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Um poeta militar e suburbano!

Um poeta militar e suburbano!

Se no tempo colonial a literatura moçambicana debilitou as injustiças sociais do sistema vigente, nos dias actuais, caso a poesia produzida pela juventude queira afirmar-se, deve rechaçar as maldades – como, por exemplo, a corrupção e a perda de valores morais – que vigoram, contribuindo para o desenvolvimento do país.

No bairro suburbano de Chamanculo, algures em Maputo, Sérgio Raimundo, jovem inconformado em relação a muitos aspectos sociais degradantes, já se tornou um poeta militar. A sua escrita é impactante.

Num país com poucas oportunidades de emprego e uma taxa de desemprego abismal, o que é que um jovem faz quando não é aprovado nos exames de admissão para a universidade sabendo que, em resultado do insucesso, terá pela frente 365 dias de total desocupação? Candidata-se ao serviço militar? Torna-se vendedor ambulante e/ ou marginal? Ou então, gradualmente, a desocupação fecundará em si alguma frustração?

Ao que tudo indica, ainda que não se tenha pensado seriamente sobre o tema no país, o assunto é sério. É provável que alguns jovens moçambicanos, que este ano não conseguiram uma vaga no ensino superior nem um posto para trabalhar, estejam numa das condições acima referidas.

As mesmas questões percorreram a mente de Sérgio Raimundo, um jovem residente do bairro de Chamanculo, que em 2011 concluiu o nível médio do ensino geral, não tendo sido admitido à universidade.

“Fiquei chocado quando soube que não estudaria”, confessa o miúdo acrescentando que, afinal, “compreendi que apesar de eu ser artista, a poesia não me poderia ocupar todo o tempo. Pensei em inscrever-me aos cursos de nível básico/ médio como, por exemplo, a Electricidade. Mas, infelizmente, as condições financeiras não me permitiram. Em resultado disso, tive que aplaudir o discurso do empreendedorismo”.

Na verdade, Sérgio Raimundo é uma pessoa que chamou a nossa atenção há bastante tempo. Conhecemo-lo nas Noites de Poesia dinamizadas pelo Centro Cultural Moçambique-Alemenha, capital do país. O nosso interesse por ele não se justifica, necessariamente, por ser exemplo de alguém que não se deixou frustrar pela não admissão à universidade, devido ao seu envolvimento profundo e criterioso na literatura.

Em 2009, quando tinha apenas 17 anos de idade, participou no concurso Slam Poetry, evento no qual a sua performance recebeu uma crítica favorável do júri, não somente a sua forma de declamar mas também a contundente abordagem que fez em relação ao tema da morte. De qualquer modo, vale a pena afirmar que muito antes disso, Raimundo havia conquistado outros prémios nas artes cénicas em certames realizados na cidade de Maputo.

Actualmente, o seu nome consta da restrita lista dos artistas moçambicanos premiados ou mencionados pelo Prémio Internacional de Poesia Nossid, promovido anualmente na Itália.

Estas e outras razões constituíram motivação suficiente para @Verdade desenvolver uma matéria sobre o artista que, ainda em tenra idade, conquista uma legião de admiradores nos palcos em que se apresenta. No entanto, antes de desenvolver a temática sobre o Sérgio Raimundo na arte, é mestre revelar os mecanismos que este cidadão engendrou para contornar uma provável frustração derivada da falta de uma ocupação salutar.

“Compreendi que as crianças do meu bairro – como tantas outras desconhecidas, pelas razões que todos conhecemos e que debilitam o ensino – têm uma série de dificuldades na escola. Foi assim que me surgiu a ideia de abrir um centro de explicação para apoiar tanto as crianças favorecidas como as desfavorecidas. Isso tem sido importante porque constitui uma ocupação salutar para mim”, explica.

Na verdade, Sérgio Raimundo está a reciclar o seu conhecimento, num exercício cujo impacto imediato pode ser a ampliação da compreensão dos seus alunos em relação à matéria leccionada na escola, como também a sua autopreparação para os exames de admissão à universidade para o ano académico 2013. Afinal, as suas aulas envolvem matérias até o nível básico do ensino secundário geral.

Um poeta militar

Poeta Militar é como se identifica o artista Sérgio Raimundo, ainda que nalgumas vezes utilize o seu nome oficial para o efeito nas lides da arte. Na literatura, este jovem é contista, ensaísta, explorando ainda o teatro. De qualquer modo, o facto de o pseudónimo de Poeta Militar sugerir ambientes bélicos, um tipo de poesia de combate e/ou de militância, aguça a nossa curiosidade. Porque é que um poeta deve ser militar?

O artista explica que desde 2006, altura em que, instigado por um grupo de jovens associado num movimento cultural que se chama Arrabenta Xithokozelo, começou a apresentar-se publicamente em recitais identificava-se com o seu nome de registo. No entanto, uma profunda transformação operada nas suas abordagens poéticas impeliu-o a assumir outra identidade.

Nessa época o criador já tinha participado em vários eventos de literatura, nos quais conhecera muitos artistas que encontram na palavra a sua matéria-prima para produzir. O impacto disso foi ganhar uma nova e ampla visão sobre o mundo em que se encontrava.

Assim, surgiu o Poeta Militar como um sujeito poético que usa a poesia – equiparada a armas – para combater qualquer mal no espaço social. Trata-se de uma figura que não faz da poesia um espaço, apenas, para expressar os seus sentimentos líricos mas, acima de tudo, concebe-a como um instrumento que, uma vez bem utilizado, pode contribuir para o desenvolvimento social da nação.

Aliás, esta maneira crítica de pensar o mundo, por parte de Raimundo, não é hodierna. A criminalidade e a indiferença das pessoas perante actos criminosos, no seu bairro, muitas vezes perpetrados por pessoas conhecidas, a quem se receia denunciar por temer represálias, já o incomodava quando era adolescente.

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Nos dias que correm, “no meu bairro há vários problemas que a comunidade não consegue resolver. Em resultado disso, todos depositam a fé no estudante universitário local. É como quem diz que o nosso filho está a estudar Ciências Políticas. Depois de concluir a formação irá dar-nos indicações sobre como resolver este ou aquele problema. Infelizmente, o que tem sucedido é que, depois da formação, os jovens esquecem-se de apoiar a sociedade”, diz.

Revoltado com a morte

A explicação sobre a adopção do sujeito poético Poeta Militar é plausível. Mas parece não ser suficiente. É como se algo adicional existisse em relação ao nome. Mas o que será?

É que, no seu processo evolutivo, Sérgio Raimundo começou por apreciar as correntes de pensamento publicadas em certo jornal nacional. Mais adiante, leu seriamente os textos de artistas moçambicanos como José Craveirinha, Juvenal Bucuane, bem como de Eduardo White. Até que conheceu os Arrabenta Xithokozelo que o instigaram uma aprendizagem sobre a poesia da metafísica.

Os referidos jovens colocaram o Poeta Militar em contacto com obras de alguns dos maiores poetas do mundo da lusofonia como, por exemplo, Vinícius de Morais, Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, assim como Frederico Garcia Lorca e Pablo Neruda. Os textos do jornalista moçambicano Celso Manguana também jogaram um papel estratégico na formação deste poeta.

Aliás, é desse contacto que “as minhas abordagens em relação à morte derivam. Elas são o resultado da militância poética de Garcia Lorca e de Pablo Neruda”.

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Mas a verdade é que, “eu comecei a escrever sobre a morte sem me aperceber. O que eu sei é que no ano 2009 tive muitos encontros directos com a morte. Assisti a várias mortes seguidas quer de familiares, quer ainda de amigos e companheiros muito queridos”.

Como tal, “aconteceu-me uma coisa que acontece a todos os poetas. Registar os desastres que influenciam a sua vida. Por isso, tendo sido açoitado pela perda de pessoas queridas, fiquei revoltado com a morte, ao mesmo tempo que me tornei seu companheiro. Comecei a escrever sobre ela. No entanto, não numa vertente tenebrosa, como se propala”.

“Recordo-me de que Vinícios de Morais, num texto que dedica a Garcia Lorca, escreve que a morte é fácil de madrugada. Então esses autores acabam por inspirar-me”. De uma ou de outra forma, “penso que, para mim, a maneira como abordo a morte pode não é tão profunda como se diz. O que é facto é que, sempre que declamo um texto sobre o tema, as pessoas me têm interrogado sobre a sua autoria. Elas pensam que não seja eu o seu autor”.

Ameaças no Facebook

Qualquer pessoa que visitar a rede social Facebook, e analisar o comportamento dos usuários moçambicanos, perceberá que Sérgio Raimundo é um dos poucos utentes daquela ferramenta que utiliza de forma séria e salutar.

Até porque “sendo eu, uma pessoa sem grandes meios e recursos financeiros para interagir directamente com os artistas internacionais, uso a Internet para intercambiar as minhas ideias, enviando-lhes os meus trabalhos. O Facebook é um espaço onde eu costumo deixar os meus pensamentos fluírem. Alguns versos que me surgem na rua registo e publico imediatamente naquele espaço virtual. Por isso, é um local em que mantenho contacto com as pessoas que admiram a minha obra”.

Nesse contexto, em certa ocasião, o poeta publicou um trecho de um texto intitulado Sociologia Fácil, no qual escreve o seguinte: “Eu digo não:/ — a todas as greves simuladas com panfletos sujos de dizeres pacíficos./ Não, a esta sociedade com semáforo no pensamento./ Lâmpada vermelha sempre acesa, não há desenvolvimento.”

Alguns dos seus amigos virtuais apreciaram o referido trecho favoravelmente. Mas outros não gostaram do seu teor. E, levando a sua posição ao extremo, desencadearam acções para ameaçar o jovem escritor.

Na verdade, “as pressões que tenho sofrido no Facebook provêm de amigos virtuais. O que eu não sei é se tais ameaças são de carácter pessoal ou então eles estão a responder a recomendações de terceiros”. De qualquer maneira, “penso que é normal porque a arte nem é sempre percebida. E eu não seria excepção”.

Aliás, “as pessoas deviam perceber que agora estamos a viver um mundo contemporâneo em que o Homem se libertou dos devaneios e fantasias. Não podemos fazer arte pensando em agradar alguém. Temos que registar aquilo que vivemos. Já se foi o tempo em que se escrevia textos cheios de imaginações. Devemos retratar a realidade tal como ela é nos nossos versos”, diz explicando que não irá abandonar as suas práticas literárias.

Não há poesia no subúrbio

Sempre que há eventos culturais na cidade – mesmo que seja para passar horas a fio, esperado pelo deficiente transporte da capital – os artistas, ensandecidos pela sua missão, perseveram até o fim. Esta migração deixa o subúrbio, donde muitos artistas provêm, empobrecido. Não há saraus culturais na periferia de Maputo.

O que sucede é que “nós, os artistas suburbanos temos preguiça de organizar eventos culturais nos nossos bairros. Eu recordo-me de que no princípio realizava recitais de poesia na escola, mas acontecia que as aulas eram muito interrompidas. Até que o director entendeu que os saraus culturais deviam observar um interregno. Daí nós saímos para o bairro, onde o evento conquista uma grande adesão do público”.

No mesmo ano, “realizámos um projecto que ficou conhecido pelo nome de Poesia no Mercado. Recitávamos textos nos bazares periféricos, mas depois tivemos problemas de tal sorte que a iniciativa desapareceu.

De qualquer modo, eu sinto que há falta de vontade de crescer onde nascemos. Por isso, sempre recorremos à cidade”.

Prémios

Desde o ano de 2007 a esta parte, Sérgio Raimundo já conquistou perto de cinco prémios em eventos ligados à literatura, em Maputo. É por essa razão que, para si, sempre que se fala sobre a premiação, no contexto do seu percurso artístico, sente-se congratulado. Sobretudo porque acredita que, caso não tivesse conquistado tais menções, talvez estivesse em lugar incerto em relação à literatura.

Mas o que é que nos dizem tais menções em relação às suas expectativas na carreira de escritor? “Penso que as menções e premiações são o resultado das investigações e discussões que tenho feito em volta da literatura. Afinal, pelo menos, uma vez por semana dedico tempo para discutir – no bom sentido da palavra – a literatura com pessoas bem entendidas no assunto como, por exemplo, o professor Lucílio Manjate”.

Por isso, “acredito que já estou em condições de publicar o meu primeiro livro. Apesar de que, em 2009, tive uma oportunidade de publicar os meus textos, mas na altura senti que eles precisavam de alcançar alguma madurez. Então, recusei o referido ensejo”.

Sérgio Raimundo diz que conhece poetas jovens que tiveram a oportunidade de publicar livros, mas pelo facto de não terem sabido criticar as suas obras – o que fez com que respondessem de forma precipitada às oportunidades – actualmente sentem-se envergonhados com o tipo de texto que publicaram. Afinal, não estavam preparados. Não souberam aproveitar da melhor forma a oportunidade.

Entretanto, desengane-se quem pensa que ser poeta jovem em Maputo – ou em qualquer região do país – seja fácil. Todavia, o Poeta Militar considera que com um pouco de empenho, de investigação bem como de interacção com outros artistas, o referido ofício acaba por ser muito agradável.

De qualquer modo, o que o torna mais lisonjeiro é fazê-lo com e/ou por prazer. “Sinto que o que me tem dado sucesso nos projectos em que participo é a interacção que tenho mantido com artistas nacionais e de outras partes do mundo”.

Projectos

O nosso interlocutor diz que não possui nenhum financiamento, mas tem muitos projectos ligados à área da literatura que pretende realizar. Aliás, no mês de Abril que se aproxima o artista irá lançar uma revista literária electrónica denominada Rabisco. A mesma contará com a colaboração de poetas (emergentes) moçambicanos e das demais partes do mundo. E será distribuída nos países falantes do português através da Internet.

E mais, presentemente, “tenho planos de gravar um vídeo que participará em vários concursos na Europa. Tenho textos publicados em revistas literárias no Brasil como em Portugal. Tenho recebido um retorno através dos comentários das pessoas. Isso é mais importante do que a minha presença no exterior.

A minha obra está, de certa forma, a criar a minha identidade assim como algum reconhecimento fora do meu país. Então, significa que no dia em que visitar outros países não serei uma novidade para as pessoas porque elas terão lido a minha obra e se familiarizado com ela”.

O outro aspecto é que, ainda em 2012, “um volume do meu trabalho será publicado por uma editora alternativa – porque as obras por si publicadas são em cartolina e folhas – denominada Kutsemba Kartão. O pessoal que dinamiza as actividades desta editora acompanha o meu percurso desde o ano 2008. Formularam um convite que não posso recusar”.

“Estou a orientar um processo que deve terminar com a gravação de um vídeo de Slam Poetry com a participação de poetas de todas as províncias de Moçambique. Este projecto ainda está no forno, mas já temos alguns artistas seleccionados para o efeito. Acredito que através da Revista Rabisco outros declamadores poderão ser participa”.

Questionado sobre o financiamento dos seus projectos, o Poeta Militar afirma não ter nenhum. Afinal, “é como eu disse no início, a poesia é feita por prazer. Por isso, os fundos que iremos aplicar são os mesmos que arrecadámos nas nossas pequenas actividades, na esperança de um dia se multiplicarem, para que se divulgue cada vez mais a literatura”

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