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Maputo dos guardas!

História dos que – mesmo desprezados pelos patrões, ignorados pelo Governo e agredidos pelos marginais – enfrentam as vicissitudes das noites para ganhar o pão que nunca chega para tantas bocas que há nas suas famílias.

«Toda a pessoa tem o direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego ». Este é o número um do artigo vigésimo terceiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem que não admite dúvidas: trabalhar não pode ser uma utopia. No entanto, para muitos moçambicanos ainda é um sonho adiado.

Armando André é um dos milhares desses rostos moçambicanos que enchem estatísticas de tristes histórias de vida. Quando o encontrámos, o calor e o fumo da fogueira improvisada no corredor que dá acesso ao prédio rústico que guarnece na Avenida Filipe Samuel Magaia – baixa de Maputo – fundiam-se e serviam de perfeita cortina contra uma brisa de sexta-feira de Julho. “ Há dez anos que estou aqui”, diz o sexagenário. Natural de Marracuene – onde nasceu a 10 de Agosto do longínquo 1950 – o ancião da foto ao lado nunca, nesses mais de dez décadas da sua vida, tinha imaginado que hoje seria um guarda-nocturno.

Tudo porque, aos 40 anos, tornou-se mão-de-obra excedentária do Gabinete de Abastecimento da Cidade de Maputo. Resulta do: foi juntar-se a milhares dos que (sobre)vivem no olho da rua. Mas Armando André não é, certamente, o único guarda-nocturno. Entre milhares como ele há o quinquagenário Afonso Salvador que também na passada sexta-feira de denso frio paralisou o tempo – e o bairro da Sommerschield – para falar da ingratidão da profissão que abraçou há 20 anos. A esquina entre as avenidas Mão Tse Tung e General Pereira de Eça é o seu posto de trabalho. Vamos resumir a biografia deste homem que nasceu em Namaacha há 50 anos: “ (…) tornei-me guarda após ter sido despedido das minas da África do Sul onde trabalhei 15 anos”.

Quem também à noite escuta a profundidade e as entranhas do silêncio é o jovem Gervásio Machava. Aos 35 anos ele é pai de três filhos. E quando o encontrámos no átrio da Escola Secundária “14 de Novembro” – na Polana- Cimento – ele dormia sob o sol tórrido do meio-dia. Estava sentado numa cadeira de plástico que pendia ora para a esquerda ora para a direita, consoante a posição que ia dando aos seus cerca de 60 quilos.

No artigo vigésimo quarto lê-se: “Toda a pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas”. “ Estou a fazer 24 horas”, foi o que Machava conseguiu soltar da sua boca seca. Nem sequer estava disposto a discutir o artigo que está plasmado no número 3 do retromencionado vigésimo terceiro da Declaração Universal que diz que “quem trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de protecção social”. “Meu irmão devia estar na minha pele…estou a sofrer…falar ao seu jornal não altera a minha triste vida”, diz o jovem que só por algum desígnio insondável da natureza não deixou cair lágrimas dos seus olhos avermelhados devido a uma noite passada ao relento.

Desprezo, pão seco, … e pauladas!

Na verdade, o que há de comum nestes chefes de enormes famílias não são apenas as formas como se tornaram guardas-nocturnos. É o facto de todos estarem unidos contra o seu maior infortúnio: baixo salário. “ Eu ganho apenas 1.200 Meticais”, queixa-se Armando André. Isso nem de longe seria problema se ao menos no país houvesse um sindicato – forte como acontece noutras latitudes – para fazer cumprir o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “ Toda a pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para a protecção dos seus interesses”.

Sem que tal se verifique, todos os vigilantes nocturnos andam irritados com o baixo salário. Mas o caso de Gervásio Machava deve ser mais grave a ponto de nem sequer falar do assunto. Mas Afonso Salvador, de que falámos anteriormente, deve ser um daqueles guardas-nocturnos sortudo: ganha 2.300 Meticais! Desengane-se, porém, quem pensa que tal valor o satisfaz pois as despesas superam o ordenado mensal. Para fazer frente a esse infortúnio, muitos vigilantes optaram por abrir bancas de revenda de cigarros e recargas de telefonia móvel nos postos de trabalho.

Mas Afonso Salvador, morador do bairro da “Liberdade”, diz que “ tive de abrir uma machamba em Chonisso, em Boane”. É dessa horta quetra a maior parte do que consome com os filhos e netos.Como não há nenhum mal que vem só, eis que, à calada da noite, os guardas-nocturnos têm de enfrentar outros inimigos: os matulões sem-abrigo, mais fortes e “donos” da cidade que os procuram para lhes arrancar o pão seco, quando há. Fosse isso só, “mas os ´moluenes’ vão ao extremo: (…) com ou sem pão, eles agridem-nos”.

Porém, afora esses infortúnios todos, muitos guardas são homens que admiram as multidões que à noite cruzam os passeios junto dos edifícios onde trabalham. Ou melhor: pernoitam. Descrevem as suas façanhas e gostam da cidade de Maputo – a (sua) cidade dos guardas!

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