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Economia da sobrevivência

Economia da sobrevivência

Nampula tenta livrar-se do atraso construindo novas infra-estruturas no meio da urbe. É uma cidade que cresce de encontro ao céu. Contudo, em paralelo com a cortina de betão armado, esconde-se uma verdade atroz: um mundo informal que cresce com as suas próprias regras e sustenta milhares de famílias. Uma verdadeira economia da sobrevivência…

Numa estrada empoeirada que vai dar ao Muala Expansão, um bairro que nasceu para albergar grandes mansões e repleto de estradas precárias, a luz do sol bate no rosto de milhares de sobreviventes que encontram na rua o sustento dos seus. Carrinhas de caixa aberta partem para os distritos repletas de carga e de pessoas que viajam nas piores condições.

Daqui saem para Angoche e Mongicual. É um cemitério de expectativas que ressuscita novas formas de contornar o destino. É como estar no meio do mar sem saber nadar. Pilhas de sacos plásticos, bidões de óleo descartados pela zona nobre de Nampula encontram abrigo e serventia neste cruzamento de destinos. Em Nampula esse ambiente inóspito significa trabalho, dignidade e, sobretudo, dinheiro.

Quem se limita ao perímetro da cidade de cimento fica com uma imagem destorcida do que é Nampula nos dias que correm. É preciso penetrar pelo coração da urbe e dos seus labirintos que desafiam a tenacidade de qualquer viatura com tracção às quatro rodas para sentir o odor de uma cidade que acorda às 5horas para lutar pela sobrevivência. “Boss, eu quero emprego”, diz a sorrir Ernesto Chaure, de 32 anos de idade. Ele é natural de Mogincual e é grato ao cruzamento onde ganha dinheiro em dias intercalados. Hoje (terça-feira) é seu dia de folga, mas decidiu vir para ver “se encontra qualquer coisa”.

Organiza as filas e arruma os passageiros que pretendem partir para Mogincual ou Angoche. É um trabalho rotineiro, cansativo e maçante. Ele e cinco amigos despertam cedo e só largam quando o último carro parte para o destino pela estrada poeirenta. Ganham 300 meticais por cada camião. Ontem foram sete camionetas. Regressou ao aconchego do lar com 300 meticais e um sorriso no rosto.

“Comi carne ontem. Amanhã logo se vê”, afirma radiante e com a convicção de que o dia de amanhã sempre há-de prover àquele que cedo madruga. Chaure chegou de Mongicual crente de que Nampula significa emprego e vida farta. Enganou- se e penou como nunca pensou. Equacionou regressar à sua terra natal, mas não tinha meios. Bateu várias portas, mas não encontrou o emprego almejado.

O destino mudou quando se cruzou com Osvaldo Carlos António, de 25 anos de idade. “Foi ele quem me convidou para integrar a equipa. Vivi em casa dele dois anos. Hoje vivo na minha própria casa com a minha mulher e o meu filho”, confessa grato ao amigo que lhe mudou o destino.

Os nampulenses vivem de aumentar formas de aumentar a renda. Trabalham por conta própria, vagueiam pelas ruas à procura de flasher (termo que na linguagem dos vendedores informais significa procurar clientes), e recolhem o que vêem pela frente que aparente ter proveito. E isso explica os numerosos produtos oferecidos no local.

Vimos linhas de cozer sapatos, repolho, cebola, batata, sacos de sisal, água, refrigerantes, combustível, recargas de telemóvel, cordas, bidões, sacos plásticos, máquinas de costura, farinha de milho, arroz, panelas, e isqueiros. Tudo isso em menos de 100 metros de estrada. Já a informalidade do negócio é explícita na ausência de taxas para exercer o negócio e nas rusgas que a edilidade faz de quando em vez para reprimir as actividades destes “vientes”, termo usado para designar os moçambicanos que não são naturais da cidade de Nampula.

Movimentação

Na verdade, a movimentação de vendedores informais à entrada, saída e no coração de Muala Expansão é um retrato preciso da ocupação da população activa local. São centenas de munícipes provenientes dos bairros com o firme propósito de fazer dinheiro numa circunscrição que continua associada à miséria, apesar de ser a terceira cidade mais importante do país. Para se antecipar à falta de emprego, João Omar, de 23 anos de idade, optou por vender linhas de cozer sapatos. “É arriscado, mas é o lugar mais fácil de conseguir algum dinheiro”, diz. Num município sem grandes alternativas de sobrevivência, a edilidade não consegue disciplinar a actividade informal, mas justifica a vista grossa que faz alegando que “a municipalização é um processo que leva tempo”.

A ideia de se ceder um espaço aos informais para se melhorar a imagem da urbe não encontrou acolhimento em vendedores como Omar. “Num espaço fechado não vamos conseguir vender. Aqui é melhor porque as pessoas passam com frequência”. A tese do nosso interlocutor é secundada por Larcénio, de 17 anos de idade, que se dedica à venda de bolinhos de trigo e açúcar. O rapaz, que diz frequentar a sétima classe, mas não consegue indicar o nome da sua escola, ganha 500 meticais por mês.

No meio de espaços como este, os moçambicanos vivem andando de um lado para outro sem saberem o que lhes espera. São 3.000 homens (dados fornecidos pelo município) a lutar para conseguir alguma coisa nas ruas de Nampula. Benjamim, por exemplo, vende na rua há 15 anos. Afirma que ele e tantos outros não possuem a licença do município. “Eu nem quero. Como é que vou pagar uma taxa de 10 meticais diários se não existe uma casa de banho para nós? Prefiro estar ilegal”, diz.

Assim, a discussão retorna ao informal. O destino de milhares de cidadãos macuas passa por uma actividade informal. Há uma equação a ser resolvida que envolve melhorar a vida de uma maioria que se especializou em sobreviver.

Uma senhora esforçada

Centenas de carros partem e os vendedores espalham-se pelos quatro cantos. Apesar da exiguidade de espaço, o mesmo é partilhado sem brigas. À noite, quando dezenas de vendedores recolhem, o espaço muda de rosto. Enquanto os vendedores informais se acotovelam neste mercado a céu aberto, Ancha Cualé pensa na forma de ganhar mais dinheiro. O que no seu caso e de outras mulheres é uma luta ingrata. “Os jovens querem pagar pouco pela comida e eu preciso de ganhar dinheiro. Não posso subir os preços”, diz ela, que vende cada prato de arroz com caril de feijão por 20 meticais. É assim que sustenta o marido e 12 filhos.

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Chega ao local bem perto das 12horas e é imediatamente rodeada pelos filhos da sobrevivência, num lugar onde as regras foram definidas pelo informal. Veio com caril de feijão e de frango para acompanhar arroz ou chima (cozinhado de farinha de milho). Também há salada de repolho. À semelhança dos arrumadores de carga e passageiros, Ancha Sualé também vende em dias intercalados. As receitas, diz, não dão para grande coisa, mas significam tudo numa casa onde o homem não trabalha e representa um peso nas costas desta mãe de 12 filhos. O mais novo tem dois anos e seis meses. A primeira sorte, como gosta de dizer, já é um adulto e tem 23 anos.

Há 12 anos decidiu que devia fazer alguma coisa e saiu de casa com duas panelas de comida. Sentou-se numa esquina e os clientes não tardaram. “Percebi nesse dia que podia vender comida e sustentar os meus filhos”. Sempre que acaba as refeições que traz consegue amealhar 700 meticais. Uma parte é separada e guardada na ponta da capulana para qualquer emergência.

Carga é mais importante

Sair de Nampula para Mongicual, que dista 150 quilómetros, custa 150 meticais. Entretanto, a viagem é feita com todos os riscos e em cima de mercadorias. Aliás, para os camionistas a mercadoria é mais importante. A mesma serve para abastecer os grandes comerciantes dos distritos para onde partem idos de Nampula. Contámos 40 pessoas em cima da lona de camião. Um cálculo rápido indica que a receita proveniente dos passageiros queda-se em 4.800 meticais num bom dia. Neste campeonato de importância, o valor da carga ascende, sem dificuldades, os 12 mil meticais.

“A nossa ideia, mano, é levar carga. As pessoas servem para aumentar a receita”. Júlio Atumane é um desses passageiros e diz que nem sempre foi assim. “Antes viajávamos em bancos, mas mal os camionistas compreenderam que poderiam ganhar mais com a carga os passageiro perderam importância”, afirma convicto.

Engana-se, porém, quem julgue que os nampulenses reclamam das viagens penosas. “É a única forma de chegar ao destino”, dizem conformados e gratos aos camionistas. O que fica claro, quando se está em Nampula e se compreende a forma como os moçambicanos são transportados, é que o país precisa de reflectir sobre o transporte. É que aquilo que na capital do país é um problema, a 2.000 quilómetros é uma bênção. Ou seja, uns queixam-se da falta de comida e outros, com menos posses, querem simplesmente um meio circulante.

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