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“Ninguém matou Suhura”

“Ninguém matou Suhura”

Não é particularmente difícil descortinar algum sentido ou préstimo numa antologia de Lília Momplé. As primeiras páginas não são de molde a provocar entusiasmo: um tal Mark Sledge abdica de matar inocentes no Iraque, onde foi para tentar ser alguém. Contudo, o retrato do drama da exclusão e a impotência diante dela encontram-se nos textos subsequentes. É uma obra sobre a passividade da justiça, a hipocrisia, o racismo e o caos que se instalaram numa sociedade que se compreendia civilizada…

De “Uma bala para Sharmila a “Era uma outra guerra”, Lília Momplé deixou, em oito esplêndidos contos, um triste retrato da condição humana de negros, mulatos e dos brancos que julgavam – antes independência de Moçambique – que “todos os homens nascem iguais” e devem ser tratados da mesma maneira . Que o difícil é recordar a condição igualitária do ser humano torna-se visível nas primeiras páginas desta antologia de contos. Aliás, a obra demonstra que essa ideia é objectivamente falsa nas 147 páginas que contêm um conto longo e oito curtos.

São histórias de pessoas sem futuro, anónimas, amargas, sozinhas, precocemente envelhecidas, que vivem entre um quotidiano de empregos aborrecidos, famílias convencionais e umas vagas memórias de episódios felizes. Como é o caso de um puxador sem direito a nome, preso à sua condição de besta humana cuja única serventia é levar de um lado para o outro “o senhor Administrador”: um pedófilo de corpo e alma. Porém, tratado com respeito pelo simples facto de a sua apetência por adolescentes se circunscrever aos infantis corpos das negras e mulatas de uma província maior do que a sua metrópole.

A avó de Suhura – menina de 15 anos objecto dos desejos do Administrador – teve de entregar a sua neta a contragosto. A sua relutância não lhe serviu de grande coisa num espaço geográfica onde os negros e os mulatos não tinham direitos. O sipaio, Abdulrazaque, foi claro: “E você, velha, em vez de ficar contente, quer discutir as ordens do senhor Administrador?!”.

No dia imposto, Suhura seguiu “docilmente, através dos becos da Ponta da Ilha e pelas ruelas desconhecidas da cidade de cimento” rumo ao matadouro. O título que dá nome ao conto deve-se ao facto de a protagonista ter resistido aos desejos do Administrador. Ela era apenas uma adolescente, mas o seu algoz não observou essa situação, antes pelo contrário, aproveitou-se da sua frágil condição física para consumar a cópula.

“Apesar de todos os seus planos para suportar com resignação o inevitável, Suhura sente agora que não pode tolerar qualquer contacto físico com este desconhecido que avança para ela, com o ventre a tremer, e procura fugir a todo o custo” (. 115). Nessa luta vence o mais forte. O homem cuja filha, Manuela, casaria com um negro se gostasse dele. Uma afirmação reprovada de forma veemente e violenta pelos pais. Foi, aliás, pensando na filha rebelde e pouco dada aos exercícios de julgar o próximo pela cor que o Administrador usou toda a sua força, indiferente às consequências para desflorar uma adolescente de 15 anos. Suhura morre porque desistiu da vida, ou porque a vida desistiu dela.

Em “O baile de Celina” a discriminação volta a ganhar protagonismo por uma exclusão inesperada o que explica a sensação de impotência que atravessa esta narrativa e que é igualmente visível no conto “Caniço”. Embora não se trate, evidentemente, de uma exclusão associada directamente à cor da pele, mas sim ao vírus da ignorância de um reitor que cometeu um acto repugnante, Celina sente que não pertence ao mundo que lhe é negado. Portanto, os bons resultados alcançados por Celina na escola, ao contrário do que a mãe supunha – outra vítima da cor da pele – são insuficientes para mudar o curso das coisas.

Depois de anos de estudo e sacrifício, o máximo que Celina conseguiu ouvir do reitor da sua escola foi: “Quero avisar-vos que não podem ir ao baile dos finalistas (…) vem o Senhor Governador-Geral e pessoas que não estão habituadas a conviver com gente de cor. E vocês também não haviam de sentir-se à vontade no meio delas”.O ambiente que percorre a narrativa é de sofrimento, mas percebe-se que se trata de um mundo que, com algumas alterações, poderia pertencer ao presente. Um mundo em que é importante que os detentores do poder sejam “respeitáveis” e os oprimidos “sacrificados”, em que é imperioso evitar o “opróbrio” e é necessário que cada hostilizado carregue a sua própria cruz.

A exclusão encontra-se por todos os lados nestes contos, e os protagonistas vivem amarrados a expectativas estreitamente discriminatórias: “Ó homem, foi a sorte grande que te saiu (…) estava a ver que nunca te safavas da negra. Fugiu e fez ela muito bem. Espertalhona como é, deve ter percebido que já era altura de cavar. Teve mais juízo que tu com os teus tolos escrúpulos em mandá-la embora. E quanto à mulatita, deixa-a estar com a mãe. Acho asneira procurá-la”.

O pronunciamento saiu da boca do sócio do avó de Celina quando a sua mãe era menor e nem a “fuga” para a cidade grande livrou o fruto do ventre de Violante de um destino tão cruel quanto o seu. De qualquer dos modos são escravas da cor da pele, embora mais clara, ou da ignorância dos homens. A vida a correr lá fora, os brancos a abusarem dos pretos e das donzelas, os pobres de sempre a esfregar, a limpar. Uma luta desigual, na verdade.

Mesmo que intimamente revoltado, Naftal resigna-se à sua condição de escravo. Um rapaz com um emprego precário que perde o pai devido à tuberculose e vê a irmã, predilecta do progenitor e prostituta disputada nas ruas da zona baixa da cidade, a morrer lentamente pela mesma doença. Diga-se, no entanto, que os irmãos mais novos apenas desconhecem o que o futuro lhes reserva. Uma vida infeliz e à mercê da vontade dos brancos, donos da terra e dos homens.

Em suma: nos contos de Lília Momplé ninguém tem direito a uma vida verdadeira. Servir, para os negros e mulatos, está sempre em primeiro. Os brancos é que levam uma vida normal, mas essa vida normal é vazia, especialmente para os brancos que acreditam na igualdade entre os homens. Aliás, alguns, nem normalidade conseguem porque esperam demais de uma sociedade indiferente aos dramas do ser humano.

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