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Toma que te dou: Silêncio!

Alguém já me tinha dito, em mais do que uma ocasião, que a palavra é um sismo. Sempre acreditei. Já me disseram também que a palavra é o mote de tudo. E sobre isto não tenho a menor dúvida. Há pouco tempo foi o João, falando entre goles de cachaça, que repetiu pela milionésima vez: “Depois da palavra não existirá mais nada”. E eu respondi: “a Palavra é o Princípio e o Fim”.

Ultimamente tenho sido relutante em frequentar as sinagogas. Refiro-me aos lugares onde o mal está aparentemente adormecido. Latente. Pronto, porém, – como o vulcão – a entrar em erupção. Mas ainda guardo na memória várias histórias que me fazem lembrar a versatilidade da palavra. E recordo-me também de muitas coisas que aconteceram nesses lugares enquanto eu fazia parte dos inaladores incessantes do verdadeiro fumo.

E tudo isso era capitaneado pela palavra. Não era possível fazer, fosse o que fosse, sem que antes a palavra autorizasse. E a palavra nem sempre será audível. Porque a palavra tem a capacidade de mandar executar sem que ninguém a oiça nos ouvidos. A palavra também fala em silêncio e, se assim não fosse, os mudos não falariam. Como este homem que entra num bar, em plena efervescência, e grita com a mão batendo por sobre o balcão: “Silêncio!”

Lembro-me como se fosse hoje. E eu estava, nesse tempo, a gozar a frescura da minha juventude. Estou sentado à mesa com os meus amigos, bebendo e conversando sobre tudo. E cada vez que bebíamos queríamos mais. E cada vez que bebíamos mais, parecíamos mais lúcidos. Nas mesas a vozearia era enorme. Todos falavam ao mesmo tempo. E cada um tinha uma história diferente para contar. Cada um tinha uma palavra para dizer.

A maioria dos bebedores está acomodada nas mesas, e aqueles que não têm lugar nas cadeiras acotovelam-se no balcão pedindo e bebendo cerveja sem parar. As conversas que se desenvolvem nos inúmeros cachos compostos por homens e mulheres fazem lembrar um espectáculo com vários palcos montados perto um do outro. A partir de onde as diferentes músicas tocadas ensurdecedoramente fundem-se e parecem sair de uma única orquestra.

Na verdade, estamos num lugar que pode ser comparado a uma sinagoga, e que vai precisar de uma palavra poderosa para equalizar todo este “rock pesado” por demais. De todas as mesas levantam-se nuvens de fumo cristalino, expelido das baforadas repetitivas.

Entretanto, esse veneno não incomoda aqueles que se encontram ao mais alto nível da falsa sensação de bem-estar que o álcool empresta. É uma alegria. Inefável. E nesta ocasião, todas as mágoas podem esperar. Bebe-se de verdade. E fuma-se. Bebe-se e fuma-se e liberta-se a palavra como nunca. Ninguém quer perder a oportunidade de dizer algo. E para isso é necessário que se convoque a palavra.

Sempre presente. Fala-se sem limites. As histórias contadas nesta tertúlia de loucos começam e são interrompidas por outras histórias que também começam para não terminar. É como se a água de toda esta albufeira fosse libertada de uma comporta aberta por alguém que depois se esqueceu de fechar. Até agora que um homem entra neste “inferno” e dirige-se directamente ao balcão.

É uma figura possante, com todos os requisitos para ser recrutado à chusma de praticantes de luta livre. Caminha com o tronco ligeiramente curvado para a frente. Não olha para ninguém em particular, e os bebedores de cerveja que estão nas mesas também não lhe prestam atenção.

Colou as suas costas ao balcão depois de ter pedido uma enorme caneca de cerveja, que virou goela abaixo sem parar. Pediu outra, e num instante estava também vazia. Pelo sobrolho franzido, notava-se facilmente que não estava a simpatizar-se com aquele bulício. Baloiçou o seu corpanzil. Desferiu violentamente a sua enorme mão no tampo do balcão e, sem tirá-la do sítio, olhou para a plateia que ficou imediatamente em silêncio.

Pediu mais uma caneca e bebeu tranquilamente, sem dizer palavra, e depois saiu por onde tinha entrado.

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