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Quando viver é proibido

Quando viver é proibido

Delfina é uma jovem que nasceu pouco antes da independência, tem 38 anos de idade, e cresceu na era das fl ores que nunca murcham. Em que todos têm acesso à educação, querem ser livres e mudar o mundo. Mas nunca saiu de casa, anda com difi culdades, está descalça, com os pés inchados, não sabe ler e vive num bairro em que poucas pessoas a conhecem.

Corria para o fim o ano de 1973 e no horizonte já se desenhava a independência de Moçambique. A 4 de Dezembro desse ano, algures em Boane, nasceu uma criança forte e saudável.

Os moçambicanos, nessa altura, andavam eufóricos a ver cair o regime colonial português. Euforia, essa, que não se repetiu no seio da família Pelembe quando a liberdade chegou, dois anos depois, em 75: Delfi na, oitava fi lha do casal contraiu um doença e, aos olhos dos pais, deixou de ser uma criança normal.

Perante a defi ciência da filha com que dão de caras, os pais vêem-se ‘forçados’ a trancá-la dentro de casa e, desse modo, acreditam afastar para longe da família o espectro da discriminação dos vizinhos e da sociedade.

É como se os moçambicanos dessa frívola e sobranceira década de ´70 fossem todos preconceituosos, como aqueles personagens que habitam apenas as histórias de ficção e que concebem um mundo sem espaço para defi cientes.

Pelo menos era assim que pensavam os pais de Delfi na para quem ter uma filha com uma defi ciência motora, embora praticamente imperceptível, era o mesmo do que andar nu em plena vila de Boane.

Os vizinhos

Celeste Mondlane, de 70 anos de idade, sentada numa esteira fala do bairro, dos pais e de Delfi na. Foi a primeira moradora a chegar.

“Eles viviam do outro lado da rua numa casa de madeira e zinco. Mudaram para a actual em ‘95”. No entanto, o pai morreu antes de concluir a construção da moradia, em 2003.

No princípio da doença que condenou Delfina a uma espécie de prisão domiciliária numa casa praticamente sem janelas, conta, o pai levou-a ao hospital, mas, passado algum tempo, deixou de fazê-lo. Se para Celeste é fácil falar de Delfi na o mesmo não acontece com as gerações mais novas. Há pessoas que vivem a menos de 20 metros, mas não sabem de quem se trata.

Como é o caso de Nelson Maeca, de 42 anos de idade, que nasceu no mesmo bairro, mas só teve conhecimento da existência de Delfina em 2005.

Nelson é membro da ADEMO (Associação dos Defi cientes de Moçambique) e Delfina, por incrível que possa parecer, tem um irmão defi ciente que também é associado daquele agremiação. Mas este, talvez por ser homem, como defende Celeste Mondlane, não foi condenado à prisão no próprio lar. Foi ele que falou de Delfina a Nelson.

“O mais espantoso é que eu conhecia toda a família”, diz. Acrescenta: “Cresci neste bairro, mas não consigo perceber como é que ela permaneceu assim esse tempo todo sem que quase ninguém a conhecesse”.

Hoje

Na verdade Delfina Domingos Pelembe saiu de casa uma vez. Foi ao cemitério, mas não para enterrar um ente querido como seria normal. Delfina foi apenas para visitar a campa de duas pessoas que tinham sido enterradas cinco anos antes. Ou seja, teve de esperar, até que fosse possível, para se despedir das duas pessoas mais importantes na sua vida: pai e irmão.

O primeiro morreu em Janeiro de 2003 e seis meses depois o irmão também perdeu a vida. Mas tudo, para Delfina, tem justifi cação: “O carro não tinha espaço sufi ciente, mas senti-me bem depois de ter ido pôr flores nas campas”, diz resignada. Não é difícil encontrar uma explicação para a vida que leva: “proibiam-me de sair de casa”. Hoje pode sair, mas é como se aquela moradia sem muros tivesse um cerco invisível e Delfi na estivesse presa a um íman no centro do quintal.

Uma coisa, no entanto, é certa. Ela não quer sair de casa: “Tenho medo”, diz como se fosse natural. Viveu muito tempo num espaço exíguo para acreditar noutra forma de vida. Não é, no entanto, a dificuldade de locomoção que a faz ter pavor de pôr os pés do outro lado da rua.

É algo mental. Os estranhos metemlhe medo e a rua é moradia de todos os perigos. Por isso, prefere ficar na sua casa que é como um oásis no meio do nada que é a sua vida. Aprendeu a conhecer a vida através de um rádio.

O seu mundo, na globalidade, é a parte de trás do quintal de casa e, principalmente, o interior desta. Para quem vive há 38 anos sem contacto com o mundo, Delfina fala um português invulgar, sabe contar, mas é incapaz de ler.

Aliás, expressa-se muito melhor do que a irmã que foi à escola. “Posso contar até mil”, diz a rir. Ler? “Gostava de aprender”, mas não tem meios. Quando o irmão era vivo ofereceu-lhe um rádio para lhe fazer companhia. Foi com essa ‘companhia’ que Delfina aprendeu a contar e a enumerar os meses.

Ignora os seus direitos

Perguntámos a Delfina se conhece o artigo n ° 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o qual diz que todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. A resposta veio pronta: “Não.” Não só não conhece como não lhe interessa ser livre. “Sinto-me diferente e tenho medo das pessoas.” Não sair de casa, diga-se, não é um drama. O maior problema, diz, é a dor nos pés. Aliás, a única coisa que lhe faria sair das fronteiras do lar.

Mas não pode. Falta dinheiro e um meio para ir ao hospital. O tratamento é um luxo para os parcos recursos da família e Delfina não está preparada para enfrentar o Sistema Nacional de Saúde sozinha.

O que diz a mãe

A mãe de Delfina é avessa às visitas. Não abre a boca para falar da filha. As versões que se conhecem da história são contadas por uma irmã de Delfina que fala pior do que um bebé. Da mãe de Delfi na sabe-se que sofre de reumatismo, mas nunca está em casa para explicar como é que a filha está há 38 anos entre o quarto, a sala e o quintal da casa. Temos de nos contentar com Noémia que diz pouco ou quase nada.

Especialistas

Entre as poucas certezas que há em relação à doença, a principal é a de que, quanto mais cedo tivesse ocorrido uma intervenção terapêutica ao nível comportamental e motor, Delfi na teria uma vida melhor. Mas nenhum pai está preparado para o que vem a seguir: um mundo de difi culdades, onde se sentem órfãos do Estado, do Sistema Nacional de Saúde e presos, no caso da família Pelembe, ao obscurantismo.

Nesta fase, também não é raro que a mãe comece a sentir-se um pouco mais culpada, pensando que a carga genética que transporta é a responsável. Mas no íntimo tudo é posto em causa: os familiares, os tios, os vizinhos, etc. Mesmo que não o confessem. A esta fase os especialistas chamam normalmente “luto”. E sem o ‘luto’ cumprido não há como avançar.

Ou seja, é imperioso aceitar a situação. Agir rapidamente. Algo que difi cilmente acontece quando os pais se agarram à explicações metafísicas.

Se fosse hoje

Se Delfina ainda tivesse dois anos, pedir-se-ia uma consulta de avaliação no Hospital Central, em Maputo. Mas a resposta não se afiguraria imediata. Decidir avançar para o sistema privado (gastaria muito dinheiro, se o tivesse) é algo inadmissível. A consulta no hospital público só chegaria dois anos depois.

Nessa altura, Delfina já teria 4 anos. O tratamento numa clínica privada pode custar cerca de 15 mil meticais por mês. Uma quantia impensável para uma família que vive da agricultura de subsistência.

Os médicos dizem que a lacuna ao nível de consultas de diagnóstico do Sistema Nacional de Saúde deixa campo aberto para que alguns privados monopolizem estas intervenções e as seguintes, ou seja, já na fase de acompanhamento, desenvolvimento, e terapia.

Os pais informados sabem, porém, o quanto urge agir. A espera pode ter efeitos muito nefastos ao longo de toda a vida do filho; e os estudos existentes são unânimes em considerar que a eficácia do tratamento comportamental é muito maior quando aplicado, de modo intensivo, até aos quatro anos. O cérebro é mais plástico, flexível. Absorve melhor a aprendizagem. Depois todos os avanços são mais lentos.

É, de resto, por essa razão que a grande batalha científi ca nesta área está em encontrar métodos de diagnóstico que possam ser fiáveis na mais tenra idade. Enquanto isso, Delfina sabe que tem poucas hipóteses de se tratar.

Já passou da idade e, aos 38 anos, sonha com poucas coisas. Mas gostava, nem que fosse uma vez, de soprar velas num bolo de aniversário. Completa anos no próximo dia 4 de Dezembro.

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