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Pacientes marcados

Um novo estigma persegue as pessoas portadoras do vírus HIV, causador da Sida. A maioria recuperou a esperança de vida, mas a medicação provoca lipodistrofia, ou transtorno no metabolismo das gorduras, que deixa marcas irreversíveis no corpo com a consequente perda de qualidade de vida.

“Os médicos dizem que se a sua carga viral está bem, o resto não importa, mas se não posso relacionar-me com ninguém, não quero essa vida”, disse à IPS Marcela Alsina, da Rede Bonaerense de Pessoas Vivendo com HIV.

Desde o surgimento dos antirretrovirais, a Sida deixou de ser uma doença mortal para ser um padecimento crônico. Mas os tratamentos que devolveram a esperança apresentam novos desafios, em geral minimizados pelos profissionais. “Eu era um dos médicos que, quando me apresentavam a questão da lipodistrofia, dizia que era um mal menor, que pelo menos estavam vivos. E eles respondiam: sei, mas não quero viver assim”, disse à IPS a infectologista Mercedes Bisgarra.

Esta especialista dirige o Programa de Sida do município Três de Fevereiro, na província de Buenos Aires, próximo à capital argentina, que foi precursor em atendimento primário dos casos de pessoas vivendo com o vírus, há mais de 20 anos. Mercedes explicou que a lipodistrofia é uma síndrome que começou a ser percebida em 1998, após dois anos de tratamentos eficazes com antirretrovirais que provocavam mudanças na distribuição da gordura corporal do paciente.

Numa maioria de pessoas sob tratamento, perde-se gordura no rosto e se destacam as maçãs do rosto. Também perde-se gordura nos braços, glúteos e nas pernas, enquanto acumulam-se nas mamas, no abdômen e nas costas, com efeito de uma corcunda. Segundo a Sociedade Argentina de Infectologia, a perda de gordura no rosto afeta 57% dos homens em tratamento e 22% das mulheres nessa situação, e nos glúteos afeta 60% e 47%, respectivamente.

O efeito das drogas no rosto se parece com o provocado pela Sida, quando surgiu a epidemia disse Marcela. Este aspecto do rosto limita as pessoas em seus relacionamentos e na busca por emprego. Nos homens, pernas e braços afinam em maior medida em 68% dos casos, enquanto nas mulheres em 53%. Por outro lado, elas sofrem mais acúmulo de gordura nas mamas e no abdômen, em até 74% das portadoras em tratamento, e nos homens 31%.

“Quando nos reunimos na Rede, a maioria mostra sinais evidentes”, disse Marcela, revelando que nos últimos encontros a questão surge como uma das preocupações principais dos pacientes. Nos homens, a questão das mamas é um estigma severo. A lipodistrofia também tem impacto em meninos, meninas e adolescentes. “Uma criança de 12 anos dizia que na escola não sabem que tem HIV, mas suspeitam que esteja doente por causa do rosto ossudo, e este estigma deve ser abordado”, explicou.

Os adultos dizem sentir inibição para relacionarem-se com um parceiro ou parceira, de manter relações sexuais ou até por um traje de banho. “Ninguém chega a abandonar o tratamento, mas sofre muito e são necessárias alternativas”, disse. “Ter HIV já nos coloca inúmeras barreiras. Se temos uma corcova nas costas ou não encontramos roupa que nos caia bem, não nos animamos a ir à praia, e isto não é qualidade de vida”, acrescentou.

Marcela também coordena o Movimento Latino-Americano e do Caribe de Mulheres Positivas e afirma que esta questão ainda não é tratada em nível regional. Muitos países ainda lutam para garantir o financiamento do acesso gratuito aos medicamentos. No Brasil, houve algumas reclamações de tratamentos estéticos, mas apenas individualmente, explicou Marcela. Por outro lado, a Espanha acaba de lançar uma campanha.

Os próprios médicos não estão conscientes do impacto que o problema causa na autoestima dos pacientes. “A primeira coisa que devemos fazer é sensibilizar os profissionais da saúde, porque eles pensam que é um tema sem profundidade”, disse. Marcela entende que há alternativas que poderiam deter as deformações quando estas começam a aparecer, como os exercícios. Também há injeções para o rosto e glúteos ou cirurgias para retirar a pele, mas a questão não está na agenda.

Mercedes explicou que, a partir destas preocupações, estão tentando “acomodar alguns tratamentos para que o retrocesso seja gradual”, mas admitiu que ainda não se sabe a razão de alguns pacientes apresentarem a lipodistrofia e outros não. “É muito bom o ativismo destas redes para que o tema seja pesquisado e discutido em fóruns, porque efetivamente os inibidores de protease e de transcriptasa (enzimas) causam estas deformações em muitos pacientes”, disse.

Mercedes acrescentou que as drogas também provocam problemas renais, necrose nos ossos e problemas cardiovasculares como infarto, devido ao aumento dos níveis de colesterol e triglicérides que causam. “Não se trata apenas de lutar contra o vírus, mas contra os efeitos adversos da medicação”, destacou, admitindo que a lipodistrofia é a consequência mais visível, e, portanto, a que provoca um estigma.

Com a intenção de tornar visível o problema, a Rede montou uma exposição fotográfica em dezembro, junto com a Fundação de Estudos e Pesquisa da Mulher, no Senado da província de Buenos Aires, cuja sede fica em La Plata, capital do distrito. A mostra apresenta registros da lipodistrofia juntamente com testemunhos de pacientes. “Aprendi a viver com o vírus, agora tenho de aprender a viver com o corpo que os comprimidos me deixam”, declarou, por exemplo, Carmen.

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