Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

“O Kok devia estar hoje numa posição muito mais favorável”

“O Kok devia estar hoje numa posição muito mais favorável”

Da entrevista, feita há quase dois anos e que durou quatro horas, resultou o livro “Kok Nam – O homem por detrás da Câmara” que esta sexta-feira é lançado na Escola Portuguesa de Moçambique. A obra, que tem a chancela deste estabelecimento de ensino, desenvolve-se num formato de pergunta/resposta e pretende avivar a memória recente do país. @ VERDADE falou com o autor/”perguntador”, o professor universitário e colunista António Cabrita.

Como é que surgiu a ideia de escrever este livro?

António Cabrita (AC) – A ideia que, diga-se, surgiu na Escola Portuguesa, é fazer anualmente dois ou três livros com testemunhos e histórias de vida que tenham como protagonistas moçambicanos, sobretudo aqueles que fizeram a transição do colonialismo para os anos de independência. Já não me lembro, mas houve alguém que sugeriu o Ricardo Rangel mas nessa altura havia uma sobreexposição, uma saturação, da imagem do Rangel e depois veio à baila o nome do Kok Nam, pessoa com uma memória viva, tendo estado por dentro de muitas histórias. Isso veio a confirmarse no livro. Acho que todos irão gostar de ler o itinerário biográfico do Kok.

Achas que há uma falta de memória em Moçambique, para mais sendo a população tão jovem?

(AC) – Isso é claro. A população é muito jovem e há uma grande lavagem cerebral. A História oficial comanda claramente, o que é muito prejudicial. A História deve ser um fluxo de vozes contraditórias, discordantes. Às vezes é mais enriquecedor se não houver aplainamento. Esses fluxos contraditórios têm de existir.

“Kok Nam – O Homem por detrás da Câmara” contraria a História oficial?

(AC) – Num livro como este estamos sempre dependentes de quem fala e do que se dispõe a dizer e do que se dispõe a calar. Mas penso que dá uma história de bastidores, em alguns aspectos, engraçados que muitas vezes são mais do que entretenimento com algum valor e algum sentido, mesmo na memória colectiva.

No livro percebe-se imediatamente que as respostas são muito espontâneas.

(AC) – Sim porque ele é muito espontâneo. Aliás, houve sempre a ideia instalada que o Kok não se expressava bem em português e isso, com este livro, caiu por terra. É evidente que o Kok não é uma barra em português mas expressa-se suficientemente bem para transmitir aos outros o que foi a sua vida.

O entrevistado parece não dar muito pela repressão colonial. Depois não se engaja demasiado no período samoriano, como muitos outros colegas fizeram, conservando um certo distanciamento…

(AC) – Mas ele atravessa esse período do Samora de uma forma muito apaixonada. Aliás, diz no livro que Samora a discursar era capaz de ressuscitar um cadáver. Há ali um entusiasmo bruto, sem nunca, no entanto, perder alguma distância e discernimento, e foi isso que lhe permitiu continuar a fazer um percurso independente. Hoje o Kok devia estar numa posição muito mais favorável não só economicamente mas a outros títulos. Mas nem sempre o país gratifica os seus.

Ao mesmo tempo mostra-se engajado quando refere que manipularia sem pejo uma imagem se achasse que se tratava de uma causa nobre. Não é um pouco contraditório?

(AC) – Sim, um pouco, mas pelo menos é honesto, não mente e isso é um valor.

Depois deste livro achas que o Kok poderia comungar do título da biografia de Pablo Neruda ‘Confesso que vivi’?

(AC) – Acho que sim, espero que sim, tenho a certeza que ele viveu e que está bem vivinho, esperemos que seja por muito tempo.

Sentiste que ele era uma pessoa que não podia viver sem a fotografia?

(AC) – Sim, claramente. Inclusivamente senti que na última década, porque quase não fotografou, sentiase um pouco a hibernar. A prioridade foi arrumar os seus materiais, divulgar o seu trabalho porque ele tem muito mais fotografias do que aquilo que se pensa. Ele agora quer fazer um livro sobre as Forças Armadas, mas possui muito material que está por reunir, por catalogar. Está na altura de alguém fazer esse trabalho de uma forma séria. Aliás, devo dizer que qualidade dos seus trabalhos superou em muito as minhas expectativas. É lamentável a inércia como se trata um valor e um património destes. E o mais curioso é que este país documentou, talvez como nenhum outro em África, todo o processo de independência em imagens, quer através do cinema, quer através de uma escola de fotógrafos muito boa que aqui houve por alturas da independência. Mas hoje onde está isso? Está tudo por fazer, tudo por mostrar! É preciso por cobro a isto. É a tal falta de memória. Vou dar um exemplo: há pouco tempo perguntei aos meus alunos o que tinha sido o Holocausto. Houve só um, em 150, são quatro turmas, que tinha ouvido vagamente falar no Holocausto. Houve outro que perguntou se não era uma marca de arroz chinesa. Tudo o resto foi um silêncio absoluto. Tudo isto porque aprendem a História do país por um só prisma, mas nem esse aprendem bem.

A dada altura o entrevistado refere que Robert Capa é o seu ídolo na fotografia muito mais do que Bresson. Isso quer dizer que ele, Kok, é um homem do terreno. (AC)

– Sim, completamente. Tem a ver com essa noção do que uma boa fotografia tem de ser suada, precisa da marcha. Uma boa fotografia surge de uma oportunidade mas no seio do acontecimento, do risco. Essa noção do risco está aqui muito presente. Ele, aliás, diz que odeia a fotografia de estúdio.

Para Kok a fotografia em Moçambique faz parte do universo masculino.

(AC) – Ele conta que tentaram recrutar mulheres para a fotografia, mas não nunca conseguiram. Mas isso é um problema geral do país. 35 anos depois da independência não há ninguém a escrever poesia no feminino! O colonialismo produziu a Noémia de Sousa mas a independência não produziu nada. Só nos últimos dois anos é que apareceram umas jovens com mais talento. O segundo livro da Tânia Tomé e muito bom. Supera completamente o primeiro. A Lídia também é boa. Mesmo na prosa só apareceu, porque era vulcânica, a Paulina Chiziane que é muito pouco estimada no departamento masculino. Mas deixemo-nos de conversas: as mulheres neste país ainda são completamente oprimidas.

Ficou alguma pergunta por fazer?

(AC) – Ficam sempre perguntas por fazer. Mas depende muito de quem temos diante de nós. Mas gostava de ter conseguido, e aí fica uma mágoa que é minha, transmitir ao Kok a necessidade imperiosa de ele voltar a fotografar. Infelizmente não foi possível devido à sua doença.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!