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O livro que me (des)encantou!

O livro que me (des)encantou!

Enquanto o povo mingua, neste rochedo incrustado ao Índico, “os abutres corruptos/ garantem não ter de compartilhar as suas mansões”.

Na noite que precede o dia em que escrevi este texto, 18 de Abril, vi o concerto do rapper moçambicano, Nelson Ângelo (Simba) e o seu companheiro português, Milton Gulli, que publicaram o seu trabalho discográfico The Heroes. Embora o show não seja o eixo da discussão deste texto, da referida experiência recordo-me porque tem a ver com a expectativa com que li o segundo livro do poeta moçambicano, Eusébio Sanjane, com o título Frenesim – Poesia em Pétala de Lume.

É uma obra, essencialmente, de poesia lírica, erótica, sobre a relação homem e mulher. Possui alguns traços de criações textuais com paisagens abstractas, o que aprecio. Acredito que a poesia não precisa de nos dizer nada, porque ela, em si, é a própria mensagem. Entretanto, tendo em conta que gosto de uma poesia revolucionariamente vibrante, com motivos transformistas, quase que ficava desapontado com este livro – o que não significa que estou a depreciá-lo. Aliás, foi graças à leitura que fiz que se produziu esse desencanto.

Na análise sobre o contexto do meu desapontamento com este Frenesim – Poesia em Pétala de Lume, compreendo que a razão não é a obra em si, mas o facto de eu não ter encontrado as mensagens de que, nas circunstâncias que li, precisava. Até porque o li para escrever o texto que o estimado leitor consome agora. No seu livro, apesar de ser moçambicano, Sanjane não fala explicitamente sobre Moçambique. Discute acerca da terra, da humanidade, da relação entre homem e mulher, o belo, a luz, a paixão, o beijo. Mas isso só é assim se se fizer uma leitura terra a terra. Se não se pensar de forma indutiva.

Enquanto lia, porque estava preocupado em encontrar contextos moçambicanos, uma poesia vibrante, expressando alguma consciência cidadã favorável ao momento em que nos encontramos, sofregamente, procurei esses espaços até que os encontrei.

Mas antes, mesmo para argumentar a razão de ter invocado o músico Simba e o seu The Heroes, recém-publicado em Maputo, vale a pena explicar o seguinte: Numa das suas músicas, com o título Can I Kick It, o autor questiona à pessoa com que interpreta: “O que é que tu não gostas das pessoas?” Em resposta a co-intérprete alista a falsidade, a violência, a ingratidão, a inveja, o racismo que gera segregação racial. Para mim, estes ingredientes formam o receituário básico para a eclosão da guerra – o que Simba propõe que chutemos. Ou lutemos contra ela. “Escute a voz do Simba-leão, sem a juba. A voz que ensina o povão a ir à luta. Ele não rima em vão. Ele educa. Se tens auto-estima no chão – ele puxa para cima”.

Há bastante tempo (sem retirar o seu mérito, o que é quase impossível) tenho estado a compreender que o silêncio não precisa de ser escancarado para que haja alguma transformação social, como o célebre poeta Rui Nogar afirmou. O silêncio, em si, pressupõe a palavra, a mensagem. De qualquer modo, aprecio a forma como, em passagens enriquecidas de cenários abstractos, Nogar exerce a sua cidadania de um homem politicamente consciente. É como se percebe nesta penúltima estrofe do texto intitulado Do Amor Pelas Pedras, na página 45, do livro Silêncio Escancarado:

“Se fores capaz de amar essa pedra

ama-a

acarinha o seu silêncio

responde ao seu mutismo

iletrado irreflexo” (Sic).

Em textos como Mural (Além-Tijolo), na página 33 da mesma obra, Nogar fala de forma suave, porém contundente, sobre a manifestação da exploração, da escravatura e dos seus impactos irreparáveis:

“eu sei muito bem qual o preço

de cada tijolo:

três minutos de vida”.

Entretanto, apesar de ser muito rico de outros atributos (por exemplo, a relação erótica entre homem e mulher), a obra de Eusébio Sanjane – e é aqui onde começa o meu encanto – também possui textos com alguma preocupação cidadã. Esta ideia de contextualizar os homens do seu tempo e as suas acções e atitudes. Deste modo, o autor contribui para que, além de se discutirem tais realidades, também se reflicta nas possíveis soluções de que necessitam.

Para mostrar a importância que a sua obra possui (mesmo para os leitores mais exigentes e apreciadores de determinados temas, assuntos específicos como o exercício de cidadania e a luta pela revolução), enquanto uma assembleia de conhecimentos, em textos como Luta Entre Classes (página 64), além de nos convidar a reler a obra Silêncio Escancarado, de Nogar, Sanjane sugere-nos um novo eixo para esta reflexão.

Afinal, por lá, o poeta expõe as razões que tornam os supostos bichos irracionais sublimes e os presumidos animais racionais reles. Segundo o autor, enquanto “no céu as andorinhas apreendem a ciência/ dos seus gestos e a complexidade da geometria/ do espaço…/ Na terra os abutres corruptos/ garantem não ter de compartilhar as suas mansões.” Para mim, além do receituário exposto por Simba – na música Can I Kick It – nos nossos tempos, a corrupção é a sebe em que se infra-estrutura a mágoa nacional do povo moçambicano.

Moçambique é hoje o país dos raptos, das violações sexuais, do abuso sexual de menores. Da guerra não declarada. Da desinformação. O lugar onde a lei não penaliza os infractores. O espaço dos engomadores, de gente que fazendo da vida a negação da própria abusa da gente. A cidade do my love, como se chamam as carrinhas em que desumanamente se transportam os homens na nossa capital. O local do abuso do poder. Do contra-senso. Da disfunção. Da luta pela paridade para se ganhar a disparidade. Esta realidade inspira à produção literária. Como a literatura deve olhá-la?

Personificando determinados seres, no seu texto Sanjane elabora questões que denunciam alguma preocupação cidadã. A atenção e a preocupação do homem em relação aos problemas do seu tempo: “Digam-me quem amputou o sexo das rochas, que já não/ gemem, quando as cálidas mãos da tarde as afagam?” “Quem silenciou o cantar dos búzios, / que embalavam as revoltas ondas do mar?” É importante que esses Índicos Caminhos – como Sanjane intitula o texto da página 56 – sejam questionados.

A partida

Há muitos cenários pictóricos no livro de Sanjane que, neste momento, não me interessam. De qualquer modo, encanta-me a proposta da partida que o autor formula, primeiro, porque esclarece o contexto que o move para o efeito, segundo, porque – em condições normais – me parece que o destino é o lugar onde se encontra algo de que todos precisamos, a paz.

Com este livro, fico com a impressão de que os moçambicanos amam sofregamente a sua pátria. Por essa razão, neste momento, apesar de esta nação oferecer todas as condições para ser abandonada, os seus filhos compreendem que há algo sublime que os prende aqui.

Factos como “a dor intensa, / a lágrima espinhosa, (…), o peito que mingua” descritos na página 28, no texto E Eu Partirei, descrevem o cenário em que vivemos. No entanto, em contra-senso, a Partida – é este o título da página 35 – nunca se concretiza por uma razão simples: “Todas as manhãs invento um novo motivo para permanecer, enquanto lá fora, cruéis, as aves me ensinam a partir”.

De todos os modos, constato, até porque o conceito de espaço não é apenas geográfico, sem termos de abandonar a nossa geografia, o autor propõe-nos que partamos para um lugar onde algo de que todos precisamos – o bem-estar, a felicidade, a paz – está à nossa espera. É por essa razão que, no texto da página 28, se explica:

“E eu partirei, mesmo que me falte o corpo, / mesmo que não me bastem os passos, / pois seis que em algum lugar, em algum momento, / lá estarás tu, esperando por mim, e sorrindo dirás:/ – Já estava cansado de te esperar!” Chancelado pela Editora Ndjira, do grupo Leya, Frenesim – Poesia Em Pétala de Lume é um livro que me deu o gozo de, em cerca de 70 páginas, folhear inúmeras vezes para encontrar a poesia.

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