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Num país onde a pontualidade ainda não é a regra da disciplina

Na sua última estada em Maputo, o célebre músico moçambicano, Neco Novellas – radicado na Holanda –, realizou um workshop, na Rádio Moçambique, sobre a sua experiência no estrangeiro. Foi como se as portas que se lhe fecharam – quando, há mais de 15 anos, queria nascer como músico – finalmente tivessem sido escancaradas. No entanto, a ausência brutal dos seus colegas foi a nódoa que encardiu a iniciativa. É que, como se constatou, por aqui, “a pontualidade ainda não é a regra da disciplina”.

No encontro realizado no mês passado em Maputo com o músico moçambicano Neco Novellas – que há 15 anos vive e trabalha na Europa – era suposto que se tivesse debatido assuntos do mundo artístico como, por exemplo, sobre as técnicas de composição em todos os estilos de música, a exploração da voz como um instrumento musical, a gestão de carreira artística, a situação da música moçambicana/africana no estrangeiro com destaque para a Europa.

No entanto, como se viu, nenhum dos visados – os cantores moçambicanos – esteve no workshop. Em resultado disso, a meia dúzia de pessoas presente no evento (muitas das quais de áreas diferentes da artístico-musical) explorou a oportunidade simplesmente para estar com Neco Novellas. Se não se pode afirmar que o evento foi uma frustração, é simplesmente porque neste país, para além de “a pontualidade não ser a regra da disciplina”, há muito receio de se falar a verdade.

De qualquer modo, porque a ausência brutal dos músicos não podia obstar a tudo, acompanhe em linhas gerais a conversa mantida com o músico que, presentemente, possui quatro trabalhos discográficos, nomeadamente Munthu, Nghonani Mi Sinha, New Dawn Ku Khata e Mita Famba.

Como é que se sentiu ao fazer o seu primeiro voo como músico para a Europa?

Senti-me como um pássaro e, inocente, voei para Portugal com grande disposição para absorver todo o tipo de conhecimentos. Quando cheguei, percebi que na música havia muito mais do que eu pensava, por aprender e concretizar. Trabalhei bastante. Enquanto estudava música clássica, praticava as minhas línguas maternas. Tanto é que falo muito bem os idiomas nacionais mesmo vivendo fora do país há muitos anos.

O que eu quero dizer é que voar é muito bom. Sonhar é ainda mais bonito. Mas é importante lembrar-se de que depois desse sonho vem a sua realização, o que não é necessariamente difícil, mas implica muita dedicação.

Como é que olha para o país – em função das transformações sociais operadas – depois de ter estado muito tempo na Europa?

Penso que nunca me desliguei do país, porque tenho uma família maravilhosa em Maputo com a qual me relaciono. Mas 15 anos fora de Moçambique significam um tempo de dedicação à música como profissão. Um tempo em que as minhas músicas – escritas nas línguas nacionais como, por exemplo, o Ronga, o Changana e o Chope – mantêm o meu cordão umbilical com o país.

A possibilidade de um moçambicano sair do seu país para outro fora de África e, ainda assim, manter as suas línguas (muitas das quais nem sei se estão escritas) é uma prova de que mantive a fidelidade do meu sonho, o de estudar e preservar a nossa cultura.

Como é a relação entre os músicos moçambicanos na Europa?

Tem sido uma relação muito boa, porque se a Europa fosse um país diria que funciona muito bem. Por exemplo, estando em Maputo para ir à cidade da Beira é muito difícil. Mas na Europa, estando num país, é muito fácil entrar noutro. É isso que possibilita que os músicos facilmente realizem encontros de intercâmbio. Nesse sentido nós temos mantido encontros. Porque nos últimos anos temos ficado mais velhos e maduros, temos sentido a necessidade de estar mais conectados.

Quando fazemos encontros em que produzimos obras de arte e apresentamos na Europa, penso que isso é muito mais produtivo do que quando se faz de forma isolada. Portanto, os poucos artistas moçambicanos que estão na Europa sentem a necessidade da união para que se fortaleçam cada vez mais.

Como é que olha para o actual estágio da música moçambicana?

É uma pergunta difícil porque a música moçambicana não é tocada fora do país. Foi por essa razão que eu também decidi emigrar. Há vezes que vou à Internet para pesquisar alguma produção moçambicana, mas tem sido difícil encontrá-la.

Significará isso que na Europa a nossa música não é divulgada?

Não é divulgada e este é um dos motivos que me moveu a realizar este workshop. Eu queria dar aos músicos uma dica sobre como progredir na carreira musical, mas como vê a pontualidade – que é uma das virtudes que eu aprendi na Europa e que me fez progredir – faz muita falta por aqui. Enquanto nós não pensarmos nesse aspecto profundamente, vamos ter muitas dificuldades até de sair da nossa própria casa.

“A pontualidade é a regra da disciplina”. Eu ouvi isso quando era criança. O Presidente Samora Machel dizia, reiteradas vezes, até que nós entendêssemos que era importante não chegarmos atrasados à escola.

Como é que consegue fazer o seu management, de modo que a sua música chegue ao destino certo, em tempo oportuno? Quais são os passos que o músico deve seguir para ver a sua carreira a evoluir, sem depender da acção de terceiros?

Tudo depende da forma como as pessoas se organizam. Isso inclui a autoconfiança, associada à dedicação e ao talento que já deve existir.

Eu faço o meu management. Proponho concertos, faço contratos de projectos e envio-os aos potenciais financiadores. É um trabalho complexo que me deixa cansado antes de tocar a minha música. Mas quando essa fase chega eu sinto-me muito aliviado.

Por exemplo, saí de Moçambique num momento muito difícil. Na altura trabalhava na Igreja e um padre apercebeu-se de que eu tinha talento, o que o moveu a apoiar-me. Mas a sua bolsa só foi por um curto tempo. Depois disso não vi nenhum dinheiro.

Como é que eu podia viver no estrangeiro sem dinheiro e sem os meus familiares? Como é que eu podia pedir a um colega que me emprestasse dinheiro que é superior ao seu salário a fim de pagar as despesas? Foi nessas circunstâncias que aprendi a estruturar a minha vida e a acreditar em mim. As sementes que eu lançava na terra (não somente podiam mas) deviam germinar. O que era necessário fazer? Peguei nos livros, fui à Internet e comecei a pesquisar: Como é que se faz o self- -management para a música? Os resultados apareceram.

A Internet possui toda a informação de que se necessita. Na verdade, trata- se de um trabalho que se faz em casa porque é lá onde a gestão de recursos e de dificuldades começa. O problema é que quando se trata de mandar um Demo musical para a África do Sul nós começamos a pensar que é muito longe. Depois desistimos. Ou seja, fechamos as (nossas) portas antes de pedir licença.

Houve vezes que fui à Rádio Moçambique a fim de deixar a minha cassete. Quando cheguei não me aceitaram. Eu tinha que voltar a Matola a pé. Mas quando consegui gravar a música Tchururiba todas as pessoas gostaram. Eu não sabia que aquela música iria perdurar até hoje. Quando as pessoas começaram a chamar-me Tchururiba comecei a gostar. A minha música estava a ter impacto.

O que eu quero dizer é que nós temos talento, mas a principal virtude que devemos cultivar é a pontualidade. Fazer perfeitamente o nosso trabalho a fim de que, quando chegue aos outros, tenha um impacto positivo.

Disse que no princípio da sua carreira foi à Rádio Moçambique pedir que se tocasse a sua música. Na altura não foi recebido. No entanto, muitos anos depois, hoje, está a realizar um “workshop” sobre a sua experiência na música no mesmo local. Como é que se sente?

Sinto-me muito orgulhoso. Acho que a sensação não é muito estranha porque, 15 anos depois, aprendi que a porta que se havia fechado um dia poderia abrir-se. Na Europa fui gravar músicas que estão a ser tocadas com dignidade em Moçambique.

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