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Macoloma: Para a criança sem braços nascida na cidade da Beira

Ao Adelino Timóteo

e a todas as crianças sem futuro

Lembrei-me, uma vez mais, do verso de David, em Salmos, o que me magoa é que o Altíssimo já não é o mesmo. Recordei-me também, agora que nasceu esta criança, da devastadora frase de Milan Kundera, Deus abandonou-nos.

Na semana passada quis escrever uma carta para ti, minha querida, mas não consegui. Nas teclas do meu computador aparecia o teu corpito delicado, sem braços, e via ainda o teu peito pequenino batendo em obediência ao teu coraçãozinho reservado para as grandes dores deste mundo que te acolhe hoje. E toda esta cascata dolorosa demoveu-me. Mas mesmo assim não consegui dormir, até agora que a força de te escrever continua a impelir-me.

Já secaram as lágrimas, que tinham transformado todo o meu sentimento numa albufeira, e mesmo assim sobraram as crostas da dor que ainda sinto por saber que nunca terás as mãos para acariciar o teu próprio rosto, muito menos para devolver o afago que a tua mãe te vai dar sempre.

Se calhar vão-te arranjar umas mãos que nunca terão o teu sangue e, nessa condição, não encontrarás outra saída senão conformares-te com o teu destino.

O que me dói mais é saber que ainda não te apercebeste da falta dos braços no teu corpo, muito embora o avançado estágio da Ciência te possa compensar amanhã, com outros membros que poderão, eventualmente, ajudar-te a erguer a cabeça. Deus queira!

Oh, minha querida, nem conheço o teu nome, gostaria tanto de pronunciá-lo suavemente, agora que escrevo para ti. Ver o teu sorriso ao ouvires a minha voz. Ouvir o teu choro misturado com as águas do Chiveve, e esquecer- me de uma vez para sempre de que nasceste sem os braços.

Desejo muita força à tua mãe que, depois de suportar as dores do parto, para dar à luz a uma criança que ela sempre quis, agora vai carregar para toda a vida esta dor que deve transformá-la em energia.

“A dor não se esquece”, dizia Oprah Winfrey, supera-se. É isso, minha querida, tu também vais superar esta dor da Natureza. A Ciência está também para ti, a Ciência e Deus, muito embora tenhas nascido num país em que os governantes que temos ainda não perceberam muito bem qual é o valor de investir na área da Saúde.

É isso meu bem, temos governantes que olham muito para eles próprios, e pouco para nós. Olham tanto para eles que até chegam ao ponto de insultarem a nossa dignidade, como o fez há dias o ministro Cuereneia, quando abordava o caso do HIV. Ele veio, uma vez mais a terreiro, exibir sobretudo a sua irresponsabilidade, para além da mesquinhez e ignorância. E infelizmente, é este tipo de pessoas, com mente tacanha, que nos governam.

Espero que as coisas tenham mudado quando cresceres. Oxalá, nessa altura, tenhamos hospitais melhor apetrechados, e dirigentes mais humanos. Mais responsáveis. Acredito que sim, minha querida. Acredito que serás feliz.

Deus te devolverá toda essa descompensação, como o fez a Job. Vais enxugar as lágrimas da tua mãe com as mãos que não tens. Vais abraçá-la com os braços que não tens. E, se calhar, nessa altura vais-te lembrar desta carta que vou pedir à tua mãe para guardar.

Pois é, fico por aqui, meu bem. Escrevo-te de Inhambane, minha terra, e daqui envio-te um ramo de flores, com um beijo em cada pétala.

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