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A Ntyiso wa wansati: Surdo do Coração

A pouco e pouco fui-te esquecendo. Nunca pensei conseguir, mas o tempo cura tudo, já diziam os romanos. O tempo ganha sempre.

É triste esquecer alguém. Os sonhos, antes cheios de histórias e fantasmas, tornam-se vazios, povoados de lugares estranhos e pessoas desconhecidas. E tu há muito que não me apareces nesse universo paralelo em que o corpo descansa e a mente se rebela.

Para ser mais exacta, quase nunca sonhei contigo. Sonhei muitas vezes acordada, isso sim, enquanto te esperava em ondas de telefones sem fios, e-mails apaixonados e átrios de chegadas em aeroportos. Sonhei-te ao meu lado, na minha casa, a tua respiração silenciosa depois do jantar, os dois sentados na sala perto da lareira, a ler cada um o seu livro.

Sonhei-te a rir no jardim, a brincar com os cães e as crianças que talvez nunca cheguem. Mas tudo isso se perdeu no tempo, pouco ou nada ficou. Hoje olho para a tua imagem em fotografias ainda recentes e quase não te reconheço. É como se te tivesse perdido e quando te voltei a encontrar, já fosses outra pessoa.

É triste esquecer alguém que desistiu de nós. Obriga-nos a desistir também. Obriga-nos a aceitar que perdemos, como quem perde uma guerra depois de vencer as batalhas mais importantes. Foi assim que os americanos perderam a guerra no Vietname, sabias? Sem nunca ter perdido uma batalha. Os vietcongues escondiam-se debaixo da terra, toupeiras astutas e pacientes.

Construíram cidades inteiras debaixo das suas próprias aldeias que cresciam em silêncio, na escuridão e no silêncio, no medo misturado com a raiva de ter no seu território soldados altos e loiros, estranhos arrogantes que tinham decidido brincar às guerras fora de casa.

Às vezes penso que o teu amor por mim também cresceu para dentro, debaixo da terra, misturado com raiva e pena, até te cansares de mim. Ambos errámos muito, embora de forma diferente, talvez por isso ambos nos cansámos da nossa história, que começou tão pura e cheia de esperanças e que acabou por ceder ao seu próprio peso.

Nunca podemos mudar o coração dos homens. Podemos mudar o clima do planeta, o curso das águas nos rios, furar montanhas ou voar, mandar sondas para Marte, mas o coração dos homens fica igual. Se é frio, pequeno, se está magoado ou fechado, nada o faz mudar.

E eu nunca conheci o teu coração. Nunca mo quiseste mostrar. De vez em quando, sempre que te sentias protegido por mim e seguro ao meu lado, deixavas uma fresta para eu espreitar. Mas era como me convidasses a entrar numa casa onde me fechavas a porta na cara mesmo antes de eu passar a soleira da porta.

Ouvi essa porta a bater mais vezes do que seria aceitável. Vinha-me embora e esperava. Esperava que voltasses. Que voltasses a abrir a porta. E tu voltavas. Para a fechar outra vez. Transformei-me num vendedor de enciclopédias, habituado a que nunca o oiçam. Os vendedores de enciclopédias vestem-se a rigor e nunca desarmam; têm sempre a palavra certa no tom de voz adequado e um sorriso treinado para tudo, sobretudo para levar com a porta na cara.

Percebes agora como era para mim impossível ganhar a guerra? Que pode um vendedor contra um guerrilheiro? Eu bato à porta, tu escondes-te na cave. Eu faço-te perguntas e tu não respondes. Eu falo-te do meu amor por ti e tu ficas calado. Não há guerra nem paz possível quando se é surdo do coração.

Quem sabe, um dia, tu mesmo decidas mudar e abrir o teu coração para o mundo. Ficarei muito feliz por ti, acredita, mesmo que não seja comigo a teu lado, os dois sentados junto à lareira, a ler cada um o seu livro, antes de muitas noites de sono partilhado sem fantasmas nem pesadelos povoados de ruas estranhas e pessoas desconhecidas.

É que ninguém te conhece tão bem como eu e tenho a certeza de que isso um dia vai acontecer, mesmo que mais ninguém, nem mesmo tu, acreditem. E nesse dia venceremos os dois, porque o único que vence é o que se vence a si próprio e só é surdo do coração quem quer.

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