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Nesta Estrada Sem Asfalto: o Homem esqueceu-se de ser humano!

Nesta Estrada Sem Asfalto: o Homem esqueceu-se de ser humano!

“Não sei o que mais dói/ Se o pé maior que o sapato/ Se o sapato maior que o pé”. A verdade, porém, é que “Nós os peões/ Nós sentimos a dor de sapatos maiores/ E a dor de sapatos menores”.

Desde que um colega me emprestou, de há uns tempos até à altura que escrevi este comentário, tenho estado a ler o último livro do poeta moçambicano, Custódio Duma, intitulado Estrada Sem Asfalto. Confesso que por causa do tipo de poemas vibrantes, com mensagens revolucionárias e de transformação social que aprecio, imediatamente, senti-me encantado no Primeiro Canto, Estrada Sem Asfalto.

O livro possui quatro Cantos – sendo os três demais Acto Heróico, Ode Ao Prazer e Amor e Encantos. Quanto mais leio livros, a minha experiência de leitor cresce, acompanhando o desenvolvimento da minha personalidade. Embora eu não seja um revolucionarista activo, aprecio as ideias revolucionárias. Os pensamentos que nos mostram as realidades que não estão como deviam. As frases que nos dizem que há algo por transformar e/ou melhorar. Muito em particular no que diz respeito à condição humana e social. Só assim a vida pode ser verdadeiramente dinâmica.

O outro aspecto que aprendi, com a própria experiência, é que não existe um livro isolado do outro. Talvez, penso, é por essa razão que um escritor que se estreia na literatura é, em inúmeras vezes, movido a publicar um segundo livro. O mesmo acontece no cinema, no teatro, nas artes plásticas, no jornalismo e noutras formas de arte. Estrada Sem Asfalto é a segunda obra poética de Custódio Duma, o jurista. O autor, primeiro, publicou o livro Verdadeira Confissão. Mas os livros, em todos os tipos de literatura artística, científica e/ou religiosa, possuem uma intertextualidade incrível. Uma intertextualidade – não sei se é fruto da minha compreensão.

Por isso, espero não estar a fazer misturas explosivas – que é percebida também entre a literatura e o cinema. A literatura e o teatro. Do texto, constato, dependem as outras formas de arte. Todo este conhecimento que aqui exponho resulta da minha recente experiência, como leitor, em relação à obra Estrada Sem Asfalto. Depois de ler esta obra, com o propósito de elaborar este comentário, senti-me convidado a reler o livro Silêncio Escancarado, do moçambicano Rui Nogar e Espólio, do brasileiro Rubervan du Nascimento. Mas também – pelos motivos que mais adiante irei explicar – tive vontade de rever Perfume: a História de Um Assassino, um filme clássico do cinema francês do realizador Tom Tykwer.

Em Estrada Sem Asfalto, que também é o título do primeiro poema do referido livro, compreendo que Custódio Duma não o escreveu por pura vaidade, muito menos para cumprir um discurso constructo. Esta poesia apresenta-se-me como uma dissertação estruturada em quatro quartetos em que o sujeito poético denuncia o contra-senso que há em diversas facetas da nossa existência – não só como moçambicanos, mas sim como seres humanos. Neste debate, a situação da recusa – ou da falta – da identidade é tomada como um ponto de partida para se compreender as consequências que daí surgem (p. 9): “Conheci pessoas deslocadas da raiz/ Que andavam na estrada sem asfalto/ Zombando e recusando um país”.

Eu acho que, particularmente nesse texto, Custódio Duma contraria – e em grande estilo – o discurso filosófico segundo o qual os opostos, por exemplo, a vida e a morte, em constante conflito, estabelecem o equilíbrio do/no cosmos. O asfalto está para a estrada. Uma estrada sem asfalto não faz sentido nenhum. Por isso, esse livro é também uma forma de denúncia em relação aos problemas com que nos debatemos e de exercício da cidadania.

O autor trava uma discussão transversal que nos leva para outras temáticas – a liderança, à guisa de exemplo – sem perder em foco o seu objectivo. Estamos diante de um poeta actuante e preocupado com os problemas do seu tempo (p. 9): “Conheci um líder que falava ao dia/ que não era escutado nem cuidado”. Custódio Duma fala sobre a disfunção, critica a incoerência e sobretudo as falhas que se cometem em determinados sectores sociais cuja acção é essencial. O desrespeito ao princípio de exemplaridade (p. 11) é outro ponto de partida a partir do qual podemos visualizar gente que “Queria ser juiz sem ser recto”, bem como – e estes povoam os nossos jornais e canais de televisão – os “Artista inventados em elogios abusados”.

É a entidades como as que no parágrafo precedente referi – líderes políticos e juízes corruptos, por exemplo – que se dedicam estas duas estrofes (p. 14): “Este pão é o teu/ Feito de choros e prantos/ Servido na tua mesa/ Com dor de gente presa/ Este é o pão/ Pelo qual matas/ Matas gente/ Muita gente/ Gente sem pão”. Vale a pena retornar às sábias palavras do poeta Eduardo White – autor do prefácio Estradas das Dunas, patente no referido livro – quando afirma que “nenhum título no conjunto de livros que já se publicaram em Moçambique é tão próximo da realidade como este.

Facto que me descansa no que diz respeito à ficção ser tão próxima da realidade. Explico-me: estradas temos, o que não temos é asfalto e quando o temos é pouco para as estradas que temos”. Com ou sem asfalto, percebo que o moçambicano ainda não encontrou os mecanismos para satisfazer as suas necessidades primárias. Quando as satisfaz, fá-lo a magoar-se. Por isso, (p. 16) “não sei o que mais dói/ Se o pé maior que o sapato/ Se o sapato maior que pé”. Verdade, porém, é que “Nós os peões/ Nós sentimos a dor de sapatos maiores/ E a dor de sapatos menores”.

É em questionamentos desta natureza: “Quantos olhos te olham, / Quantas mãos, quantas vozes/ Seres que se estendem e se levam/ Que vivem das suas fezes”? que fico convencido, repito, de que Custódio Duna não escreveu este livro por pura vaidade. Este poeta humanista emite uma mensagem sobre a qual algumas pessoas – sobretudo, gente que “vive de medalhas sem vitória”, enquanto outra “vive dos seus azares”, deve pensar.

É que essas pessoas, em posição de liderança, comportando-se do modo habitual, são um verdadeiro contra-senso. O antónimo da missão que se propuseram cumprir. São um progenitor que abandona a própria prole, colocando em causa toda uma geração (p. 19): “Fugiste? / Um pai não foge/ É o que me disseram”. É por essa razão que, em resultado do exposto, compreendo que literalmente, neste livro, Custódio Duma (p.31) reporta as vivências de gente que não “conhece o tempo e o espaço de alegria”.

Mas também é impressionante a forma como Custódio Duma (p. 34) permitiu que o sujeito poético que habita em si o explorasse para expor esta “Construção Social do Outro” (aqui estou a “roubar” o título de um dos livros de Carlos Serra (2010), de um moçambicano em relação ao outro: “Esse cidadão nojento/ Maldizente e sem modos/ É um chingondo/ (….) Não é nossa essa gente/ É gente que veio de nenhures/ De um lugar onde ninguém é gente”.

Na obra de Carlos Serra (2010), já referida, no seu prefácio, Joseph Hanlon – só para dar alguma amplitude a esta questão da Construção Social do/sobre o Outro – afirma que “As pessoas de Pemba consideram os maputenses tão estrangeiros quanto os tanzanianos”. Por outro lado, o próprio historiador Serra (p.9) narra que “as percepções populares sinalizam os estrangeiros internos, aqueles que, por exemplo, oriundos de Inhambane, moram nos bairros onde habitamos. (…) Assim, haverá os Burundeses e os Manhembane”.

Autodestruição

É perante esta literatura de Custódio Duma que, vezes sem conta, me sinto convidado – e todos devíamos sentir-nos assim – a reflectir sobre as nossas práticas no espaço em que nos encontramos, a terra. De forma simples, o poeta fala sobre os mais sérios e complexos assuntos dos nossos dias – a poluição do meio ambiente. Ou seja, o autor exerce uma cidadania de valor e impacto planetário. Por exemplo, no poema Com a Morte (p.36), Duma leva o seu ponto de vista ao extremo com as seguintes palavras: “Construo o mundo que destrói a minha pessoa”.

O perfume

Como expliquei, Estada Sem Asfalto, como se chama o Primeiro Canto do livro com o mesmo título, é a parte do livro que possui motivos de revolução, de transformação social e de questionamentos que me encantam pelo simples facto de me identificar com este tipo de actuação na literatura. Provavelmente, por essa razão, a minha leitura neste livro deveria terminar por aí.

Ora, se tomarmos em consideração que, no seu prefácio, o escritor Eduardo White percebe a poesia de Custódio Duma como sendo “simples, ritmada, melódica, madura, embora ainda em crescendo, o que é muito bom e impregnada, tanto de mágoa como de alegria”, imediatamente, encontramos no texto Em Casa De Novo (p. 39) motivos para fazer a transição para um mundo mais alegre. Trata-se de um poema que instaura uma nova época, a etapa da recuperação da esperança, na medida em que introduz um novo conceito, um novo signo, o Perfume, que, como tal, além de não se deixar ler por completo – por ser transversal – oferece inúmeras possibilidades de interpretação. Encanta-me a forma como o sujeito poético lida com este “signo-mor” (p. 39): “Preciso de – grifo nosso – abraçar aquele perfume”.

Para nos mostrar que nós, os homens, já fomos algo muito melhor, ao mesmo tempo que chama a nossa atenção para a necessidade de apreciarmos o belo que fomos, exortando-nos a cultivá-lo, nesse mesmo quarteto conclui o seu pensamento propondo-se a “Deixar que minha verdade se aprume/ E voltar a ser eu, a ser humano/ Distante deste circo insano”. E, no contexto actual, essa ideia de voltar a ser humano não somente é urgente como também é complexa, porque nos mostra que – agora e diante do nosso comportamento presente – sempre que dizemos que somos humanos, estamos equivocados.

Os seres Homens não se portam como nós. A partir daqui encontro espaço para invocar o escritor moçambicano Rui Santos, não apenas para argumentar a pertinência de se percorrer esta Estrada Sem Asfalto – através da leitura –, mas, acima de tudo, para me aliar a ele quando no seu livro Elogios (p.6 e 7), nos diz que “Ler faz de nós seres humanos no sentido lato”. Estrada Sem Asfalto é um livro dos encantamentos. É apropriado ofertá-lo aos amados, porque voltando a esta questão do perfume, percebe-se que este signo – o perfume – sugere a ideia da pureza humana, da genuinidade humana, antes da poluição em que nos encontramos. E só nele é que se pode recuperar essa genuinidade, sobretudo porque é a partir dele, do odor, que também se percebe a podridão em que se encaminha a terra.

Associam-se à palavra perfume conceitos como suavidade, aroma e deleite. Mas o Perfume é o signo a partir qual se narra a História de Um Assassino, um dos mais clássicos filmes do cinema francês, sobre o qual o narrador John Hurt considera que possui “o poder invencível de comandar o amor da humanidade”.

Gosto dessa ideia da intertextualidade entre as diversas formas de arte porque, particularmente em Estrada Sem Asfalto, a poesia de Custódio Duma me levou a rever o povo de uma cidade europeia – Gras, Paris e Versalhes à guisa de exemplo – que “viveu uma experiência incompatível com a sua moral”, manipulado pelo poder do perfume produzido pelo perfumista assassino Jean-Baptiste Grenouille.

Custódio Duma emprega o termo perfume, pelo menos umas sete vezes – nas páginas 39, 63, 71, 86, 115, 116 e 118 – e eu estimo a maneira diversificada como o poeta procede. O perfume é o aroma do amor virgem, puro e genuíno. É a razão que (p. 40) nos faz “acreditar no mesmo amor” continuamente.

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