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Ndzuti para os moçambicanos!

Ndzuti para os moçambicanos!

Muitas vezes, a miséria humana fecunda-se no facto de pensarmos que é causada pela (in) acção de outrem. No dia em que pararmos para reflectir sobre a nossa atitude em relação ao mundo, provavelmente a nossa vida ganhará (novos e) melhores rumos. No seu mais recente trabalho discográfico, Ndzuti – o mesmo que Sombra -, o célebre etnomusicólogo moçambicano, Ivan Mazuze, transcende a introspecção. Quer saber porquê? Escute o álbum…

Além da sombra, geralmente, no sul de Moçambique, a palavra ndzuti é associada à situação da paz assim como do sossego. Foi com esta ideia que, muito recentemente, partimos ao encontro de Ivan Mazuze, um dos mais célebres etnomusicólogos jovens que o país presentemente possui, para travar uma conversa em torno do seu mais recente trabalho discográfico.

No entanto, se durante várias vezes, construir o nosso conceito em relação à realidade que nos circunda, assim como sobre os diversos objectos artísticos de que temos falado se revelou estratégico, desta vez a proeza não se repetiu.

É que, de acordo com o seu autor, os propósitos que instigaram à criação do álbum Ndzuti não têm, necessariamente, muita relação com o anseio ao sossego nem à paz – ainda que as suas músicas confiram a quem as escuta esta sensação. O trabalho discográfico revela uma relação intrínseca com o seu criador. Com a sua sombra, a sua essência, aquilo que denomina de segunda identidade. Senão leiamos:

“Não cheguei a pensar nos aspectos da paz nem mesmo do sossego mas, sim, na sombra. Por isso, penso que a sombra como nome do álbum é um pormenor psicológico que não difere da minha segunda identidade. A produção do álbum deve-se a uma série de exercícios que tenho realizado, nos últimos três anos, no campo da música para o meu desenvolvimento artístico”, afirma.

Aliás, trata-se de uma música que modifica a nossa concepção sobre a arte de musicar. É como se o artista tivesse acatado pormenorizadamente as orientações do célebre escritor português, Fernando Wagner, que – na sua obra sobre Técnica e Teoria Teatral – admoesta: “Na música ou na pintura há uma técnica tão perfeitamente definida, que ninguém ousaria dar um concerto ou exibir um quadro sem anos e anos de estudo e uma carreira dura, difícil e bem programada”.

Isso é o que Mazuze, um jovem que se dedica à música há bastante tempo, faz no seu álbum. E fá-lo com método, o que concorre para que em Ndzuti a música seja uma linguagem universal. Uma mensagem, de tal sorte que se chega a ter a impressão de que, a originalidade de algumas músicas é sublimada pela excelente interpretação vocal dos artistas convidados.

“Em determinado momento da minha carreira parei de fazer, nas minhas abordagens musicais, análises sobre os trabalhos dos artistas que admiro com o objectivo de desenvolver a minha personalidade artística. Como tal, comecei a realizar uma crítica de maneira contrária, no sentido de que analisei a mim mesmo, como condição para atingir alguma evolução”, afirma acrescentando que “analisei- me como pessoa, mas também como sombra que é o meu próprio reflexo.

Para o efeito, recorri a uma série de equipamentos tecnológicos que me possibilitaram realizar trabalhos, assim como a sua visualização para que eu procedesse a uma análise. É nesta perspectiva que nasceu o álbum Ndzuti”.

Não temos essa cultura

O afrocentrismo que se defende em Ndzuti – em termos dos instrumentos musicais mais explorados – glorifica África. De qualquer modo, para quem acompanha a carreira de Ivan Mazuze, com particular destaque para quem possui o seu primeiro trabalho discográfico, Maganga, notará facilmente que as diferenças são mínimas.

Pelo menos é o que o artista defende. Afinal, no seu juízo, “há muita correlação entre Ndzuti e a minha pessoa. Basta reparar que neste álbum faço estudos para atingir um desenvolvimento pessoal. Trata-se de uma introspecção que realizo como um artista”.

Introspecção – como decidimos definir a sua auto-análise crítica – pode ser uma palavra pesada ou até mesmo ousada. Mas quando nos vêm à consciência a motivação do nosso interlocutor em relação ao referido exercício, assim como aos eventuais benefícios, no sentido lato da palavra, a vontade de instigar os nossos contemporâneos a seguir o seu exemplo, nos seus diversos campos de acção, é crescente.

Muito em particular porque, de acordo com Mazuze, “nós, as pessoas não temos o hábito de parar para nos julgamos a nós mesmos. Sempre temos a tendência de julgar os outros. Ou esperar que os outros nos julguem em função da nossa acção”.

Em certo sentido, “eu procedi de modo completamente contrário. O que significa que com base na minha produção musical faço o meu próprio julgamento. Faço uma análise crítica negativa ou positiva de mim mesmo para perceber o meu percurso”.

Exposição à miscigenação cultural

Num outro desenvolvimento, Ivan Mazuze referiu-se à sua carreira associada à sua deslocação à África do Sul bem como em relação a Noruega, onde presentemente vive, para afirmar que uma das grandes diferenças que existe entre os três pontos do mundo é a dimensão da indústria cultural.

Aliás, tais diferenças são notáveis quando se compara quase toda a África Austral com a Noruega. É que, na visão de Ivan, as similaridades que prevalecem entre os países da África Austral derivam da contiguidade espacial, bem como de muitos traços culturais de vivência, como as línguas bantu.

No entanto, “quando comparo a Noruega com a África Austral sinto que as diferenças são gritantes. Há uma enorme diferença cultural que se traduz basicamente nas vivências de ambos os povos. A Noruega é um país que se localiza no norte da Europa, nas Ilhas Escandinavas”.

Por isso, “o que tenho analisado, em relação ao consumo da música, entre todas estas audiências, é que elas têm um comportamento diferente. Os elementos considerados fantásticos em Moçambique e/ou na África Austral não serão necessariamente os mesmos no norte da Europa”.

Mesmo na Europa, “onde tenho realizado digressões em diversas regiões, nota-se uma série de diferenças entre os públicos. Consequentemente, eu, como artista, estou exposto a inúmeras influências de produtores, criadores de músicas, públicos, e estilos de música com que tenho interagido. Isso reflecte-se no meu trabalho”.

Em resultado disso, as diferenças das culturas influenciam o artista na sua maneira de compor e/ ou de tratar a música. Ndzuti pode, por assim dizer, ser considerado um trabalho discográfico em que se sintetiza tal miscigenação artístico-cultural. Afinal, foi totalmente produzido na Noruega, tendo artistas europeus, outros africanos e, precisamente, moçambicanos.

Entretanto, no seu Caderno Cultural publicado na semana passada, o Jornal Notícias considera que Ivan Mazuze “leva-nos a uma viagem virtual através dos seus característicos sopros, cuja flauta, saxofone, tenor e soprano revelam os conceitos musicais do autor”. Associando-se a isso, perguntámos a Ivan se havia um aspecto peculiar da sua vida reflectido em Ndzuti.

O artista engendrou uma resposta afirmativa, esclarecendo que a música Ndzuti, por exemplo, que constitui o título do álbum, é baseada na vivência e/ou na experiência que teve na altura em que era estudante na Escola de Nacional de Música em Moçambique.

“Recordo-me de que o meu primeiro concerto internacional, como estudante de música, foi realizado em Joanesburgo, onde ia participar numa conferência de música. Ainda tenho em mente que na referida conferência havia uma orquestra de instrumentos de percussão tradicional africana. Naquele momento fiquei interessado em desenvolver um trabalho em que pudesse aplicar tais instrumentos. Ou seja, desde sempre quis incorporar aquele material na minha música ou desenvolver um trabalho que me possibilitasse uma expressão no seio daquele conceito de percussão”.

Por isso o álbum Ndzuti é, em grande parte, uma orquestra de percussão africana que inclui instrumentos contemporâneos como o saxofone, a flauta, o tenor e vozes.

Não somos um espaço cosmopolita

Entretanto, se a experiência de regressar à “Pátria Amada” e, independentemente dos seus propósitos, receber um acolhimento caloroso de familiares, amigos e comunicação social – que considera estar-se a tornar cada vez mais vibrante -, para Mazuze, o nosso país ainda está muito longe de se tornar um espaço cosmopolita. Pelo menos na área das artes.

“Infelizmente não temos muitos artistas em Moçambique que não sejam moçambicanos. Ou seja, artistas que estejam por algum tempo a trabalhar no país nas mais diversas áreas artísticas. Então quando se fala do cosmopolitismo, em relação à cidade de Maputo, penso que é muito complicado argumentar porque não existem muitos artistas dos outros países a operar nela”.

Se existem, então, “são docentes que trabalham nas escolas de arte, como, por exemplo, na Escola de Comunicação e Arte e no Instituto Superior de Artes e Culturas. No entanto, muitas vezes as suas actividades limitam-se à docência.

Não transcendem para a indústria musical moçambicana. Por esta razão, o país ainda não possui uma dinâmica forte na indústria musical como a que se pode notar em países europeus – como França, Itália, Portugal, Inglaterra, etc., onde as migrações de artistas de todo o mundo são características”.

No campo das artes, “a Europa abriu- -se para o cruzamento de pessoas vindas de África e de outras partes do mundo, o que nós, em Moçambique, não temos. Essa miscigenação é importante na medida em que possibilita a partilha do conhecimento cultural que o artista detém assim como para aprender das experiências alheias”.

De qualquer modo, “devo referir que sou muito grato a Moçambique, sobretudo no campo da comunicação social, porque sempre que tenho vindo sou bem acolhido. Os moçambicanos são atentos e estão sempre abertos a ouvir se há algo de novo em relação aos meus trabalhos, como para ajudar a tornar tal informação pública e publicada. Então, nesse sentido, é sempre positivo voltar a casa, sentir que a nossa imprensa está vibrante”.

Primeiros concertos na Europa

Ndzuti é um disco que existe há menos de um mês, o qual pode ser adquirido por qualquer pessoa interessada em Maputo. A sua distribuição comercial teve início nos países escandinavos – na Europa – através da editora Etnisk Musikklubb, a entidade responsável pela produção, divulgação e promoção do mesmo.

Moçambique é o primeiro país africano que recebeu os primeiros exemplares do disco. No entanto, no primeiro semestre do ano em curso, não será possível a realização de concertos para a apresentação, divulgação e promoção do álbum no país. Razões de natureza logística e organizacional definidas pela Etnisk Musikklubb como não sendo estratégicas para que tal aconteça, agora, estão na origem da situação.

De uma ou de outra forma, Ivan Mazuze irá inaugurar uma digressão pela Europa a partir de Abril que se aproxima. O que significa que os seus concertos podem ser demandados naquela região do mundo. A série oficial de concertos arranca no dia 12, na cidade de Oslo, em Noruega, e será alargada a todo o país.

Além de alguns locais noruegueses nunca antes visitados por Mazuze, a apresentação das 11 faixas que compõem o álbum Ndzuti será realizada em países como Dinamarca e Suécia, em uma actividade que irá durar dois meses. Só depois é que o artista e a sua banda realizarão espectáculos em Maputo.

O álbum

De acordo com o seu mentor, o álbum Ndzuti reflecte as experiências e o percurso artístico por si realizado nos últimos dois anos na Noruega, incluindo a sua relação com alguns músicos internacionais com quem tem trabalhado. O disco conta com a participação de artistas noruegueses que compõem a banda de Ivan Mazuze, bem como de alguns moçambicanos que residem na Europa como, por exemplo, Deodato Siquir e Isildo Novela.

O pianista cubano Omar Sossa, que conheceu Mazuze no contexto de um festival internacional de música denominado African History Week, realizado em Noruega, é um dos convidados especiais que participa em Ndzuti. Outra figura não menos importante na cena da música africana é o percussionista maliano Sidiki Camara, assim como a baixista costa-marfinense, Manou Gallo, que se está a tornar uma verdadeira revelação do jazz africano na Europa.

Por outro lado, é mestre mencionar o nome do conceituado compositor e intérprete moçambicano Deodato Siquir, radicado na Suécia, assim como Isildo Novela que reside na Dinamarca. Portanto, trata-se de artistas moçambicanos que engrandecem a música do nosso país através do seu trabalho inquestionável.

Entretanto, quando comparado ao seu primeiro trabalho discográfico, Maganda, Ivan Mazuze esclarece que Ndzuti é um disco em que se privilegiou uma produção sonora mais acústica.

Isso equivale a afirmar que prevalece a exploração de um piano acústico que expressa um Jazz ao estilo norueguês, sobretudo porque é executado por um artista daquele país. Explora-se ainda uma percussão tradicional africana que, no álbum, cria uma dinâmica que evidencia as origens e a cultura moçambicanas.

Sublimar as origens

Ivan Mazuze é autor de uma tese de mestrado na qual se desenvolve uma discussão sobre “O Significado da Música nos Rituais de Psikwembu no Sul de Moçambique”.

É sobre esse assunto que reconhece que, “escrever aquela tese significou realizar um trabalho que trespassa o meu interesse. Foi uma forma que encontrei para contribuir na literatura académica moçambicana na área da música. Agora quando digo que possui uma componente de interesse pessoal é porque sempre tive claro que, ainda que possamos viajar pelo mundo, é importante regressarmos às nossas origens”.

Afinal, “para que uma se possa identificar – como aquilo que é – precisa de possuir um fundamento. Para mim, tal fundamento é a minha cultura. Recordo-me de que quando era criança fui exposto aos rituais de Xikwembo. Por isso, ainda na academia, a realizar o curso de mestrado em etnomusicologia, conclui que não haveria melhor forma de retribuir às referidas vivências do que desenvolver uma tese sobre o tema”.

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