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Mutamba: Trabalhar duro e continuar desgraçado

Mutamba: Trabalhar duro e continuar desgraçado

A localidade de Mutamba pertence ao distrito de Jangamo, na província de Inhambane. Fica a cerca de vinte quilómetros da cidade. Eu moro em Nhapossa, um dos bairros da “Terra da Boa Gente”, mas nunca tinha estado naquele lugar para sentir a sua pulsação. Só passava, sem dar importância ao barro, de onde viemos e para onde regressaremos. Tu es pulveris et in pulvering reverteris (tu és pó, e ao pó regressarás). E Mutamba é terra de barro, um elemento tão evidente e tão ignorado. Mesmo assim, essencial. É tão essencial que, de sol a sol, o homem busca-o, incessantemente, por necessidade urgente de sobreviver. E molda-o para produzir peças de olaria, ou para fabricar tijolos, que serão vendidos e usados na construção civil. E, no fim, esse homem que trabalha como primitivo vai continuar desgraçado.

Saí de casa muito cedo, pouco depois de o sol raiar, porque desejava encontrar tudo na frescura do amanhecer. Não tinha pressa, nem de chegar, nem de voltar depois de terminar o meu trabalho. Queria que fosse o próprio tempo a dizer quanto tempo (desculpem-me o belo pleonasmo) levaria a minha descoberta. E se fosse necessário dormir, tenho lá um amigo que me vai acolher de braços abertos.

Enfiei-me no carro para percorrer um troço por demais redundante, mas lembrei-me logo de que tudo aquilo que parece repetitivo, na verdade nunca é igual. Por exemplo, o rio Guiúa, que agora atravesso, na primeira ponte, é o mesmo desde que nasceu, porém, cada vez que o passo, parece novo. E realmente é. As águas que ali correm nunca são as mesmas. Nunca serão aqui, nem em nenhum outro rio. É como a Mutamba, transformou-se. Em 2010 tinha aproximadamente 30 oleiros, hoje tem 300 (trezentos). São homens e mulheres que diariamente cavam o solo, em locais diferentes, num espaço onde não se sabe que quantidades desta riqueza existem, e até quando poderão ser exploradas. Nunca se fez esse estudo e, se já se fez, os seus resultados ainda não foram divulgados.

Jamais vai cansar repetir que, onde há um rio, há vida. E o rio Mutamba corrobora essa metáfora real em toda a extensão da esplendorosa baixa que, em tempos, foi grande produtora de arroz e depois de cana-de-açúcar. Em tempo de seca, ali não se percebe o castigo da natureza, porque o caudal não seca, mantendo tudo o que está nas suas margens e pouco mais com um verde vivificado.

Não obstante, hoje são poucos, na zona, que se preocupam com a produção de comida, que dificilmente terá mercado para produzir dinheiro, indispensável às necessidades diárias. Todos querem fabricar tijolo, cujos compradores são cada vez mais vorazes. Senão não se explicariam os inúmeros estaleiros artesanais espalhados por todo o lado, e vulneráveis às intempéries, porque quando chove todo o trabalho pode ficar diluído.

Famílias inteiras juntam-se neste processo duro que começa na escavação, junto ao rio, e termina na queima, arrastando inclusivamente crianças que deviam estar na escola, entretanto não podem estudar porque têm de contribuir para a renda. “Saco vazio não fica em pé”. E lá estão as crianças, fazendo trabalho de adultos, sem perceberem que o seu lugar não será ali, mas na escola, onde vai estar, efectivamente, o seu futuro.

Onde tudo começa

No meu primeiro acto, quando cheguei a Mutamba, fui ao rio, na companhia de Aladino Jasse, um angolano que se estabeleceu aqui há dois anos, puxado pelo cheiro do barro. Queria entregar-me a tudo aquilo. Rever uma ponte robusta sobre a qual passava o comboio para transportar cana sacarina ou arroz. Os carris já lá não estão, foram retirados para destinos outros, porém não conseguiram remover a infra-estrutura que parece querer ficar eternamente, agora com outra vocação: são os carros que passam, no lugar do comboio a vapor.

À minha volta tudo é verde. Todo o clik que vou fazer com a minha máquina fotográfica (já não uso a bugiganga do smartphone, graças a Deus!), traz-me um verde exuberante. Embrenhamo-nos (eu e o Aladino), pelo antigo canavial, onde as marcas desse tempo não estão completamente apagadas. As valas de irrigação ainda se notam, aqui e ali. Algumas canas ainda resistem, cuidadas mais pela própria natureza, do que pela mão do homem.

Temos que afastar constantemente as folhas incómodas das plantas, para podermos passar e ir ao encontro do trabalho. Parecemos guerrilheiros que procuram a paz nas matas. E, chegados a um dos poços da enorme jazida que é Mutamba, duas mulheres recolhem o barro extraído por braços fortes dos seus maridos. Elas têm que transportá-lo à cabeça, para onde será transformado em tijolo.

Por dia chegam a fazer cinco viagens numa extensão de cerca de dois quilómetros, com vinte quilos cada uma. E, feitas as contas, as carregadoras percorrem diariamente vinte quilómetros, para cima e para baixo. Perguntámos a uma delas se aquela actividade não era dura! Naturalmente que a pergunta era por demais estúpida e desnecessária. Elas precisam de trabalhar como meio de sobrevivência, embora sabendo que os rendimentos que dali sairão não as levam para muito longe. É trabalho demasiado para tão pouca receita.

Quem os apoia?

Existem algumas associações que têm em vista facilitar prováveis apoios. Mas por enquanto, por aquilo que se tem visto, a maior parte daqueles oleiros desenvolve um trabalho primitivo, muito desgastante. Por exemplo, para além das mulheres que vão ao rio trazer o barro cá para cima, encontraremos aqueles que têm a missão de moê-lo, e esse processo é feito com os pés, como se fazia pão antigamente, com a diferença de que, enquanto os outros pisavam farinha, estes pisam barro, com os pés sem protecção, não se sabendo se amanhã poderão contrair reumatismo ou não. São homens que vão vendendo a sua plena juventude pela sobrevivência.

O mais grave é que, em época chuvosa, não há trabalho. Os locais donde extraem o barro ficam alagados, e, mesmo que o produto tenha sido acondicionado, os oleiros terão dificuldades em pô-lo a secar, por não possuirem alpendres adequados para o efeito. As parras de coqueiro, para proteger os tijolos em processo de secagem, quando a chuva é torrencial, mostram-se ineficazes, e podem destruir todo um esforço feito a partir do rio. Quer dizer, aquela população vai trabalhando a olhar sempre para o Céu.

Há quem afirme que as condições de trabalho dos oleitros de Mutamba podem ser melhoradas, com apoios que podem vir do próprio governo, através das instituições vocacionadas. No lugar, por exemplo, de triturarem o barro com os pés, podem ser criados mecanismos no sentido de se construírem moinhos para as associações, e mesmo para privados, a preços bonificados. Quase todos eles trabalham sem formação, fazem tudo de forma primitiva, e o que se vê no produto final é a falta de qualidade no tijolo.

Muitos compram o material sem exigências, provavelmente porque o preço também não permite tanto. Contudo, se estes oleiros fossem capacitados e apetrechados com meios, que não serão propriamente industriais, melhorariam não só a qualidade do produto final, como aumentariam a renda. Por exemplo, na fabricação notamos que o processo de acabamento foi suprimido, por acarretar mais custos, o que traz efeitos negativos, porque o tijolo não sai direito. Mas esses males poderiam ser corrigidos se alguém prestasse maior atenção a estes trabalhadores que desenvolvem a sua actividade por instinto, pela razão da experiência. Mas a experiência não é tudo.

Lenha cada vez mais longe

A fabricação de potes e panelas de barro é a marca secular de Mutamba. Mãos delicadas de mulheres dedicavam- se com carinho a amanhar este material, para depois outras mulheres terem onde confeccionar e servir a refeição, e prover famílias inteiras de enormes potes onde a água vai ser refrescada. Mas como o tempo, sempre que passa muda a história, hoje os potes passaram para essa mesma história. Ninguém ou quase ninguém os usa. As pessoas evoluíram para panelas de alumínio ou aço inoxidável. Nos arredores das cidades de Inhambane e Maxixe, toda a agente, ou quase toda a gente, tem água canalizada em casa e muitos outros ainda usam congeladores ou geleiras.

Mesmo perante este cenário desfavorável, as mulheres não desesperam, muito menos se conformam ou se resignam. Juntam-se aos seus maridos e filhos e, como pássaros emigrantes, procuraram outro lugar para sobreviver, e esse outro lugar é ali mesmo, ou seja, na mesma jazida. Com a diferença de que a matéria-prima que agora vão tirar não é a mesma, porque há barro para potes e panelas de barro, e há outro barro para tijolo.

Fabricar utensílios domésticos será menos trabalhoso. As mulheres podem fazer isso em simultâneo com a limpeza de um canteiro onde vão plantar couves e alfaces e tomates e quejandos. Quer dizer, elas podem descer de manhã muito cedo, pegar na enxada e trabalhar e, no fim, pegar um pouco de barro e voltar para casa. Mas nas lides do tijo a história é outra. No mínimo é necessário ir ao rio quatro a cinco vezes para alimentar o estaleiro de produção. Em três ou quatro semanas o dinheiro já pode estar nas mãos, enquanto através da machamba o pecúnio demora mais, ou pode não vir. Dependendo dos caprichos da natureza.

Outrossim é que para a fabricação de potes e panelas de barro e coisas pequenas o combustível é retirado da parra dos coqueiros, que cai por si. Esta actividade não exige muito combustível. Contrariamente ao tijolo, que consome muito mais. Nos arredores já não há lenha. Foi toda ela devorada para alimentar os fornos. Aliás, Mutamba vem do nome mitamba , plural de tamba (nome em bitonga que se vai dar a uma árvore da qual se tira a lenha, e também pode- se fabricar cordas para a construção). E hoje as mitamba desabareceram ali perto, foram exploradas até ao fim.

As populações locais provavelmente ignorassem que o seu acto devastador iria mais tarde prejudicá-las, mas a necessidade de sobreviver é muito urgente para perceber isso. Agora aí está! Não há lenha em Mutamba! Mas aquela terra fértil poderia recompensá-los se houvesse um programa de reflorestamento, que não existe, por enquanto. Para que ele se faça é necessário que alguém de direito os ensine.

Depois daquela desflorestação já não se conhece a qualidade do ar que ali se respira. Pior ainda, os fabricantes de tijolo agora vão buscar o combustível lenhoso a distâncias consideráveis. De onde não se podem trazer os feixes à cabeça. É preciso alugar carros puxados por bois, o que vai encarecer ainda mais a produção.

Mesmo assim os ganhos não são por aí além. E não admira que daqui a nada os artesãos fiquem impedidos de levar avante o seu trabalho por falta de lenha. E, se isso vier a acontecer, pode ser que voltem à machamba, com todos os riscos comerciais que isso representa, com o tempo que se tem de esperar de barriga vazia.

Um angolano chamado pelo cheiro do barro

Em Mutamba vive um homem enigmático. De longe parece uma coisa. De perto parece outra. Mas o que parece a mesma coisa em todas as ocasiões em Aladino Jasse é a sua serenidade. Que chega a ter o sabor de uma ferida, ou de uma dor adiada. Conheci-o em Maputo de forma ocasional, eu com um bloco de notas e uma esferográfica, e ele à frente de uma tela, no mundo da serigrafia.

Conversámos e, o que mais me apaixonou nele, para além da arte, é que vinha a Moçambique à procura das suas raízes. E quando me disse que o seu avô era dos Jasse de Inhambane, fiquei assustado porque eu também sou daqui. Não dos Jasse, obviamente! Mas sou daqui. Agora encontro-o em Mutamba, com a mesma pele de tranquilidade, e olhar pensativo. Perguntei-lhe de propósito o que fazia por aqui.

“Venho à procura do meu avô”. E o avô de Aladino Jasse foi deportado para São Tomé, e de lá foi para Angola onde se casou e nasceu o pai de Aladino. Aladino Jasse é angolano, mas de origem moçambicana, se calhar será por isso que está aqui. “Também vim parar a Mutamba por causa do barro. Como sabes, o barro é invisível, ignorado, mas é essencial. Segundo as escrituras, viemos do barro, e ao barro regressaremos”.

Este homem é oleiro de formação, embora não exerça essa actividade. Em Mutamba não estará propriamente a materializar o seu regresso ao barro, mas será a partir do barro que ele quer começar. “Estou à procura do princípio”. E tudo indica que ele já começou. “Daqui não saio, sinto-me seguro”.

Na verdade Aladino Jasse transparece isso, segurança. Dá a sensação de que o seu avô o protege, porque por todo o lado onde ele anda é recebido por amigos, que não o conhecem. Se calhar o espírito do avô chamou-o para um objectivo que ele próprio ainda não sabe. Trouxe a sua trouxa, que não será fácil voltar a movimentar para outro lado. “Vou ficar aqui para sempre”.

Se calhar o facto de estar em Mutamba tem a ver com uma praça situada em Luanda, de onde se parte para vários locais. “A Mutamba em Luanda é um pivô. Todos os movimentos da capital angolana começam dali. Ali se chega e dali se parte. Para vários lugares. Sinto-me bem aqui, porque aqui também é minha terra”.

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