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Pandza: A tangerineira

Na minha casa havia um muro, num dos lados do quintal, que fazia fronteira com a casa vizinha. Nos outros três lados também havia mas este era mais muro por ser de alvenaria e enorme, os outros eram espinhosas, micaias de meia altura. Na verdade aquele muro não era nosso, era do vizinho, por isso só estava rebocada na face de lá.

A face de cá era nua, até se viam as costelas das fi adas de bloco. Ainda assim orgulhavanos ter aquele muro em nossa casa pois alvenaria é status em bairros de chapa e caniço. A enorme parede agigantava-se à poente por toda a extensão do quintal de tal forma que o nosso pôr-de-sol acontecia ali naquela montanha de blocos e não no horizonte, antecipando-nos em muito o final de tarde.

Por cima do muro espreitava uma tangerineira de folhagem irrequieta, ramagem esguia, magra e outros atributos de beleza suburbana. Era ousada, invadia o espaço aéreo do nosso quintal sem licença e fi cava o dia todo farfalhando as folhas minúsculas de forma provocante.

Como se não bastasse expunha no decote da sua folhagem uma apetecível tangerina que amadurecia a olhos vistos e vinha ganhando volume adulto que a tornava irresistí vel. Eu senti a-me tentado pelas provocações da tangerineira mas estávamos proibidos, pelo dono da árvore, de arrancar fruta dali, o que tornava aquela tangerina a fruta proibida do jardim de Éden que o meu quintal era.

O traje amarelado da fruta amadurecendo avermelhava-se de pecado, e eu, sentindo-me Adão, sozinho naquele paraíso enorme, não suportava aquele profundo vazio que os machos sentem quando precisam que lhes soprem uma das costelas e se lhes engendre uma companhia feminina. Um dia, súbita e inexplicavelmente surgiu-me a companhia de uma cobra.

Uma cobra! Espantei-me mas antes que eu me assustasse fez-se simpáti ca sibilando-me um cumprimento com a língua em Y, e levemente, desenrolando-se daquele recolhimento pérfi do dos ofí dios, retesou-se balançando a cabeça como uma gala-gala embriagada, incenti vando-me a ceder à tentação.

Se até Adão irresisti u aos assédios da fruta proibida, pensei, quem não entenderia o meu roubo? Autorizei-me a pecar.

Olhei para a tangerina e salivei de vontades, ti ve de engolir com urgência para não me afogar em salivas. Meu rosto ingênuo de adolescente transformou-se e ganhou feições marotas.

“Tangerina!” escapou-se-me baixinho por entre os lábios rendido ao encanto da fruta. Aproximei-me sem desviar o olhar malicioso. Percebendo, a tangerineira sorriu, tí mida, e ajustou o traje da folhagem protegendo o fruto. O citrínico amarelado da sua pele contrastava agradavelmente com o verde das folhas e com o azul celeste pintado por cima do horizonte que o muro fazia.

“Tangerina!” repeti em pensamento, ao mesmo tempo que as vontades que me encharcavam a boca me secavam os beiços e eu humedecia-os com a língua, lenta e apetecidamente. Estirei-me com agilidade equilibrando-me sobre o muro. Era um muro alto, mas alguns acidentes faziam buracos nos blocos e ajudavam a trepá-lo. Fui vê-la de perto.

Manteve-se parada. Pêndulo de ginga silenciosa. Toquei-a, com uma mão apenas, pois a outra equilibrava-se no muro. Sorriu, recepti va. O pequeno rosto amarelado coube-me inteiro na palma. Arredondei a mão em concha, afaguei-lhe as celulites citrínicas, sorvi ruidosamente a baba que pelo canto do lábio já escapava, e murmurei: “Tangerina!”.

Sem tirá-la da árvore espetei-lhe lenta mas selvati camente o polegar. Gemeu húmida quando o dedo lhe rompeu o hímen da casca. Cedeu em silêncio à dor agradável. Meti o outro polegar e abri-a sadicamente em duas. O rasgão da casca misturou-se à voz musicada do vento a farfalhar na folhagem.

Os líquidos dos seus gomos escorreram-me pelas mãos. Salivei com toda voracidade das minhas volúpias, murmurando-lhe o nome ao ouvido e deleitei-me lascivamente, sem mesmo arrancá-la da árvore: “Tangerina!” Sorriu, aquele sorriso ácido de tangerina, fechou os olhos e consumámos o pecado.

Ofegando permaneci pendurado no muro. Ela toda comida, pendurada na árvore, já sem os gomos, apenas casca rasgada, ainda respingando os seus líquidos citrínicos. Não tardou que um grupo de lenços, capulanas e gravatas formais nos visitasse com intenções muito diplomáti cas, anunciando-se com muita cerimónia, e dissessem, entre cumprimentos e formalidades: “O vosso fi lho cometeu um delito, transgrediu as fronteiras do nosso quintal e da nossa dignidade, violou o nosso muro, comeu a nossa fruta, os caroços caídos desse pecado engravidaram a terra e estão a germinar.” Pagou-se o dote e fui autorizado a frequentar a tangerineira. Hoje tenho um pomar. Somos agora a mesma família e o muro perdeu senti do mas conti nua lá, pois alvenaria é status em bairros de chapa e caniço.

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