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Kerygma: O almoço com que não sonhei

Nos dias laborais tenho almoçado nas barracas do Museu. Naquele sítio de iguarias e comidas ‘domésticas’. O lugar mais avantajado é o dos vietnamitas, o da dona Mamusca incluindo a barraca de um Pastor que veste sempre a camisola do Benfica. A barraca dos vietnamitas é o lugar onde se manifesta a mestiçagem ao mais alto nível. Chego a pensar que aquela barraca é mais frequentada por turistas do que alguns espaços ‘elegantes’ da Avenida 24 de Julho e Eduardo Mondlane. É a mania dos turistas: conhecer lugares exóticos que, aos olhos dos nativos, são “bregas”. Por sátira, diz-se que os turistas frequentam lugares similares porque são “txonados”. Não têm dinheiro e não possuem condições para passarem refeições em espaços como o Mimo´s, o Piri-Piri ou o Hotel Polana. Trata-se de coisas de turismo por que cada um de nós terá ou tem de passar, a fim de perceber a sua dinâmica.

Por vezes, eu e o meu amigo Inno, aquele dos “muzungos” (maus espíritos), almoçámos nas barracas do Museu. Quando a senhora Belmira, minha parceira, prepara um almoço na copa do serviço e poupo algum metical que pode servir para comprar descartáveis para a minha ‘nena’. Gosto de convidar alguns amigos para almoçar nas barracas do Museu. Uns aceitam e outros recusam o convite. Os que aceitam descobrem o outro lado da vida.

Contudo, tenho amigos que não aceitam a minha petição porque as suas profissões, segundo os mesmos, não se harmonizam com aquele lugar. Já ouvi gente dizer que aquele local não é para quem é assessor de ministro, que é consultor ou director de uma empresa pública. Alguns argumentos, mesmo não fazendo sentido, são por mim aceites. Respeito o bolso de cada um e as pessoas são livres de comer onde querem desde que não se apeguem às aparências só porque querem ser vistos na sociedade.

Mas o avesso também acontece: as barracas do Museu são frequentadas por alunos e professores das escolas circunvizinhas; alimentam- -se naquelas barracas pessoas de grande poder e influência no nosso país; aquele mesmo espaço é frequentado por profissionais que, de vez em quando, sentem a necessidade de estar naquele tipo de ambiente. Por exemplo, por coincidência, tenho sentado à mesma mesa daquele reputado jornalista que faz o programa “Café da Manhã” da Rádio Moçambique. É com ele que percebo a lógica das conveniências.

Contudo, na segunda-feira não tinha nem farnel que a minha esposa prepara e – pior ainda – nem algum dinheiro no bolso. Chegada a hora do almoço, eu não possuía o que comer. Abri a carteira e só me restavam dez meticais. Pensei em pedir algum dinheiro, aos meus colegas, para que eu almoçasse ou que dividissem os seus farnéis. No entanto, por receio e vergonha não o fiz. Porque na hora das necessidades temos de ser criativos, lembrei-me de que há uma senhora que vende maçarocas assadas na esquina próxima do meu trabalho. Dirigi-me para lá, na Avenida Julius Nyerere, em frente ao Cinema Xenon, e comprei uma. Quando já saboreava a minha maçaroca vejo o Albino, o meu amigo de infância, em frente de mim como um avatar. Apertando a minha mão direita, pois a outra está ocupada com o ‘almoço’, ele interpela-me:

– Bahule, estás bem?

– Sim, Bino. Estou óptimo mano. – Correspondo ao aperto sem deixar de degustar a maçaroca.

Mastigo com fel, pois a minha dor é dupla – movida pelo facto de não ter dinheiro, para almoçar, e por estar a pensar que terei de dividir o meu almoço. Não paro de comer. Tento imprimir uma velocidade dos carros de Van Diesel, depois de me nutrir, para que eu acabe antes que ele me peça. Aquele era o meu almoço. Ele olhou-me. E eu, na maior inocência, fingi que não percebia o seu olhar de inquietação. Continuei a triturar as espigas e a sentir o cheiro do queimado que aquele fruto da terra possui quando passa pelo lume. Senti um aperto. Apetecia-me beber água, mas o bolso…

– Mas, tu Bahule não tens vergonha? Comer maçaroca na rua! Espantei-me com aquela pergunta. Meu Deus, pensei comigo, complexo de superioridade deve ser coisa da novela. “É pecado comprar e comer maçaroca na rua?”

– perguntei para perceber o alcance das palavras de Albino. Ficámos num silêncio e, como que a suborná-lo, parti a maçaroca a fim de lhe oferecer um pedaço.

– Não é pecado. Não podias comprar essa maçaroca numa loja, do tipo ali no Dolce Vita?

– Hem… Yah… Eish… – Fiquei espantado e quase ficava louco com aquela afirmação.

– Vocês, os moçambicanos, não gostam de civilização. Devem aprender a entrar num restaurante para comer esses frutos secos. Mas tudo bem, estão aqui três mil meticais. Entra no Dolce Vita e come uma coisa condigna. Ah, pede uma boa sobremesa de frutos secos. – Aceitei o dinheiro com rancor. Confesso que me apeteceu dizer um insulto ou dar taroca e golpes ao meu amigo de infância. Mas, já ouvi de um grande sábio, “não há moral que aguente quando a fome aperta”. Com alguma pressa, entrou no seu BMW M3 e ‘esfumou-se’.

Depois de o BMW desaparecer, fiquei sem saber o que dizer e fazer. Os que viram a cena olhavam-me considerando-me um sortudo. Outros olhavam para mim com desdém e de modo desprezível. Tentei acabar as duas filas da minha maçaroca, mas o apetite já havia ido com o BMW. De volta ao serviço, fui-me interrogando: o que a pobreza faz connosco? Será mesmo que eu tenho de ir ao Dolce Vita e Mimo´s para comer maçaroca assada, farinha tapioca e “xibwanda” (bolo que é feito de maçaroca moída e que depois se coze)? Será que os novos endinheirados, como Albino, é que têm o direito de ditar regras? Propala-se que devemos ter nos nossos restaurantes comida moçambicana, mas ninguém tem a coragem de colocar esses produtos.

A única certeza que tenho é que terei de passar a ter o meu farnel para evitar ouvir frases levianas, como a do meu amigo de infância. Mas a verdadeira lição, depois da cena toda, vincou-se: é preciso lembrarmo-nos de onde viemos. Amém!

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