos nossos instrumentos musicais.

@Verdade: Há planos para o lançamento o vosso primeiro álbum?

Likute: Infelizmente, até agora, a nossa música é consumida por um público que ainda é reduzido. E ainda enfrentamos os mesmos problemas que caracterizam o campo da música – a gravação e o lançamento de trabalhos discográficos ainda não é um processo fácil. Não é fácil gravar um disco. Já batemos muitas portas a pedir patrocínio, mas, por enquanto, não conseguimos nada. O pior, para nós, é que vivemos da música e os patrocinadores pouco reconhecem o valor do trabalho artístico.

@Verdade: Que projectos têm para este ano?

Likute: No ano passado fizemos um espectáculo com o tema “Afirmação da Mulher Moçambicana nas Artes”. Este ano gostaríamos de continuar com esse trabalho. A iniciativa contou com a colaboração da actriz moçambicana Lucrécia Paco, a artista plástica Lica, e várias outras mulheres que se dedicam às artes. Para este, se conseguirmos patrocínio, queremos trabalhar com as mulheres do campo.

Aquelas que batalham dia e noite para lograr os seus intentos. E o segundo projecto é tornar possível o nosso maior sonho – publicar um trabalho discográfico, afinal, gostaríamos que o nosso trabalho não fosse unicamente consumido pelas pessoas que nos conhecem, mas por todos os moçambicanos. @Verdade: Já tiveram algumas actuações fora e dentro do país? Likute: Claro que sim. Dentro do país infelizmente só participamos em eventos feitos na capital, mas fora já tivemos a oportunidade de viajar para a Alemanha e para o Brasil.

@Verdade: Qual era o propósito dessas viagens?

Likute: Na verdade íamos promover o nosso nome. Em 2002, fomos a Espanha participar num dos festivais de cinema africano, onde encontrámos o cineasta moçambicano João Ribeiro. Depois participámos na Feira Popular da Música no Brasil, a convite de uns jovens com os quais interagimos a partir do Facebook. Mas, mesmo nessas viagens, a nossa experiência não foi fácil.

Diferentemente das condições garantidas na nossa viagem a Espanha, onde tudo foi pago pela embaixada, os brasileiros só nos garantiram a estadia e a alimentação, o transporte estava sob nossa responsabilidade. Graças ao FUNDAC, que foi a única instituição que nos abriu as portas, conseguimos viajar. Nessa viagem tivemos também o privilégio de representar as mulheres de África, pois éramos as únicas, para além das digressões que realizámos promovendo espectáculos particulares e a representar o nosso país através da capulana.

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