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“Qual é o estado ambiental da nação?”, questiona Alda Salomão que alerta: “chegámos a um nível de impunidade que é pernicioso para o próprio Estado” em Moçambique

“Qual é o estado ambiental da nação?”

Foto de Adérito CaldeiraNunca os moçambicanos sentiram tanta insegurança em relação à posse da terra, nas últimas décadas. Sob a justificação do desenvolvimento económico e social, o próprio Estado tem retirado esse direito que é garantido pela Constituição, “(…) é preciso estabelecer uma relação de coerência entre o discurso político estratégico e aquilo que acontece no terreno”, afirma Alda Salomão em entrevista ao @Verdade onde lamenta o nível de impunidade a que chegámos, “que é perniciosa para o próprio Estado” e que é preciso que os servidores públicos que agem contra as leis sejam responsabilizados. A jurista ambiental apela ao Chefe de Estado, Filipe Nyusi, que inove quando for ao Parlamento e acrescente um capítulo sobre “o Estado Ambiental da Nação”.

Efectivamente, o Programa do Governo do Presidente Nyusi destaca como quarto elemento-chave “a elevação da gestão sustentável e transparente dos recursos naturais e do ambiente para o estatuto de componente estratégica e prioritária e base material para o país acelerar os esforços de desenvolvimento económico e progressivamente melhorar a qualidade de vida dos moçambicanos”.

“Este novo Governo entrou no meio de uma enorme controvérsia causada pelo abate indiscriminado de elefantes. Uma vez que este é um país cuja riqueza está centrada nos recursos naturais, acho que a gestão desses recursos merece um capítulo especial no Estado da Nação”, declara a directora da organização não-governamental Centro Terra Viva que entende ser de grande importância saber como é que está o nosso ambiente, pois “não é só em relação aos problemas que estão a ser causados pelas indústrias, em todos os sectores, no meio rural e no meio urbano, saneamento do meio rural e urbano, o informe do Presidente da República tem que ser uma coisa que nos ajude a ter a fotografia do país do ponto de vista ambiental”.

Inconstitucionalidades e eventuais lacunas na Constituição há várias

Relativamente ao Direito de Uso e Aproveitamento da Terra que assiste a todos os moçambicanos, e sabendo-se que ela é propriedade do Estado e não pode ser vendida (hipotecada ou penhorada), a verdade é que no terreno, “o que nós estamos a sentir, como cidadãos, é uma crescente insegurança de posse de terras porque a qualquer momento o próprio Estado nos retira esse direito”, lamenta Alda Salomão.

As justificações do desenvolvimento económico e social são imensas: Sasol, Kenmare, Rio Tinto, Vale, Jindal, ProSavana, Anadarko, Portucel …“É preciso que o Governo nos mostre de maneira concreta como é que vai acautelar e proteger os direitos dos cidadãos moçambicanos”, insiste a activista que também sugere que em vez de se fazerem revisões ad-hoc à Constituição, como por exemplo se manifestou intenção de realizar em resposta a uma solicitação da Procuradora Geral da República, “vamos fazer um levantamento à legislação que temos neste momento e vamos verificar quais são os assuntos sobre os quais a Assembleia da República precisa de intervir”.

A nossa entrevista citou algumas questões, no âmbito do direito à Terra, que precisam de ser acauteladas, como, por exemplo, os cidadãos são tratados de maneira diferente no meio rural e no meio urbano. “(…) se eu quiser de vender a minha casa que é propriedade privada não tenho problemas e com a transferência da titularidade sobre a casa transfere-se automaticamente a titularidade sobre a terra, porque é que não se passa a mesma coisa no meio rural? Eu posso vender a palhota mas já não se transfere automaticamente para o novo proprietário a titularidade do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) no meio rural. São princípios diferentes que são aplicados no meio rural ou urbano, e não se percebe porque há tratamento diferenciado”.

Foto de Adérito Caldeira“(…)Outra confusão é que apesar desta prescrição da lei no meio rural, por indicação constitucional (no meio rural a terra é gerida com base nas práticas e costumes tradicionais, em tudo aquilo que não viole a Constituição), o regime aplicável é o regime costumeiro tradicional. Isso quer dizer que esta norma forma não é a norma que se aplica no direito costumeiro que é aplicado pelos líderes tradicionais. Quando alguém vende a sua casa, vendeu o seu terreno também. Que exercício é que foi feito de conformação do regime costumeiro à Constituição” questiona a jurista que cita outra situação que também precisa de ser dirimida. “Por exemplo, em termos de igualdade entre o homem e a mulher, etc. Segundo o regime costumeiro, a maior parte, a mulher não tem direitos”.

Tal como a maioria da sociedade moçambicana, Alda Salomão também não entende a pertinência e urgência do pedido de declaração de inconstitucionalidade da Procuradoria-Geral da República (PGR) em torno do Regulamento do Solo Urbano, “ (…) seria interessante perceber qual é o problema que a PGR está a tentar ver resolvido, de quem é o problema que se está a resolver”.

Alda Salomão destaca ainda outra questão que estaria sujeita à revisão constitucional. “(…)A Constituição de 2004 incluiu uma provisão que nós achamos revolucionária e que de alguma maneira reforça este quadro de tratamento especial que se dá ao meio rural, aos direitos das comunidades rurais etc. ao introduzir no artigo 98 número 3 se não me engano a provisão de que existem três domínios públicos sobre a terra e recursos naturais: o domínio público do Estado, o domínio público dos municípios e, a inovação, o domínio público comunitário. O domínio do Estado integra as áreas de conservação, as áreas de protecção parcial entre outras em que onde a ocupação ou titulação privada é excluída porque são para responder a interesses públicos do Estado e é por isso por isso que a lei de terras proíbe que sejam emitidos DUATs nestas áreas. No domínio público municipal será a mesma coisa, há áreas que não podem ser passíveis de titulação individual etc. Agora criou-se esta terceira componente mas nas zonas comunitárias há áreas que também não são passíveis de titulação privada. Fazemos a mesma interpretação? Estamos a falar de áreas de uso comum como as florestas sagradas, os cemitérios, as áreas de pastagens, os cursos de água entre outras áreas que são para uso colectivo. Mas não é assim necessariamente que as coisas acontecem no meio rural, então como é que nós compatibilizamos a percepção destas disposições para que haja um argumento também ao nível comunitário. E depois a Constituição diz que o regime jurídico para o regime público comunitário será estabelecido em lei ordinária, desde 2004 estamos em 2015 ainda não temos a lei ordinária que regula a gestão da terra e recursos naturais de domínio público comunitário. Se nós vamos fazer um exercício de abordagem das inconstitucionalidades e eventuais lacunas há várias outras, a Assembleia da República é que tem responsabilidade de resolver isso”, conclui a nossa entrevistada.

“Temos vergonha da maneira como as instituições do sector de terras funcionam”

O Plano Quinquenal do Presidente Nyusi enfatiza o imperativo de “fortalecer a acção de planeamento e ordenamento territorial e assegurar a adopção de tecnologias apropriadas para garantir que as actividades produtivas, incluindo a exploração de recursos naturais minimizem o impacto negativo sobre o ambiente e as comunidades”, e a directora do Centro Terra Viva recorda que em 2007 foi aprovada a Lei do Ordenamento Territorial, que impunha um prazo para que todas as administrações do distrito tivessem planos de uso de terras. “Neste momento todas as administrações distritais que não têm planos de uso de terras aprovados e publicados no Boletim da República estão em situação ilegal, e têm de pagar uma multa”.

O cumprimento das leis moçambicanas é um grande problema do próprio Governo, segundo a jurista ambiental. “(…) Quando temos uma instituição do Estado, que é o Executivo, a tomar decisões que prejudicam o interesse do Estado nós temos um grande problema aí. Penso que neste momento a prioridade seria purificar as fileiras do Executivo para nós construirmos uma estrutura ética e moral que precisamos de ter para que a Administração Pública funcione. Neste momento nós temos vergonha da maneira como as Instituições do Executivo do sector de Terras funcionam, a proliferação de ilegalidades é de tal dimensão e de tal ordem que não temos como continuar assim”.

A emissão do DUAT sobre sete mil hectares na Península de Afungi, Distrito de Palma, em Cabo Delgado, atribuído em 2014 pelo Governo de Armando Guebuza, à Empresa Nacional de Hidrocarbonetos, E.P. (ENH), para a implantação da Fábrica de Liquefacção de Gás Natural, é apenas mais uma entre várias ilegalidades que têm sido cometidas pelos governantes em Moçambique do topo à base por isso é preciso que “nós tenhamos coragem de responsabilizar”, diz Alda Salomão que lembra aos moçambicanos que “(…) o Governo é uma instituição criada pelos cidadãos para atender aos assuntos deles, o judiciário a mesma coisa, o Parlamento idem, eles não podem esquecer que eles estão ali para servir o interesse dos cidadãos. Se não temos instituições que não respondem aos interesses e as prioridades dos cidadãos então essas instituições não estão a cumprir o seu papel, e os agentes do Estado não são o Estado. E se eles não agem em conformidade com aquilo que é a lei, eles têm que ser responsabilizados. Nós chegámos a um nível de impunidade que é pernicioso para o próprio Estado. Se eu sou um director nacional, provincial, etc., e no exercício das minhas funções eu não cumpro com rigor e o conhecimento técnico que eu tenho as minhas responsabilidades, eu induzo o Estado a tomar uma decisão errada”, remata a nossa entrevistada.

Foto de Adérito CaldeiraAlda Salomão chama a também atenção para algumas acções que podem evitar conflitos, “(…) nós temos um conhecimento mínimo da estrutura ecológica do país, temos um conhecimento mínimo de onde é que as pessoas estão, temos um conhecimento razoável de onde é que temos o potencial dos grandes recursos dos diferentes sectores, então vamos fazer uma projecção de que mexidas é que nós vamos ter que fazer para permitir que o país se desenvolva mas de forma que as pessoas e outros interesses também sejam protegidos. Se eu tenho num corredor de elefantes duas ou três aldeias, qual é o resultado? Conflito homem e animal de alto a baixo todos os dias. Porque é que nós estamos a permitir que as pessoas instalem os seus assentamentos e aldeias em qualquer parte? Como é que as populações que estão sob a jurisdição de um chefe de localidade continuam a fazer assentamentos de qualquer maneira? Esse responsável da administração local tem que ter um mínimo de controlo sobre a sua área. É preciso organizar todos estes níveis da administração pública para que eles comecem a organizar a ocupação do espaço”.

Mas não é só dos agentes do Estado a responsabilidade, os moçambicanos têm que perceber que é sua obrigação conhecer a legislação que vigora neste país, “(…) uma sociedade iletrada legalmente é uma sociedade susceptível de ser abusada, porque não se apercebe do que lhe está a acontecer e quando desperta já passou. Porque é que os tribunais já não são usados? Porque os cidadãos têm esta percepção e sabem que resolver os assuntos por via dos tribunais é um processo penoso, moroso, custoso, e quando do outro lado temos uma contraparte muito forte as probabilidades dos nossos direitos serem acautelados são poucas, mesmo tendo toda a razão do mundo. Mas quanto mais bem informados e preparados os cidadãos estiverem mais reduzida será a possibilidade de o poder abusar, haverá abusos mas serão reduzidos. E os desmandos do dia-a-dia terão menor possibilidade de prevalecer se os cidadãos estiverem lá e atentos com capacidade de confrontar iniciativas e decisões incorrectas (…) As pessoas têm que começar a estudar as leis, conhecê-las e dominá-las, e não é só saber que eu tenho um direito é como é que eu protejo esse direito”, afirma a directora do Centro Terra Viva que entende também que os moçambicanos não têm uma visão comum da estratégia de desenvolvimento do país e porque os cidadãos não têm educação vai prevalecer “a visão de quem mais pode, a visão dos mais poderosos”.

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