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Os problemas que a lei (não) resolve!

Em Moçambique, criar e aprovar leis é quase um fetiche que nos engrandece. Por essa razão, diante das dificuldades com que os operadores do sector das Indústrias Culturais se debatem, o maior receio é que o novo Regulamento de Espectáculos – prestes a entrar em vigor no país – não seja mais um instrumento legal (apenas) com um efeito paliativo.

No dia em que os artistas moçambicanos, em resultado do novo Regulamento de Espectáculos e Divertimentos Públicos, prestes a vigorar no país, virem a sua condição social melhorada, as pessoas que para o efeito terão contribuído deverão ser consideradas heróis nacionais.

É que se quisermos analisar o caso com alguma frieza, facilmente podemos perceber que se está diante de uma utopia. Mas, infelizmente, o nosso país ainda está muito distante de edificar uma indústria cultural que funcione.

De qualquer modo, antes de mais, é preciso esclarecer que não se trata necessariamente de um problema que deriva da inexistência de leis funcionais. Mas do facto de não haver uma mentalidade preparada associada a determinadas práticas que contribuam para o incremento do referido sector.

Pior ainda, quando ao referido problema se acrescentam à real e gritante pobreza em termos de infra-estruturas adequadas para a concretização da cultura como actividade sistematizada, alguma capacidade em termos técnico-profissionais instalada com a finalidade de pensar e criar estratégias adequadas para a gestão dos problemas que marcam negativamente o circuito (como, por exemplo, o fenómeno da contrafacção de objectos artísticos), as Indústrias Culturais ? um dos ramos da actividade económica do qual o país devia demandar dividendos assinaláveis ? tornam-se num antro de obstáculos de toda a natureza para as pessoas que nele actuam.

Em resultado disso, presentemente, em Moçambique temos um sector das Indústrias Culturais que pode ser descrito do seguinte modo:

Clima de insatisfação

Os artistas moçambicanos, através da capacidade criativa genial que detêm, produzem obras de arte, mas, ao que tudo indica, apesar de haver alguma vontade por parte da sociedade em relação ao seu consumo, no meio do processo instalam-se alguns actores que dificultam a sua divulgação e promoção no mercado. A par da inexistência de uma espécie de contrato para a gestão da relação dos músicos e os produtores dos espectáculos, os primeiros queixam-se de um (suposto) tratamento desigual perante os seus congéneres estrangeiros.

A outra prática recorrente nos eventos culturais, sobretudo os musicais, e que desaponta o público consumidor é que, nas cidades moçambicanas, os shows são marcados para arrancar a determinada hora, mas geralmente só muito tardiamente é que iniciam. A prática virou tradição.

O mais depravado, em tudo isso, é que o Governo tem conhecimento de que, muitas vezes, os promotores de eventos culturais têm contornado as leis vigentes em volta da sua actividade. Realizam- nos, a sua maneira, sem o conhecimento das entidades de direito.

De qualquer modo, havendo ou não dificuldades, o facto é que os eventos culturais acontecem. E na tentativa de se adequar à falta de regulamentação da Lei de Mecenato, assim como à indiferença dos empresários moçambicanos em financiar a nossa cultura, as populações economicamente desfavorecidas acabam por ter um acesso muito limitado aos eventos do ramo das artes e cultura. E, em resultado disso, também reclamam.

É que, para si, os eventos estão a ser muito elitizados de modo que só acontecem nos espaços urbanos. Ninguém quer apostar em levar as artes para o subúrbio, muito menos para as zonas rurais. Sob o ponto de vista económico, isso é oneroso e dispendioso ? defendem-se os promotores que se escudam na falta de apoios.

Paralelamente a um mercado pouco rentável para o negócio das artes, instala-se um fenómeno perverso, a pirataria, por meio do qual pessoas (supostamente) conhecidas prosperam ilegalmente a partir trabalho dos criadores, enquanto estes minguam à medida que criam. Aliás, diga-se, a acção do Governo (ainda que bem-intencionada) tem-se mostrado tremendamente ineficaz na luta contra o mal. A contrafacção de objectos artísticos agigantou-se no país. Ninguém consegue detê-la!

Convenhamos, então, que se afirme que os problemas aqui descritos não são passíveis de serem combatidos por um Regulamento de Espectáculos.

Talvez, este instrumento pode orientar a sociedade no sentido de realizar acções que os suavize, mas isso também só será possível se o regulamento em alusão for efectivamente implementado e aplicado. Agastado com a realidade, é nesse contexto que, mais uma vez, o ministro da cultura, Amando Artur, procura engendrar questões para alimentar a reflexão dos operadores do sector das artes e cultura:

“Qual é a proposta dos produtores dos eventos culturais para que se produzam actividades culturais a um preço acessível às populações desfavorecidas? Ou seja, o que é que o Governo deve fazer para que a produção dos artistas chegue à grande maioria do povo moçambicano genuína, mas também a preços acessíveis?”

Obrigatoriedade do contrato

Na sua exposição oral, o secretário- geral da Associação do Músicos Moçambicanos, Domingos Macamo, considerou que é importante que nas relações profissionais dos músicos e os seus patrões os promotores de eventos, haja alguma obrigatoriedade em relação à necessidade da criação de contratos de trabalho.

É que, nas condições habituais, muitas vezes, sempre que surgem problemas de natureza contratual a desfavorecer os músicos, órfãos de provas documentais, eles remetem as queixas verbalmente à agremiação. Em resultado disso, torna-se difícil (ou quase impossível) dirimir tais conflitos.

Um quadro desolador

Em certa ocasião chega-se a ficar com a impressão de que no País da Marrabenta os artistas estão abandonados à sua sorte. Eles consideram que o sector bancário não está interessado em criar-lhes facilidade de acesso ao crédito. Ou seja, “a banca é incrédula em relação ao mudo das artes”.

Por outro lado, por causa da pirataria que cria as bases para o desaparecimento da única editora que existe no país, praticamente os artistas ficarão desempregados. Na verdade, na penúria. A sua estrutura é invisível, mas a contrafacção de objectos artísticos é uma prática que se agigantou, atingindo dimensões alarmantes.

“Ela já se tornou um problema do dia-a-dia que está a sugar- -nos a vida, com a excepção das pessoas que dela beneficiam. Quanto mais trabalho se faz para colmatá-lo, este mal torna- -se eficaz”, desabafa Macamo ao mesmo tempo que aponta as suas consequências:

“A distribuição e a comercialização de discos já não têm um espaço propício para acontecer porque as casas em que ela era realizada foram modificadas e acolhem outro tipo de realizações”.

Em resultado do mal, Moçambique corre o risco de ficar sem nenhuma indústria discográfica: “A par dos demais factores, a pirataria contribuiu para o desaparecimento das indústrias discográficas. A Vidisco Moçambique, a única editora que existe no país, está quase a desaparecer. Eu não consigo imaginar um país sem uma indústria discográfica”, confessa outro artista.

Em tudo isso, o que mais preocupa o ministro da cultura, Armando Artur, é que “a pirataria é um crime público sobre o qual a Polícia da República de Moçambique e a Procuradoria-Geral da República devem actuar. No entanto, infelizmente, sempre que a contrafacção acontece a culpa recai sobre o Ministério da Cultura”, considera em jeito de desabafo.

Ninguém quer agir

De acordo com o instrumentista moçambicano, Amável Pinto, o facto de a contrafacção de objectos artísticos, os discográficos em particular, ser uma prática que envolve os músicos (como o Ministério da Cultura constatou) não é a questão mais preocupante.

Para si, o ponto precípuo e premente é que o Governo, aplicando a lei, aja contra eles. Se eles cometem infracções, como artistas que são, então, devem ser punidos como cidadãos. O problema é que, ao que tudo indica, em Moçambique, a lei não é aplicada de forma imparcial.

Amável defende que, “o que se deve fazer em relação aos infractores é agir. O problema é que todos nós passamos pelas ruas da cidade, encontramos tabacarias cheias de CDs e DVDs contrafeitos a venda e ficamos indiferentes. Os materiais pirateados encontram-se expostos e, como se sabe, tal actividade não evolui por causa dos miúdos que revendem os discos para ganhar a vida, mas porque alguém alimenta essa indústria. Como tal, penso que temos que atacar os protagonistas, os revendedores formais, porque eles é que originam o mal”.

Segundo Amável Pinto, as editoras formalizadas também promovem a pirataria. “Recordo- me de que certo músico me disse que descobriu que os selos colocados nos seus trabalhos discográficos pertenciam a um outro cantor moçambicano. Isso é uma vergonha porque a editora, no lugar de pagar o selo para o CD do referido artista, usou o do outro”.

Em resultado disso, “o seu disco foi colocado no mercado de forma ilegal. Temos que criar formas de controlar essa realidade porque, ao que tudo indica, o referido músico pode ser uma metáfora de tantos outros que passam por uma situação similar”.

Levando o seu ponto de vista ao extremo, Amável Pinto revelou que “eu, por exemplo, falando com os miúdos que revendem os discos contrafeitos na rua, descobri a fonte de onde são produzidos. É contra ela que devemos lutar e aplicar devidamente as leis. É que os prevaricadores existem. O que sucede é que temos medo de tomar as atitudes certas. Nós, colegas, sabemos qual é a origem do problema, mas ficamos indiferentes”.

O lado técnico da coisa

Diante das reclamações que se lhes apresentaram, falando da qualidade de produtor cultural, o director do Festival Marrabenta, Paulo David Sithoe, enfatizou a necessidade de fazer a avaliação das condições objectivas em que os produtores de eventos trabalham no país, incluindo a capacidade técnica e intelectual que possuem.

É que, os espectáculos que se têm feito são uma produção tecnicamente complexa. Por essa razão, é fundamental perceber-se algumas questões: “Já se analisou porque é que os eventos de alguns produtores têm começado tardiamente? Já se analisou qual é a capacidade profissional de tais produtores?

Qual é a sua capacidade técnica para garantir que o show inicie no tempo previamente determinado? De onde é que vêm os engenheiros de som que operam no país? Relativamente à gestão da pirataria, qual é a unidade de especialistas, ao nível da polícia, por exemplo, que possui capacidade para analisar o fenómeno e criar estratégias para desmantelar o circuito?

Quem é que analisa a qualidade dos discos produzidos no país? De onde é que vêm os engenheiros que operam nas discográficas? De onde é que vêm as máquinas que são utilizadas para imprimir os discos? Como é que elas chegam ao país?”

De acordo com Sithoe, para que os artistas moçambicanos tenham um tratamento ao mesmo nível que os estrangeiros é preciso que, antes de mais, nós internamente em Moçambique consigamos criar shows que tenham um valor acrescentado, o que passa por juntar todos os profissionais da área.

Ou seja, “quem são os artistas moçambicanos, do Rovuma ao Maputo, que estão preparados para realizar concertos na África do Sul? Estamos a falar de questões ligados às técnicas do som, da capacidade da concepção de um evento em termos de luz e da cenografia, incluindo uma informação das condições de que um artista precisa em palco”.

Num outro desenvolvimento, Sithoe levou a sua posição ao extremo para indagar o seguinte: “Quem de nós, os produtores moçambicanos, tem a capacidade para definir como é que se pode fazer um espectáculo de nyau ou de timbila para que seja igual a um concerto de ópera, já que queremos ter um tratamento igual? Nós temos de saber isso e definir claramente quem são as pessoas que nos irão dar essas respostas”.

Foi a partir desse conjunto de questões que o produtor criou condições para fundamentar que para discutir as actividades culturais com sucesso devemos ter sempre em mente as condições objectivas em que os artistas trabalham.

“Nós precisamos de infra-estruturas para a actividade cultural, da mesma maneira que precisamos de pontes, estradas, de ter acesso à saúde e à educação. Trata-se de condições que, de facto, podemos criar mas garantindo alguma equivalência aos demais países do mundo actual, em termos de qualidade”.

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