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Quem sai aos seus, não degenera

Quem sai aos seus

“Filho de jornalista também sabe escrever”. É com esta sensação que se fica quando se está perante as obras literárias do jovem moçambicano Hélder Faife. Até porque, com apenas 36 anos de idade, o filho do falecido jornalista Abel Faife já colecciona quase meia dúzia de prémios, deixando transparecer a veia de bom escritor. De seu nome completo Hélder Rafael Faife, o escritor de 36 anos de idade dá os seus primeiros passos no universo das letras.

Nascido em Maputo, a 6 de Setembro, além de se devotar a escrita também é criativo de publicidade, artista plástico, cartoonista e estudou Arquitectura e Planeamento Físico.

Venceu a quinta edição do Concurso Literário TDM-2010 com as obras “Contos de Fuga” e “Poemas Em Saco Vazio Que Ficam Em Pé” nas categorias de conto e poesia respectivamente, tendo recebido os prémios no passado dia 4. Em dedo de conversa com @Verdade, fala dos seus trabalhos.

(@V) – Como surgem estes livros

(Hélder Faife) – Estes livros não surgem só por dizer, eles são o resultado de uma recolha de textos que estavam nas gavetas, debaixo da almofada e outros que vinha escrevendo. Peguei nos que tinham algo em comum e criei este propósito. Tenho vários projectos com estas características, mas estes dois pareceramme os que reuniam melhor substância literária. Na verdade, escrevia para mim como qualquer principiante, mas chegou uma altura em que senti necessidade de testar a minha criação. A melhor forma de fazer isso foi entrar nos concursos literários promovidos no país. Fi-lo no concurso com mais ênfase no concurso literário da TDM porque julgo que é uma boa catapulta para a carreira.

(@V) – Este é o primeiro concurso no qual participa?

(HF) – Não. Já participei no concurso FUNDAC 2008, no qual obtive uma menção honrosa. Participei ainda este ano no concurso dos 35 anos do Banco de Moçambique. Senti-me honrado por ter sido premiado por um júri presidido pelo Dr. Lourenço de Rosário, Francisco Noa e Nataniel Ngomane. Efectivamente, o meu projecto para este ano era aparecer.

(@V) – O prémio dos 35 anos do Banco de Moçambique resultou na publicação de um livro.

(HF) – Não. O concurso decorreu em paralelo com o da TDM e uma das cláusulas do concurso dizia que patrocinavam a publicação da obra se eu me interessasse. Entretanto, para não criar choques preferi esperar pelo resultado deste concurso.

(@V) – No livro Contos de Fuga fala da construção de um prédio em madeira e zinco, em pleno coração do subúrbio. Geralmente, nos bairros, a construção de uma moradia com dois pisos é um prédio para o imaginário popular. O que pretende dizer.

(HF) – Essa é a percepção das pessoas que vivem nos arredores, nas casas ditas precárias. Para essas pessoas dois pisos significam prédio, uma casa dessa envergadura é sinónimo de um prédio. Já estive numa casa que tem escadas no interior com uma tia minha que vive no campo, para ela aquilo era um prédio. O fio condutor do conto não é uma invenção minha. É um pouco aquilo que acaba de dizer: pegar em coisas corriqueiras e espremer poesia delas para ver se sai algo palpável.

(@V) Ainda no livro Contos de Fuga retrata um episódio num bar entre um funcionário público e uma adolescente que se dedica a venda de amendoim. Pelo fim trágico da história pretende

(HF) – As minhas intenções são mais poéticas, são mais de fazer a música e não de interpretá-la ou tentar fazer com que ela sirva como uma arma de contestação. Lembro-me de um trocadilho que inventei para um texto meu: Palavras sem contexto (nem contesto) mas com texto. Uma vez recolhi os meus poemas e procurei o que tinham de comum e vi que era o prazer de escrever. Ou seja, não via contestação neles. A quaresma dela durou nove meses. Acima disso está o homem que, por alguma frustração, passa a vida no bar. O tipo de vida que leva que o faz olhar para uma adolescente como se de uma mulher se tratasse.

(@V) – O afecto desprotegido com que se amaram gerou um inesperado feto, e a afeição foi tanta que resultou em infecção. Assim termina o conto “No muro”.

(HF) – Esta menina no meu imaginário é estudante do curso nocturno. Ele é vendedor ambulante. Ela não foi à escola e ele não foi vender. Encontraram-se na rua. Eram namorados, mas o que acontece naquele é por falta de ensinamento. As pessoas sabem que é errada a forma a sua forma de encarar o sexo, mas não assumem.

(@V) – A velhice é não é um posto, é um imposto. Quer comentar este trecho de um dos poemas do livro “Poemas Em Sacos Vazios Que Ficam de Pé”?

(HF) – O imposto, no meu ângulo de visão, é mais pesado do que a velhice. O peso do imposto consegue ser mais violento do que a velhice. Olho para o velho como uma metáfora das dificuldades, a qual não é maior, repito, do que o peso dos impostos que as pessoas pagam.

(@V) – Num outro poema olha para a capulana como um banco.

(HF) – A capulana faz parte de um conjunto de textos com o mesmo título. Escrevi muito sobre este artigo. Outros textos não constam desta obra, mas a capulana é uma fonte bruta de motivação poética. Os poetas olham para o céu, o mar e o horizonte quando perto temos areia, capulana, dumba-nengue, etc. Coisas do nosso quotidiano das quais se pode extrair muito sumo poético. Foi ao olhar para essas coisa que me apaixonei pela capulana. Neste livro, por exemplo, há dois ou três textos com o título capulana.

(@V) – Lá a banca lacra os bancos e decreta a crise, mas aqui a senhora monta a banca e lucra. Este poema foi escrito aquando da crise financeira internacional?

(HF) – Sim. As pessoas menos capacitadas. Este poema foi inspirado numa caricatura que fiz, a qual retrata um miúdo da rua ao lado de uma lata de lixo a dar uma palestra a europeus, americano e asiáticos onde mostra que a crise não lhe afectou porque não sobrevive a expensas do esquema financeiro. Ele vive de restos. Nesse sentido ele incorre no erro porque contenta-se com o pouco.

(@V) – Eva ou I.V.A. Porquê?

(HF) – Eva maculou o mundo, mas o IVA maculou o bolso, a vida, o dia a dia e depois surgem todas aquelas coisas que são reflexo da falta de condições financeiras. Desde ignorância e até criminalidade.

(@V) – Fale-nos do poema sobre o menino sentado na banca a vender doces.

(HF) – Há um tipo de coisas que escrevo por vontade e quando penso que me vou perder descubro um fim interessante. Como se fosse esculpindo e a forma fosse aparecendo. O que pretendo dizer que o miúdo estava a vender doces sem autorização para prová-los porque não podia diminuir a fonte de receita da família. No entanto, um dia ele descobre que podia roubar. Esse foi o primeiro de muitos roubos.

(@V) – Vendedores a venderem as suas próprias dores. O que quer dizer com este verso.

(HF) – Este é um dos temas que me levou ao título deste livro. Os vendedores de rua são o ícone do sofrimento social e quando digo que vendem as próprias dores porque não retiram ganhos e nem dividendos do esforço. Eles não são respeitados e até são reprimidos, mas todos vivemos do que eles fazem. Dizemos que eles sujam, que fazem lixo, mas esquecemos que eles somos nós.

(@V) – O quer dizer com a rachadura no espelho, no qual uma prostituta vê o seu reflexo?

(HF) – Ela começa por ver o reflexo dela rachado. A racha no espelho representa, de certa forma, uma vida rachada ou uma realidade precária. Ela olha para o espelho e a rachadura parte-a em duas. Ela deixa a alma do outro lado do espelho e leva o corpo, qual ferramenta, para onde vai. O pagamento pelo corpo não compensa. A vida dela é um destino ingrato.

(@V) – Sofreu alguma influência do seu pai para começar a escrever?

(HF) – Para começar tinha uma estante enorme de livros. Na altura não tínhamos um televisor, o meu pai morreu em ‘87. A decoração da sala sem um aparelho de televisão era mais para o rádio, gira-discos, cristaleira e, principalmente, uma estante de livros. A estante do meu pai era enorme, tinha muitos livros e eu conhecia os livros todos pela cor e pelos títulos. Por fim, acabei por ler grandes livros. Aprendi a ler com Jorge Amado, naquela altura, não entendia nada, mas sabia que era um bom livro, apesar de ter letras pequenas. Também lia os artigos do meu pai que ele recortava.

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