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O calvário dos habitantes de Boane

O calvário dos habitantes de Boane

Sem água não há vida, segundo um adágio popular que procura traduzir a relevância deste líquido para a sobrevivência e saúde humana, bem como para o seu uso em actividades domésticas. Entretanto, um verdadeiro sofrimento é como se pode descrever a vida que levam os moradores dos bairros 2, Umpala e Massaca, no distrito de Boane, a 30 km da cidade de Maputo, em virtude da crise de água potável. Os fontanários de que o governo local se gaba de ter construído encontram-se avariados e os poucos que ainda funcionam não cobrem as necessidades dos habitantes.

Os residentes das zonas em alusão vivem um drama inimaginável. Homens e mulheres de quase todas as idades tomam banho, lavam a roupa, acarretam água para o consumo e outras tarefas domésticas no Umbeluzi – a partir do qual é captada a água distribuída aos centros urbanos e periferia das cidades de Maputo, da Matola e Boane – o que acarreta vários riscos para a sua saúde.

Em consequência desta situação degradante, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a cada 20 segundos, morre uma criança com alguma doença relacionada com a falta de água limpa, além de que anualmente 1,5 milhão de pessoas perde a vida, mais de mil milhões de indivíduos têm dificuldades de acesso a água potável e 2,6 mil milhões não dispõem de instalações sanitárias.

O bairro 2, também conhecido pelo nome de Nhandayeyo (socorro), localiza-se muito perto do Fundo de Investimento e Património do Abastecimento do Água (FIPAG) em Boane, porém, não tem água, os moradores vivem numa terra sedenta e o seu sofrimento parece que não comove quem tem a tarefa de prover o precioso líquido. Marta Mahumane, de 34 anos de idade, não escondeu a sua dor por viver numa zona aparentemente esquecida pelas autoridades.

A sua insatisfação extravasa o problema da crise de água. De acordo com o seu depoimento, a corrente eléctrica que consome oscila com frequência e não tem qualidade nenhuma. “Vivemos como animais porque usamos a água do rio para lavar a roupa, cozinhar e beber. A construção de infra-estruturas para os serviços básicos termina no bairro 1, no Nhandayeyo estamos sempre aos gritos suplicando por água potável e ninguém nos explica porque somos discriminados. Um bairro inteiro depende de um posto de transformação de energia.”

O drama da crise de água é mais visível no Umpala, onde a população vive muito distante do rio Umbeluzi mas nunca desiste de recorrer a ele para obter pelo menos um bidão. Nas margens deste grande curso de água natural encontrámos Dulce Niquisse, de 15 anos de idade, agachada ao lado de uma bacia de roupa. Para aquele lugar ela levou igualmente uma carrinha de mão com três bidões para enchê-los, pois na sua casa não havia água para consumo. A menina assegurou-nos que da sua residência para o rio caminha duas horas.

“Em Umpala só temos um fontenário mas não funciona devidamente, além de ser bastante concorrida pelas famílias. Há sempre uma fila enorme e fica-se horas para obter um bidão de água. É possível acordarmos às 3h:00 e mesmo assim não termos água. Em Umpala não temos nenhuma escola secundária, mas sim primária sem carteiras. Rogamos às autoridades para que acabem com este sofrimento.”

Após a conclusão do ensino primário, os alunos de Umpala enfrentam dificuldades para continuar os estudos porque os estabelecimentos de ensino para o efeito localizam- se na Massaca e na vila sede de Boane. Entretanto, são muito poucos os pais e encarregados de educação que podem suportar o custo das deslocações dos filhos para esses pontos. Na falta de dinheiro, a solução é ir a pé.

Naquele bairro não há nenhum hospital. A corrente eléctrica também constitui uma dor de cabeça por causa da oscilação e da falta de qualidade, o que concorre para a danificação de electrodomésticos, segundo os moradores. À semelhança de Dulce Niquisse, noutro ponto das margens do rio Umbeluzi encontrámos Angelina Ngulele, de 41 anos de idade. Ela não escondeu a sua frustração no tocante ao comportamento do governo local, o qual, na sua opinião, marginaliza o povo e o trata como escória

. “Nunca ninguém se importou com o sofrimento dos habitantes de Umpala, temos falta de tudo. Hoje caminhei durante duas horas para chegar ao rio onde lavo a roupa, tomo banho e depois carrego um bidão de água para outros afazeres em casa. Estamos a sofrer, por isso, pedimos ajuda.”

Enquanto aquele grande curso de água natural não seca continuará a ser visto como uma dádiva pelos residentes dos bairros 2, Umpala e Massaca. Devido à tremenda crise de água, até viaturas são lavadas naquele local. Jorge Mboene, de 37 anos de idade, morador do bairro Nhandayeyo, é proprietário de uma camioneta basculante. Ele admitiu que “é arriscado e assustador lavar um carro num rio mas não temos outra opção porque no bairro onde vivo há escassez de água para tudo.”

Arlindo Zandamela, de 28 anos de idade, disse que pelo menos uma vez por semana vai a Umbeluzi lavar a sua viatura. Entretanto, aquele rio não é somente uma salvação para milhares de pessoas das zonas a que nos referimos, mas constitui, também, um perigo para outras pessoas, principalmente os banhistas. Ao longo do ano passado foram registadas várias mortes por afogamento. Em Janeiro de 2014, dois jovens – sul-africanos que vinham visitar uns parentes no bairro 2 – morreram afogados no mesmo dia. E há zonas do rio onde esse problema é frequente.

Angélica Armando, de 29 anos de idade, contou-nos que a falta de água agudizou-se há cinco anos porque todos os fontenários já não funcionam e nunca beneficiaram de obras de manutenção. “Neste momento todos os moradores dos bairros 3 e 4 recorrem ao único fontenário na Massaca 1. Acordo às 6h:00 para procurar água mas regresso a casa depois das 14h:00. Um bidão custa um metical e nem sempre há dinheiro para comprar. Recorremos ao rio Umbeluzi, apesar de ser uma água imprópria para consumo humano. Não temos opção.”

Na Massaca 4, o martírio dos habitantes – que tendem a perder a esperança de um dia as coisas melhorarem – não se resume apenas à falta do precioso líquido e do inexistente serviço de transporte. O fornecimento da corrente eléctrica deixa muito a desejar e os residentes afirmaram que ficam uma semana na escuridão. Nos restantes bairros o drama repete-se. Edson Jeremias, de 11 anos de idade, tem a árdua tarefa que garantir que haja água em casa antes de ir à escola. Ele arrasta uma carinha de mão com 13 bidões de 20 litros cada, mas queixa- se de cansaço. Admira Mulhanga, de nove anos de idade, também faz o mesmo trabalho e encara-o como um dever, talvez por ser mulher.

Para quem se desloca a Massaca pela primeira vez, da vila de Boane àquele local, de “chapa”, fica com a impressão de que se vai para uma zona de gente sofrida e deixada à sua sorte pelos dirigentes. O transporte que parte da vila para Massaca anda abarrotado de passageiros de tal sorte que paira a sensação de que o pneu pode arrebentar durante o trajecto por excesso de lotação.

Logo à entrada de Massaca 1 é visível o cenário de uma zona com características rurais: o visitante depara-se com homens, mulheres e crianças com bidões à procura do precioso líquido, além de animais de carga tais como burros a moverem carroças apinhadas de vários objectos e água, bem como pessoas empurrando carinhas de mão, o famoso “tchova xi ta duma”. Ter este meio de transporte é um luxo localmente.

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