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O que é mais importante: a guerra contra a SIDA ou só a guerra?

O que é mais importante: a guerra contra a SIDA ou só a guerra?

Diz-se que estamos a travar uma guerra cujo alvo é o vírus mortal da imunodeficiência humana (VIH). Esta guerra tem lugar em todo o mundo mas o seu principal campo de batalha é a África Subsaariana, onde vivem sete em cada 10 pessoas seropositivas no mundo – 24.7 milhões em 2013. Segundo as Nações Unidas, a região sofreu cerca de 1.3 milhões de mortes relacionadas com a SIDA nesse ano.

Um exército desorganizado está a travar a guerra contra a SIDA. Às vezes é composto por funcionários bem vestidos envolvidos na ajuda humanitária, sentados em salas de conferências e procedendo à atribuição de verbas. Outras vezes, utiliza soldados com roupas coçadas – trabalhadores comunitários do sector da Saúde e activistas da SIDA – em zonas rurais abandonadas onde não há água potável, e muito menos terapia anti-retroviral.

Com muitos outros problemas de saúde a precisar de atenção, o financiamento para a SIDA é uma preocupação crescente. No entanto, um exame dos orçamentos de defesa de vários países afectados pelo VIH transmite uma imagem surpreendente das prioridades dos governos, com enormes despesas militares a desmentirem o argumento de que o obstáculo principal para ganhar a guerra contra a SIDA é o dinheiro.

Orçamento militar da Nigéria é muito maior do que o orçamento para a SIDA

De acordo com a ONUSIDA, com uma seroprevalência de três porcento, a Nigéria tem o segundo maior número de pessoas a viver com o VIH em África – 3.4 milhões em 2012. A resposta do Governo à epidemia intensificou-se no ano passado, mas infelizmente continua a ser insuficiente. Muitas pessoas não têm acesso ao tratamento e aos serviços de saúde de que necessitam, ou fazem-no pagando um elevado preço.

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), as despesas correntes para o VIH e SIDA são responsáveis por 14 porcento do rendimento familiar. A Nigéria destinou 600 milhões de dólares para a SIDA até 2015, e os doadores pagam 75 porcento desse montante. Esta situação representa uma melhoria: o Governo forneceu apenas sete porcento do financiamento total para a SIDA em 2010, comparado com os actuais 25 porcento.

Este ano, prevê-se que o Governo atribua 373 milhões de dólares a programas de VIH e 470 milhões em 2015, para atingir o alvo de contribuir com metade das necessidades de financiamento do combate à SIDA. Mas falta saber se isso será feito. A Nigéria tem muitas prioridades concorrentes a nível da saúde, e o recente surto de febre provocada pelo vírus do ébola exige urgência e financiamento adicionais. Entretanto, o orçamento de defesa proposto para 2014 afectou 830 milhões de dólares para o Exército nigeriano, 440 milhões para a Marinha e 460 milhões para a Força Aérea.

De acordo com o Gabinete do Orçamento nigeriano, o país concedeu um total de 2.1 mil milhões de dólares para a Defesa. Este montante inclui 32 milhões de dólares para dois navios patrulha do alto mar comprados à China e 11.2 milhões de dólares para a aquisição de seis helicópteros de ataque Mi-35M, segundo o portal de notícias DefenceWeb. E com a aproximação do prazo-limite de 2015 para atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas – e com os países doadores a apertarem os cordões à bolsa – os especialistas em Saúde preocupam-se com o financiamento para a prevenção do VIH e o tratamento da SIDA depois de 2015.

Um relatório conjunto da Fundação Família Kaiser e do Programa Conjunto das Nações Unidas para o VIH/SIDA (ONUSIDA) publicado em Junho, o novo financiamento para a SIDA em países de rendimento baixo e médio baixou três porcento em 2012 para 8.1 mil milhões de dólares em 2013. Cinco dos 14 principais governos doadores – Estados Unidos, Canadá, Itália, Japão e Países Baixos – reduziram as verbas destinadas à luta contra a SIDA no ano passado. Contudo, enquanto os governos alegam não terem dinheiro para lutarem na guerra contra a SIDA, o financiamento para outras guerras parece estar muito mais disponível.

Dispêndio em armas e SIDA

Um relatório da ONUSIDA de 2013 intitulado Investimentos Inteligentes conclui que África vai ter que produzir mais com menos. No Quénia prevê-se a ocorrência de um défice de financiamento dentro de pouco tempo, visto que o projecto ‘Guerra Total contra o VIH/SIDA do Banco Mundial, no valor de 115 milhões de dólares, chegou ao fim no mês passado. Entretanto, segundo o portal DefenceWeb, prevê-se que o orçamento de defesa do país em 2012-2014 aumente de 4.3 mil milhões de dólares para 5.5 mil milhões de dólares em 2018, tendo em conta que o país está a aumentar o número dos seus helicópteros, aeronaves não tripuladas e equipamento de vigilância nas fronteiras. É verdade que o Quénia está a ser alvo de ataques perpetrados pelos terroristas do Al-Shabaab. Contudo, cinco em cada 10 mulheres grávidas no Quénia vivem com o VIH e não recebem anti-retrovirais para protegerem os seus bebés.

Os caças de combate de Moçambique

Em Moçambique, a escassez de financiamento coloca as recentes despesas militares do país numa posição difícil. O representante da Organização Mundial de Saúde (OMS) em Moçambique, Daniel Kertesz, disse à IPS que o programa de Saúde de seis anos do país tem um défice anual de financiamento de 200 milhões de dólares. Moçambique é muito pobre e é difícil perceber como o país – com 1.6 milhões de pessoas infectadas, o oitavo país com maior o número de infectados no mundo – irá cumprir os seus compromissos domésticos. “Neste momento, Moçambique gasta anualmente entre 30 a 35 dólares por pessoa na Saúde. A OMS recomenda um mínimo de 55-60 dólares por pessoa por ano,” afirmou Kertesz.

Na mesma semana, o Governo anunciou que tinha reparado oito aviões de combate, que rejeitara há 15 anos na Roménia, e que vai receber três aviões militares Embraer Tucano do Brasil gratuitamente, com o entendimento de que irá depois adquirir outros três caças de combate. Segundo um relatório da Unidade de Inteligência Económica de 2014, prevê-se que a despesa com a segurança de Estado em Moçambique aumente de forma acentuada, devido em parte à aquisição, pelo Ministério da Defesa, de 24 embarcações de pesca e seis navios de patrulha e intercepção que custaram 300 milhões de dólares – valor igual à metade do orçamento nacional de Saúde para 2014 ascendendo a 635.8 milhões de dólares.

Na mesma semana em que os caças de combate renovados aterraram no aeroporto de Maputo, a imprensa noticiou que o principal hospital na província de Tete, no noroeste de Moçambique, rica em carvão, esteve cinco dias sem água. Na verdade, o Sistema Nacional de Saúde no país está numa situação tão difícil que o Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da SIDA (PEPFAR) cobre 90 porcento do orçamento anual do Ministério da Saúde para a SIDA.

A despesa militar em África

Angola gastou 8.4 porcento do seu orçamento de 69 mil milhões de dólares na defesa e só 5.3 por- cento na saúde em 2013. Em 2013, a despesa militar de Marrocos, de 3.4 mil milhões de dólares, ultrapassou substancialmente o seu orçamento de Saúde, de pouco mais de 1.4 mil milhões de dólares. O Sul do Sudão gastou um porcento do seu PIB na saúde e 9.1 porcento no sector militar e Defesa em 2012.

“O orçamento de Estado para os programas sociais não está a aumentar ao mesmo nível que a despesa militar, Defesa e Segurança,” disse à IPS Jorge Matine, investigador do Centro de Integridade Pública em Moçambique (CIP). “Temos exercido pressão no sentido de haver responsabilização quanto à aquisição de navios comerciais e militares que custam milhões de dólares,” referiu. Uma coligação de ONGs pediu ao Governo que explicasse “a sua decisão de gastar esse dinheiro sem autorização do Parlamento quando o país sente uma grave escassez de pessoal e abastecimentos no sector da Saúde,” explicou Matine.

A coligação defende que, se o orçamento na defesa tivesse ficado no mesmo patamar do de 2011, o país teria poupado 70 milhões de dólares, montante que podia comprar 1.400 ambulâncias (11 por distrito, quando muitos distritos só têm uma ou duas) ou aumentar a importação de medicamentos em 21 porcento. Um padrão semelhante repete-se em todo o continente onde, de acordo com o Instituto Internacional de Investigação Sobre a Paz em Estocolmo (SIPRI), as despesas militares atingiram cerca de 44.4 mil milhões de dólares em 2013, um aumento de 8.3 porcento em relação ao ano anterior.

Em Angola e na Argélia, as elevadas receitas petrolíferas alimentam as compras desenfreadas. A Ceasefire Campaign (Campanha em Prol do Cessar-Fogo), sedeada na África do Sul, informou recentemente que os negócios de aquisição de armas com companhias privadas também estão a aumentar em África, prevendo-se que os governos africanos assinem acordos com companhias de defesa globais no valor aproximado de 20 mil milhões de dólares na próxima década.

Não Cumprir os Compromissos de Abuja

Ao mesmo tempo, Vuyiseka Dubula, secretária-geral da Treatment Action Campaign (Campanha de Acção para Tratamento), organização sediada na África do Sul, afirmou à IPS que a Declaração de Abuja de 2001, cujos signatários se comprometeram a afectar pelo menos 15 porcento do produto interno bruto para a Saúde, “mal se tornou realidade”. “Independentemente dos nossos apelos, muito poucos países se aproximaram sequer dos 12 por cento, incluindo alguns dos países africanos mais ricos como a África do Sul e a Nigéria,” afirmou Dubula.

Entre 2000-2005 “quase 400.000 pessoas morreram de SIDA na África do Sul e durante esse período gastámos muito dinheiro em armas de que não precisamos. É caso para questionar se foi uma (utilização) responsável dos recursos públicos.” Moçambique é um triste exemplo do falhanço de Abuja. Em 2001, o orçamento de Saúde de Moçambique representava 14 porcento do orçamento total do Estado, estando quase a atingir o alvo proposto em Abuja. Diminuiu então para setepor cento em 2011, e depois recuperou chegando aos oito porcento.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Etiópia e antigo ministro da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse à IPS que “o financiamento espelha as prioridades do Governo. Verificamos que os países onde existe vontade política para inverter a situação do sector da Saúde reforçam o financiamento e investem verdadeiramente no sector da Saúde.” Se isto for verdade, os orçamentos de muitos países africanos reflectem um maior interesse nos negócios de armas do que na gestão da epidemia mortal do VIH.


Texto: Kanya D’Almeida e Mercedes Sayagues da Agência de Notícias IPS

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