Para lá do véu da despesa pública, há um mundo de gastos exorbitantes para garantir conforto aos antigos estadistas e/ou dirigentes superiores do Estado. No espaço de um ano, Marcelino dos Santos viveu numa casa que custou, de arrendamento, ao erário, cinco milhões quarenta e seis mil e seiscentos meticais (5.046.600). Dados em posse do @Verdade mostram que ao mesmo tempo decorria a reabilitação da moradia do histórico combatente pela luta de libertação nacional, sem concurso público,com um custo total fixado em 2.800.000,00 meticais. Um luxo que atropela procedimentos é apenas permitido a“gente grande”….
Durante um ano, Marcelino dos Santos residiu numa vivenda independente de três pisos, com três suites e dois quartos simples, três salas, uma cozinha, três casas de banho, anexo e piscina no bairro da Sommerschield II. Esse luxo custou – aos cofres do Estado – cinco milhões quarenta e seis mil e seiscentos meticais (5.046.600). Efectivamente, dos Santos custou ao erário oito milhões quinhentos cinquenta e oito mil e duzentos meticais (7.846.600).
A luxuosa e espaçosa residência foi arrendada pelo Gabinete de Assistência aos Antigos Presidentes da República e Atendimento aos Dirigentes Superiores do Estado (GADE) para que se procedesse à reabilitação da casa do histórico líder da Frelimo. “Tendo sido autorizada a reabilitação da residência de SEXA, Marcelino dos Santos, antigo presidente da Assembleia da República, tornou-se necessário transferir a família para uma casa provisória alugada para o efeito”, diz a nota no 025/ GADE enviada ao Secretário Permanente do Ministério das Finanças.
Numa cópia em anexo, de 29/10/2010, enviada à Direcção Nacional do Orçamento do Ministério das Finanças, o GADE remete a factura no 0069 da empresa Marabillda, Imobiliária e Serviços, “no valor de 1.731.600 meticais correspondente ao pagamento da renda trimestral (…) da casa onde S. Excia. Marcelino dos Santos e a família irá habitar enquanto decorrem as obras da sua residência” por “indisponibilidade orçamental” daquele departamento que zela pelo atendimento aos dirigentes superiores do Estado. @Verdade tem em mãos uma cópia do contrato de arrendamento e verificou que o número 2, da cláusula quarta, refere que “todas as benfeitorias e obras que o Arrendatário (GADE) fizer no imóvel, ficarão pertencendo ao imóvel, devendo os custos serem suportados pelo Arrendatário (GADE)”.
O Departamento de Bens, Serviços e Investimento informou na nota no 44/041.41GADE/2011 de 04/02/2011 que “por despacho de 28/02/2011 (…) foi autorizada a disponibilização do contravalor de 30 mil dólares para pagamento de arrendamento dos meses de Fevereiro, Março e Abril/2011, a favor da Marabil Lda”. Assim, continua, “pela ordem de pagamento no 18 de 01/03/2011 foi efectuada a transferência de fundos no valor de 958.500,00 meticais ao câmbio de 31,95 meticais do dia 02/02/2011 do Banco de Moçambique”. (Ver ordem de pagamento em anexo).
Contudo, nos termos do artigo 9, no 5, alínea a), da Lei 32/2007 que aprova o Código do IVA, consta que a alocação de imóveis para fins de habitação está isenta do pagamento do referido imposto. O Ministério das Finanças, através da Direcção Nacional de Contabilidade Pública (DNCP), detectou essa anomalia no contrato de arrendamento e solicitou que o GADE intercedesse junto da Marabil, Lda. para devolver aos cofres do Estado 105.300,00 meticais cobrados indevidamente. No entanto, a Marabil alegou que “todas as facturas emitidas não incluem o IVA (ver factura com IVA no anexo) e que as mesmas apresentam o valor líquido depois de deduzido o valor correspondente ao IRPC”.
A factura 0069, na posse do @Verdade, emitida no dia 1 de Novembro de 2010, apresenta a importância de 1.480.00000 acrescidos de 251.600.00 de IVA. O total que foi cobrado ao Estado, naquela factura, é de 1.731.600 meticais. No entanto, a 22 de Agosto de 2011 referente ao pagamento das rendas daquele mês, Setembro e Outubro do mesmo ano é que a factura muda de formato. Ou seja, o valor reduziu para 1.275.000, dos quais foram retidos na fonte 255.000,00 de IRPC.
No período em apreço, o GADE enviou à DNCP um pedido de pagamento nos valores de 2.810.000,00 e 1.731.600,00 meticais, respectivamente. A Marabil, Lda. recebeu o valor acima citado pelo arrendamento de uma moradia. A E.R.R, por sua vez, ganhou quase três milhões de meticais pela reabilitação da residência de Marcelino dos Santos. “Para efeitos de reabilitação e arrendamento da residência de SEXA Marcelino dos Santos, vimos junto de V. Excia solicitar o pagamento de 4.541.600 meticais às empresas E.R.R (…) e Marabil”, lê-se na requisição do valor.
Depois da troca de correspondência sobre a questão relacionada com o IVA e a substituição pelo IRPC houve, diga-se, consenso entre as partes. Um ofício do DNCP, assinado por Amélia Mutemba, directora nacional de Contabilidade Pública, refere que “sobre o assunto em referência e, para a formalização do consenso alcançado (…) tenho a honra de informar que foi transferido o montante de 713.100,00 meticais referente ao pagamento das rendas dos meses de Agosto a Outubro de 2011, respeitante à residência de S. Excia. Marcelino dos Santos. A operação bancária foi efectuada no dia 25/08/2011 de acordo com a ordem de pagamento.
Efectivamente, entre a reabilitação da residência do histórico combatente da libertação nacional e o arrendamento de uma moradia, os cofres do Estado desembolsaram pouco mais do que sete milhões de meticais sem concurso público. A situação que deixa, mais do que claro, de que quando se trata de dirigentes superiores do Estado a lei é pontapeada. Ou seja, a reabilitação da habitação de Marcelino dos Santos custou dois milhões e oitocentos e dez mil meticais (2.810.000, 00) muito acima dos 300 mil meticais estipulados como valor máximo no regulamento de obras públicas até ao qual pode ser dispensado o concurso público.
Contrato sem visto do Tribunal Administrativo
A DNCP enviou, no dia 31 de Agosto de 2011, um ofício no qual constatou que o contrato de arrendamento celebrado entre o GADE e a Marabillda, “não foi submetido ao Tribunal Administrativo, contrariando o artigo no 72, da Lei 26/2009”. Na mesma nota, questiona-se igualmente o facto de a cláusula 3 do contrato de arrendamento evocar a cobrança do IVA. Ademais, uma nota assinada pela chefe de repartição do DNCP é clara quanto ao pontapear de procedimentos no GAPE: “O pagamento do valor solicitado foi efectuado antes do despacho em virtude de a Repartição ter recebido orientação superior no sentido de se proceder” ao mesmo “na condição de se remeter posteriormente ao sancionamento”.
Alteração da cláusula?
Depois da constatação da DNCP, as partes alteraram o conteúdo da cláusula terceira do contrato de arrendamento. Lê-se, na adenda, “acordam as partes em alterar o conteúdo da cláusula terceira do referido contrato, consubstanciado em fixar o valor da renda trimestral em um milhão e duzentos e setenta e cinco mil meticais, de que se fará a respectiva retenção na fonte do valor correspondente ao IRPC de acordo com a taxa em vigor”. Contudo, no ofício no 15 escrito à mão a DNCP informa ao GADE que “não ser necessária esta adenda. Mantém-se o contrato original com a ressalva de que as facturas não devem incluir a taxa do IVA.
Olhando para as benesses concedidas ao histórico combatente da luta de libertação nacional, Marcelino dos Santos, pelo GADE, é difícil identificá-lo nesta frase: “Temos um incomensurável número de gente pobre e muito pobre. Mas o Estado não tem capacidade para resolver isto porque as políticas são capitalistas”.
Se, por um lado, a figura que um dia disse que era a própria Frelimo afirma que “a única razão para continuarmos a viver é acreditarmos que é possível reconstruir o socialismo” é merecedora de todo o respeito pela verticalidade, por outro, não recusar, de forma alguma, os benefícios do capitalismo mostra que há uma grande diferença entre o discurso e a prática.
Portanto, a visão de que os governantes da actual Frelimo estão a tornar-se autênticos predadores das riquezas nacionais que tem como resultado a acumulação incessante e desmedida da riqueza ilícita, ante uma população cada vez mais pobre, não é despropositada.
Ministério das Finanças
@Verdade contactou o Ministério das Finanças, entidade responsável pela gestão do dinheiro público e desembolso de valores monetários para esclarecer o assunto. No entanto, disseram-nos que não consta, dos arquivos daquela instituição, qualquer registo de movimentação com vista ao desembolso de somas em dinheiro para a reabilitação ou arrendamento de residências para os ex-dirigentes superiores do Estado.
Com efeito, a secretária da Direcção Nacional do Tesouro, naquele ministério, identificada apenas pelo nome de Alice foi clara: “Este ministério não desembolsa nenhum valor monetário para arrendamento de casas de altos funcionários do Estado sem que o mesmo seja aprovado da Assembleia da República”. Quanto ao caso específico de Marcelino dos Santos a fonte reiterou que “não há registos”.
GADE
@Verdade deslocou-se, no dia 7 de Fevereiro, ao Ministério da Administração Estatal para ouvir o secretário permanente daquele instituição sobre o assunto, Higino Longamane. Disseram- nos que se encontrava reunido e que devíamos esperar. Volvidas duas horas, sugeriram que deixássemos os nossos dados para posterior contacto. Volvidos seis dias, fomos recebidos pelo director do GADE, Alberto Vicente, que afirmou que a lei estabelece tal direito para todos os altos dirigentes do Estado.
Ou seja, “todos os funcionários do Estado têm direito a casa após o cumprimento do seu mandato”. Questionado sobre a necessidade de concurso público – para valores acima de trezentos mil meticais (300.000) -, Vicente referiu que “o assunto não precisou de passar por concurso público e nem pela Assembleia da República por se tratar de um direito vinculado aos dirigentes”.
No entanto, o artigo 113, do Decreto no 15/2010, que aprova o Regulamento de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, esclarece que “o Ajuste Directo é a modalidade de contratação aplicável sempre que se mostre inviável ou inconveniente a contratação das outras modalidades (…). Efectivamente, tal modalidade aplica- -se “sempre que o valor estimado da contratação for inferior a cinco porcento do limite estabelecido nos termos dos no 2 e 3 do artigo 90 do presente Regulamento, devendo-se juntar pelo menos três cotações para justificar a razoabilidade do preço, da escolha do empreiteiro, fornecedor ou prestador de serviços”.
O no 2, do artigo 90, estipula, na sua alínea a), 3.500.000, meticais e na b) 1.750.000,00. Ou seja, só é permitido o Ajuste Directo quando estão em causa valores que não ultrapassem cinco porcento destas quantias. O no 4, do mesmo artigo, informa que “não é permitido o fraccionamento do valor estimado para contratação com a finalidade de aplicar o Ajuste Directo”. No que tange ao custo total do arrendamento e a reabilitação da residência de Marcelino dos Santos, o director do GADE remeteu a responsabilidade ao Ministério das Finanças que, no seu entender, lida com tudo? que diz respeito aos gastos.
@Verdade consultou alguma legislação em torno dos dirigentes superiores do Estado. A Lei no 4/90 de 26 de Setembro, no seu número 15, fala do direito a habitação. O no 1 esclarece que “o Estado assegura residências oficiais ou de funções para os dirigentes superiores do Estado” nos quais se enquadra a figura de Presidente da Assembleia Popular, actual Assembleia da República. O nº 2 afirma que “o Conselho de Ministros regulará por decreto as verbas anuais destinadas à manutenção e equipamento das residências mencionadas no número anterior”.
O artigo 11, por sua vez, fala dos direitos após a cessação de funções e refere que “quando no momento da cessação de funções se verificar que o Presidente da Assembleia Popular e o Primeiro-Ministro não possuam residência própria, o Estado colocará à disposição para utilização” um casa para tais dirigentes desde que tenham exercido “pelo menos dois anos e meio de função”.
CIP questiona os critérios de atribuição de regalias
O Centro de Integridade Pública (CIP) defende uma revisão com carácter de urgência da legislação que concede direitos e regalias aos dirigentes superiores do Estado, de forma que o Estado moçambicano reduza a despesa pública, pautando por uma conduta de austeridade na gestão do bem público.
“Esta reforma afigura-se necessária e urgente, porquanto a legislação sobre os direitos e regalias da elite política moçambicana se encontra desajustada da realidade actual e da conjuntura de crise, para além de estar dispersa por vários diplomas legais, conduzindo a um tratamento não uniforme e, por vezes, contraditório das matérias que regula”, diz o CIP, acrescentando que “Na forma como actualmente está estabelecido, o quadro legal sobre a concessão de direitos e regalias aos dirigentes superiores do Estado transformou o exercício de cargos públicos numa forma de obtenção de recursos materiais e financeiros de forma facilitada, bem como de outras benesses para os titulares de cargos públicos e seus dependentes (durante e findo o exercício de funções públicas), numa escala questionável, atendendo à sua extensão (dos beneficiários)”.
A Lei 4/90, de 26 de Setembro, lista uma série de figuras com a designação “dirigentes superiores do Estado”, com a finalidade de lhes conferir direitos e regalias, bem como os correlativos deveres. No entanto, e no ponto de vista do CIP, a Lei 7/98, de 15 de Junho, que visa rever a legislação sobre a matéria ligada à concessão de direitos e regalias, assim como a fixação dos respectivos deveres, “vem conferir uma nova designação aos membros do Executivo, que já constavam da lei 4/90 como dirigentes superiores do Estado, nomeando-os como titulares de cargos governativos, sem revogar parcial nem totalmente a lei anterior”.
Ora, na óptica do CIP, “estas contradições entre as duas leis estendem-se ao documento que se refere aos salários, com a designação ‘quadros dirigentes’, e a respectiva lista passa a contar com outras figuras que não constam das leis 4/90 e 7/98. O que se questiona na situação em análise é o facto de um documento sem características de uma lei vir, a posteriori, incluir figuras que as leis em referência não consideram nem titulares de cargos governativos nem dirigentes superiores do Estado, e criar a designação de ‘quadros dirigentes’”. O Centro de Integridade Pública questiona a extrema confidencialidade na concessão de direitos e regalias aos designados “dirigentes superiores do Estado”, facto que não contribui para a transparência na gestão da coisa pública, num Estado que se quer de Direito.
A título ilustrativo, diz o CIP que “os valores referentes aos salários a auferir mensalmente pelos designados “dirigentes superiores do Estado” encontram-se plasmados num simples documento. O referido documento relativo aos salários mensais da elite política moçambicana não está publicado em Boletim da República, nem é indicada a entidade da sua proveniência, para que se possa aferir a sua competência como órgão para a produção de diplomas legais que tratem de matérias de semelhante conteúdo”.
Para o CIP, trata-se de uma situação que conduz a que a concessão de direitos específicos, tais como salários, ajudas de custo, despesas de representação… e os critérios de atribuição sejam tratados em documentos de extrema confidencialidade e sem suporte jurídico-legal, na medida em não são aprovados por diplomas legais que seguem o prescrito na lei.
“Servindo-se dessa confidencialidade, cada instituição pública fixa os direitos a conceder aos titulares elegíveis ao órgão, num claro sinal de falta de transparência”, denuncia o CIP. Para além da falta de transparência na atribuição de regalias, o CIP questiona, também, a economicidade de tais benesses na conjuntura em que o país se encontra, sob elevada dependência de fundos externos, pouca produção e produtividade interna, desempenho fraco da economia nacional, e o seu estágio de desenvolvimento.
“Está em causa a falta de clareza sobre os valores referentes ao pagamento de água e luz, telefone fixo, empregados domésticos e despesas de representação constantes da tabela salarial referente aos designados quadros dirigentes. Nessa tabela, não se faz referência aos valores alocados para o pagamento de tais despesas ao Presidente da República e Primeiro-Ministro. Para efeitos de prestação de contas, esta obscuridade pode conduzir a gastos difíceis, ou mesmo impossíveis de mensurar, por inexistência de um tecto que os limite. Na actual situação, esta atitude equivale a conferir autênticos cheques em branco a tais figuras, sem critérios claros de valoração e economicidade”.
Numa outra frente, o CIP ataca as reformas precoces e acumulação de regalias. É que a actual legislação sobre direitos e regalias da elite política é de tal permissividade que maiores benefícios sejam concedidos aos dirigentes após cessarem o exercício de funções públicas, altura em que não são efectivamente produtivos para o Estado.
Nota: @Verdade tentou, inúmeras vezes, contactar Marcelino dos Santos para ouvir a sua opinião sobre as regalias de que beneficia. Contudo, não foi possível falar com o histórico combatente da luta de libertação nacional para saber se ele, primeiro, tem conhecimento das despesas e, segundo, se concorda com os gastos.