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Os ventos da revolução árabe

Os ventos da revolução árabe

Há três meses, ninguém poderia imaginar a magnitude da revolução que varre o mundo árabe. Como a lavagem das escadarias do Bonfim, está a arrastar ditaduras e as suas elites para os livros de história. Imprevisível, doida varrida, a revolução já derrubou os ditadores Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Mubarak, no Egipto.

Tiranos que, até pouco tempo, eram tidos por sólidos como rocha. Neste instante, uma multidão luta com gritos e pedras contra as ditaduras no Bahrein, na Líbia, no Iémen, na Argélia. Tumultos também afloraram no sul do Iraque pós-ocupação americana, no Irão teocrático, no Marrocos e até no Djibuti.

A revolução chamejou como faísca na gasolina, e lançou um espectro a assombrar regimes autoritários, do Magreb à China, passando pelos governos xenófobos da Europa, pródigos em reprimir e humilhar os imigrantes. Se o pavor da classe dominante ante a revolução haitiana (1804) condicionou a história do século 19; e ante a revolução russa (1917), a do 20; quem sabe a revolução árabe (2011) não seja o evento fundador das lutas deste século.

No entanto, não faltam analistas de primeira hora, a enquadrar essa revolução sem precedentes nos seus esquemas e teorias de plantão. Em vez de tentar entender a singularidade do movimento, disputam entre si quem será o primeiro a dar-lhe a última palavra.

Por um lado, comentadores mais à direita resmungam que a revolução acabará mal. Sem alternativa organizada, o futuro da revolução estaria nas mãos dos fundamentalistas islâmicos.

A Fraternidade Muçulmana, conectada ao Irão e à al-Qaeda, seria a única vanguarda activa. Portanto, a médio prazo, o único grupo capaz de suceder as ditaduras depostas. Profetizam o retrocesso em direitos humanos e em igualdade de género, bem como o fortalecimento do “terrorismo” (sic).

Para eles, os muçulmanos não estariam preparados para a democracia e o islamismo teria uma tendência intrínseca e historicamente comprovada ao homem-bomba. E concluem com um falso problema: melhor uma ditadura laica “ocidentalizada”, do que uma teocracia à maneira aiatolá.

Por outro lado, analistas de uma esquerda nacional, herdeira do jacobinismo do século 19, igualmente antecipam o fracasso da revolução. Adoptam a mesma razão em essência: ausência de vanguarda organizada. Por não haver um partido e um programa de esquerda como fios condutores, os revoltosos não teriam como resistir à contra-revolução.

Sem “mudança estrutural”, as vitórias conquistadas paulatinamente seriam diluídas, e o regime recomporia as suas bases aos bocadinhos. Muda-se tudo para não mudar nada: as novas elites e os seus representantes maquilhariam reformas, e o sistema de exploração, enfim, persistiria. O putsch militar no Egipto seria sinal desse anticlímax.

Ambos os modos de analisar o tumulto falham. Escapa- lhes o mais importante: a materialidade das lutas em análise. Idealistas, vêm com modelos prontos, em vez de pinçar as relações de força e dinâmicas materiais que aconteceram.

Não é que a revolução tenha ocorrido sem organização partidária ou militante coesa. É que ela só poderia ter acontecido assim, tanto que aconteceu. Que dificuldade em atribuir realidade aos acontecimentos como tais!

As pessoas que escrevem de dentro do turbilhão – quer dos media infiltrados (Al-Jazeera, Robert Fisk), quer de árabes engajados na luta (como o relato vívido do sociólogo Mohamed Bamyeh ) – concordam que esta revolução fez-se e faz-se um dia após o outro.

Ao deparar com desafios e ameaças, encara-as à sua maneira, sem receitas do que fazer, livros messiânicos ou directivas de comités centrais. Não houve complô de seitas iluminadas, fundamentalistas ou socialistas – e foi isso que assegurou a potência do acontecimento.

Ora, com que peripécia os analistas podem apontar fraqueza no que, precisamente, tem sido a força da revolução? Em primeiro lugar, não acreditam na multidão. Em parte, porque estão cegos à inovação, ao que de singular pulsa no Magreb e Médio Oriente.

Não conseguem explicar como os revolucionários se organizam e lutam, o seu corpo político que dispensa ideologia ou bandeira unificada. Confundem formas transversais de organização com anarquia; governo imanente da multidão com desgoverno das massas. Não vêem que o saber revolucionário circula de boca em boca, alimenta-se da prática concreta, difunde-se nas redes sociais. Uma sabedoria inacabada e imperfeita, mas concreta.

Os árabes aprenderam muitas coisas e não à toa, a Praça Tahir, enquanto experiência, se repita noutros lugares (a Praça Pérola, no Bahrein). Porém, isso não cabe no noticiário, monopolizado por comentários sobre efeitos de superfície (geopolítica), com honrosas excepções (TV Al-Jazeera).

Em segundo, supervalorizam o poder. Cacoete de ler os acontecimentos com os olhos dos vencedores, isto é, por meio da História. Assim, examinado sob a espécie do poder, supõem que o exército egípcio “deixou” a revolução acontecer. Quando, na realidade, o exército foi feito refém pela energia da multidão.

E findou carreado pelo processo constituinte, inclusive amalgamando-se a ele. Se, agora, o alto comando encetar algum golpe ou manobra para defraudar o povo, a Praça Tahir está pronta para ser ocupada uma vez mais e mostrar à evidência quem manda.

Uma revolução impacta o modo de sentir das pessoas. O medo muda de lado e elas passam a perceber a fragilidade do poder. Menos que planos mirabolantes, a revolução é “sopro que abre brechas nos muros”. Basta as pessoas determinarem-se a não mais participar, que a panóplia de autoridades e interditos colapsa em questão de dias.

Aí as ruas inundam-se de revolta e ódio, mas também de carnaval e amor. O porvir abre-se, cada dia torna-se uma aventura, as pessoas amam-se com mais cupidez. Carpe diem político. Essa proliferação de afectos contagia as multidões noutros lugares e noutros tempos, retraduzindo os eventos na sua própria língua – somos todos tunisinos, egípcios!

As formas de organização, o saber-fazer da luta, a sensibilidade revolucionária, nada disso se perde. A História fecha-se às lutas, mas não a memória e o sonho. Com efeito, o tumulto revolucionário irrompe da história e mesmo contra ela. A revolução liberta as pessoas da linha histórica, da mesmice, da narrativa do poder. Desata-as de um passado e um futuro pré-definidos de fora, e instala-as como produtoras de seu tempo, um novo tempo.

Haiti 1804, Rússia 1917, Egipto 2011: a mesma luta, sempre diferente. Daí o erro dos ranzinzas ao praguejar que, “como das outras vezes”, tudo vai terminar mal. Erram ao retroagir um juízo de valor histórico, que encerra a revolução no passado: traída, malograda, nociva.

O erro está em exigir da revolução uma finalidade, um fim da História, quando ela exprime, justamente, a recusa de qualquer limite. Para o historiador das paixões tristes, nada nunca muda. Mas se nada pode acontecer, o palco está entregue à paz dos vencedores, ou seja, ao status quo.

Por tudo isso, o filósofo Gilles Deleuze advertia para não se confundir o futuro da revolução com o devir revolucionário. Pouco importa o futuro, pois a verdadeira metamorfose se dá e já se deu. A percepção mudou.

Nenhuma revolução genuína discute o futuro, mas sim o recomeço aqui e agora. Quando passa a discutir o futuro, fecha-se como constituinte, e cede a vez aos usurpadores que governarão em seu nome.

É preciso ignorar os discursos lamurientos, à direita ou à esquerda, e também os pomposos (wishful thinking), e tentar aprender com os árabes. Apreender a sua face poética, demiúrgica, a sua fagulha raivosa e o seu grande amor.

Somos privilegiados. Ela potencializa os corpos e encadeia os pensamentos, que surgem espessos do frágil fio do quotidiano. Temos diante de nós uma revolução de verdade.

Acerca das revoluções do século 21 na África e no Oriente Médio

As revoluções egípcia e tunisina alteraram agora os cálculos políticos e as considerações sobre a política e a revolução. Não só essas revoluções transformaram a consciência do povo, mas deram origem também a um novo surto de energia criativa e tornaram-se uma escola de novas técnicas revolucionárias para o século 21.

Estas energias podem ser traduzidas em inúmeras ações voltadas para transformações revolucionárias em toda a África e Médio Oriente. Não há dúvida de que as mudanças nas condições econômicas que as pessoas estão a exigir não serão obtidas graças aos tipos de reforma financiados por doadores estrangeiros para promover “maior” liberdade econômica. Elas só serão alcançadas se os povos elegerem novos líderes e governos com coragem para implementar políticas econômicas alternativas que se concentram na abordagem das condições de vida, em oposição aos interesses dos investidores estrangeiros e das elites locais.

A revolta no Egito chegou a um ponto em que as forças contra-revolucionárias estão em desordem e não podem acompanhar o ritmo da mudança. Existe um modelo de efusão popular que se difunde da Tunísia e do Egito para todas as sociedades sob regime ditatorial na África e no Oriente Médio.

A tarefa dos progressistas é celebrar as lições positivas de auto-organização e os ventos de auto-emancipação soprando através da África. Os progressistas não podem estar à margem e têm que descobrir as suas próprias formas de se mostrarem solidários para com as pessoas que estão sendo dizimadas nas ruas.

Explicamos o que estamos a aprender com algumas das características destas revoluções do século XXI. As características mais importantes que até agora destacamos são:

1. As revoluções são feitas por pessoas comuns, independentemente de partidos de vanguarda e de revolucionários autoproclamados.

2. O caráter das redes de redes sociais independentes e a sofisticação das ferramentas da revolução.

3. A liderança das pessoas comuns que se automobilizaram para a revolução.

4. A construção de uma não-violência revolucionária para autodefesa.

5. As idéias revolucionárias do povo, cujo objetivo final é ser seres humanos dignos e não robôs nem fanáticos de ditadores.

Cabe agora a nós, progressistas, apoiar e aderir a este modelo de revolução, para iniciar um salto qualitativo além do neoliberalismo, do capitalismo, do militarismo e da ditadura na África e no Médio Oriente.

 

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