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“Há um grande medo de financiar as actividades que colocam o povo a pensar”

Alvim Cossa, coordenador-geral do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO) – uma agremiação sociocultural que há mais de 10 anos estimula os moçambicanos com vista ao exercício da cidadania e democracia participativa – concedeu uma entrevista exclusiva ao @Verdade, na qual considera que, em Moçambique, “há um grande medo de financiar as actividades que colocam o povo a pensar”.

Na sua opinião, é por essa razão que todo o apoio material para a efectivação das actividades daquela organização provém do exterior. A má notícia é que, apesar do reconhecido mérito que há nas acções da referida colectividade – sobretudo no que se refere à ampliação do espaço do debate democrático – determinados círculos sob a direcção do Governo não param de ameaçar o conjunto…

@Verdade: Como é que surge o Grupo de Teatro do Oprimido em Moçambique?

Alvim Cossa (AC): O Grupo do Teatro do Oprimido (GTO) tem origem no Colectivo Gota de Lume – um grupo cultural criado em 1993. A partir daquele ano começámos a fazer as nossas actividades de tal sorte que participámos no Festival do Teatro Amador da Cidade de Maputo, em que ficámos na segunda posição. Em 1996/7 eu, Alvim Cossa, na altura coordenador da colectividade, comecei a trabalhar na Casa da Cultura do Alto-Maé.

Em 1999, tive acesso a um catálogo de bolsas da UNESCO para artistas dos países do terceiro mundo. Centenas de pessoas, como eu, concorreram, mas tive a sorte de ter sido o seleccionado. No ano seguinte, 2000, parti para o Rio do Janeiro onde fiz um estágio na Sede do Teatro do Oprimido.

Em finais de Junho/ Julho de 2001, época em que terminou o estágio, regressei a Maputo, onde reuni alguns actores e começámos as actividades do Teatro do Oprimido. De lá para cá, muitas peripécias ocorreram. O grupo ganhou o reconhecimento social de modo que estabelecemos parcerias de trabalho com várias instituições, com destaque para o UNICEF, o FNUAP, a Cooperação Suíça, a DSF, entre outras, com as quais continuamos a trabalhar.

O que aconteceu é que o grupo se fortaleceu. Passámos a realizar actividades fora da capital do país, Maputo, e realizámos a primeira oficina regional da zona sul, na província de Inhambane, em que todos os grupos do Teatro do Oprimido existentes na época participaram. Mais adiante expandimos a iniciativa para o centro e o norte de Moçambique.

@Verdade: Aqui, localmente, nas instalações do GTO-Maputo, como é que o grupo funciona?

AC: Nós somos uma direcção colegial. Nos escritórios de Maputo trabalhamos com cinco pessoas, mas no passado – altura em que tínhamos muitas actividades no país – já operámos com 13 pessoas. Estamos sempre a debater as actividades que irão acontecer.

Ainda que os nossos estatutos definam que o GTO possui um director-geral, preferimos utilizar o termos coordenador para que todos possamos coordenar as actividades entre nós: olhamos para a forma como o trabalho deve ser feito e cada um responde por um determinado sector. Há pessoas que respondem pelas províncias da zona norte, outras pela região do centro, e outras ainda pelo sul. Temos ainda uma direcção administrativa.

@Verdade: Quais é que são os principais objectivos do grupo?

AC: O grande objectivo do nosso grupo é contribuir para a criação de uma sociedade activa e interventiva. Queremos ter pessoas capazes de olhar para a realidade e intervir. A situação que não suportamos é o receio que as populações têm de intervir. Abespinha-nos o défice de intervenção que há.

Os constrangimentos são de natureza política

@Verdade: O grupo existe há 12 anos. Quais é que foram os principais constrangimentos que experimentaram no início?

AC: Penso que o facto de estarmos a introduzir uma disciplina cultural nova, no país, não nos criou nenhum constrangimento. A receptividade ao Teatro do Oprimido em Moçambique foi espantosa para todos, mesmo para os grupos que faziam o teatro convencional na época.

O grande constrangimento que sempre tivemos foi de natureza política, porque o Grupo de Teatro de Oprimido não é uma colectividade de entretenimento. É um conjunto de artistas que instigam as pessoas à reflexão. Estimulam os cidadãos a pensar e a questionar sobre tudo. Foi isso que nos causou problemas de natureza política.

Nos dias actuais continuamos a debater-nos com tais constrangimentos, porque ainda não há muita percepção da importância dos grupos culturais que estimulam as pessoas a reflectir, a exorcizar os seus demónios, a partilhar as suas ideias e iniciativas. Ora, o nosso trabalho serve para isso – pôr as pessoas a falar – o que não está a ser muito bem recebido em alguns círculos.

A outra insatisfação a ter em conta está relacionada com a falta de espaços para a realização do trabalho artístico. Nós estamos a operar com grupos culturais que se encontram em pontos recônditos do país. Refiro-me, por exemplo, a colectividades que se encontram em Ribáuè, em Nicoadala, em Nipepe, entre outras, que nunca ouviram falar de um teatro de carácter reflexivo como é o GTO.

@verdade: Quer citar exemplos objectivos que elucidem algumas incompreensões – por parte de alguns circuitos – em relação à importância do trabalho que fazem?

AC: O exemplo concreto mais recente foi o da realização de um espectáculo de teatro em Marracuene. A obra foi criada no âmbito de uma campanha feita pelo Ministério da Saúde para a humanização dos serviços de saúde, a fim de que se combatam os problemas que surgem do mau atendimento hospitalar.

A nossa peça coloca algumas questões que constituem o quotidiano da pessoa doente em relação ao pessoal da Saúde. Para nós está claro que um enfermeiro não pode atender 200 pessoas num só dia. Isso é humanamente impossível. Mas essa realidade gera outros problemas nos serviços sanitários.

Quando apresentámos a obra, a directora distrital de Saúde em Marracuene e o pessoal médico insurgiram-se fortemente contra o trabalho do grupo. Chamaram-nos nomes e, no fim de tudo, ameaçaram processar-nos perante a Justiça supostamente por instigar à violência e à desobediência. Mas, na verdade, o Teatro do Oprimido é um espaço de debate, de interacção e troca de experiências em que qualquer pessoa pode intervir e expor a sua opinião.

Facto estranho é que eles estiveram no local do concerto, tiveram todas as oportunidades (de contrapor, de argumentar em benefício próprio) que o nosso movimento lhes confere para o efeito e não o fizeram. Portanto, esse é um exemplo claro e breve de que não somos bem vistos.

Mas isso acontece amiúde em todo o país, em locais em que quando as pessoas começam a questionar, ou a levantar questões do fundo, o grupo é interpretado como se estivesse a provocar um ambiente de instabilidade política, o que não é a intenção do grupo nem do Teatro do Oprimido. Mas a grande preocupação é fazer com que as pessoas pensem. O ser humano deve reflectir.

Há uma tendência para desvalorizar sentimentos

@Verdade: Subentende-se aqui uma espécie de falta de preparação, por parte dos aludidos circuitos sociais, para o debate democrático que o grupo propõe…

AC: Certo! Infelizmente, nós ainda temos um grande défice de debate democrático no país. Eu não sei porque isso acontece. Não tenho conhecimentos antropológicos nem sociológicos para fazer uma avaliação a este nível. Mas a verdade é que temos uma grande lacuna de debate democrático na nossa sociedade, em todas as esferas.

Não discutimos nas relações entre marido e mulher, no seio familiar, entre a vizinhança, entre pais e filhos, colegas de trabalho. Portanto, essa falta de liberdade – para que as pessoas possam exprimir-se – estende-se até os pontos de governação e liderança, onde quando alguém é questionado se sente confrontado e desrespeitado.

Por isso, penso que a abertura de espaços para o debate democrático é um dos grandes ganhos que o Teatro do Oprimido está a trazer ao país. Nós estimulamos as pessoas a olhar para a realidade e – insurgirem-se contra ela se for necessário – não viverem passivamente. É necessário que as pessoas se preocupem em procurar saber porque é as suas vidas estão a trilhar determinados caminhos.

Porque é que não é do outro jeito? E procurarem encontrar outros procederes melhores. O Teatro do Oprimido é uma ferramenta que traz, no espaço social, propostas para as pessoas mudarem. Então, ainda não temos um aproveitamento dessas metodologias todas para o verdadeiro desenvolvimento nacional, incentivando o espírito de debate que é o que nos falta.

@Verdade: Considera que o medo para a mudança ainda é muito grande por parte dos moçambicanos?

AC: Eu penso que é grande. Por exemplo, num belo dia, eu estava a acompanhar um debate no Facebook no qual as pessoas comentavam sobre a visita do Primeiro- Ministro à AIM. Diz-se que, diante do governante, um dos trabalhadores levantou a mão e disse que havia problemas na instituição.

Mas o Primeiro-Ministro questionou se ele representava mais alguma pessoa, ou se estava unicamente a falar em nome individual. Foi nesse contexto que um dos comentadores disse que o que aquele trabalhador comentou era verdade, então, não precisava de estar a representar mais ninguém.

O facto é que se está diante de um problema que é verdadeiro. Deve-se assumir e corrigir a situação. Mas outros quatro trabalhadores da AIM expressaram uma opinião similar à do primeiro, para instantes depois Alberto Vaquina dizer que os trabalhadores insatisfeitos são apenas cinco.

Ora, esse exemplo é um grande sinal de que para que as coisas funcionem é preciso que haja uma grande avalanche de pessoas a reivindicar em relação ao mesmo assunto. Repare-se que com a greve dos médicos no país, houve um grande trabalho de determinados órgãos de comunicação social a fim de fazer o povo pensar que se tratava de um grupinho de pessoas.

Ou seja, há sempre uma tendência para desvalorizar sentimentos, procedimentos, incluindo o trabalho reflexivo que as pessoas fazem, minusculizando- as, ridicularizando-as, desvalorizando-as, e eu penso que essa distância é muito grande. Mas felizmente sinto também que há muita vontade de se percorrer o espaço para a reversão da realidade.

Não temos financiamento nacional

@Verdade: Partindo-se da realidade narrada, ainda que se esteja a fazer um trabalho artístico de louvar, a manifestação de comportamentos reactivos e contrários à vossa intenção – por parte de determinados grupos políticos – faz-nos pensar que isso pode ter uma repercussão negativa no que diz respeito ao acesso de apoios financeiros. Qual é a realidade neste campo?

AC: Sobre as instituições que financiam as actividades artístico-culturais em Moçambique, a relação é muito boa. A realidade que nos entristece é que não temos nenhum financiamento nacional. É isso que nos rouba um pouco a nossa autenticidade. Perdemos a liberdade criativa como artistas. Acabamos por cumprir agendas que são determinadas pelo financiador. Então, os financiadores devem dar-nos apoios para que possamos desenvolver as nossas iniciativas como as concebemos.

Ou seja, se uma organização nos dá um valor de mil meticais e diz que temos de fazer um trabalho sobre o meio ambiente, nós desenvolveremos essa actividade no ponto do país que ele nos indicar, quando temos problemas de saneamento do meio ao nosso redor.

Por exemplo, agora, com essas chuvas, fomos vítimas de uma situação que destruiu os nossos bens, mas estamos a trabalhar em volta de questões que têm a ver com a salubridade do meio noutros pontos do país. Não temos a liberdade de criar uma peça em que se debatem problemas locais com a nossa vizinhança. Esse é um dos grandes problemas que enfrentamos como artistas.

A falta de possibilidade de desenvolver actividades como nós queremos que sejam feitas, no local por nós definido, faz com que se roube aquilo que nos define como artistas e passemos a ser operários da arte.

@Verdade: Em outras palavras, pretende dizer que o financiamento para a produção artística no país – no contexto das vossas actividades – provém unicamente do estrangeiro?

AC: De facto, em Moçambique não há absolutamente nenhum financiamento para o sector artístico. Existe algum patrocínio para o sector do entretenimento, mas ainda há um grande medo de financiar actividades que coloquem o povo a pensar, a olhar par si mesmo e a buscar alternativas para sair dos seus pesares.

@Verdade: Na sua percepção, o que está por detrás desse grande medo?

AC: Eu acho que um povo que pensa é uma ameaça. Ninguém quer ver um povo que pense, que questione. Ninguém está interessado nisso. As pessoas têm medo disso.

@Verdade: Como é que se fará a reversão desta realidade, no contexto actual?

AC: Eu penso que isso depende da chamada vontade política. Isso é fundamental para o progresso de todos os sectores sociais. Por exemplo, nós temos em Moçambique uma rede de casas de cultura, agora estamos a ter outra de centros culturais nas universidades, temos também uma Companhia Nacional de Canto e Dança, temos internatos, centros de formação de professores, com amplos salões bem construídos e bonitos. O que é que custa, por exemplo, ao Governo criar um programa de circulação de espectáculos?

É possível levar um grupo de Nyau, por exemplo, hospedá-lo no Centro de Formação de Professores da Matola a fim de que possa realizar concertos no Centro Municipal da Matola ou em Maputo. Podia-se, na mesma senda, pegar um grupo de Xigubo de Maputo, abrigá-lo no Centro de Formação de Professores de Marrere, em Nampula, de modo que possa fazer actuações lá.

O que é que isso custa ao nosso Governo? Nós estamos a falar de um património cultural que não é conhecido. Infelizmente, o Festival Nacional de Cultura ainda não é a plataforma de divulgação do património cultural nacional, porque – ainda que seja popular –, por vários motivos, o evento não possui uma participação massiva da população. Mas nós podemos criar as condições para pôr os espectáculos em movimento no país.

Eu penso que as instituições públicas devem lutar para manter, divulgar e criar condições para o desenvolvimento do que é público como é o caso da nossa cultura. Qual é o grande constrangimento disso? Trata-se de uma questão de vontade política.

Temos muitos juristas e continuamos sem justiça

@Verdade: A existência da escola de teatro fomentou a produção de mais artistas desse sector. A verdade é que – apesar do surgimento da academia – o país continua sem infra-estruturas para desenvolver actividades culturais. Nesse contexto, qual é o futuro do teatro moçambicano?

AC: Não quero ser pessimista, mas anualmente temos milhares de cidadãos formados em ciências jurídicas e continuamos com o povo sem direito à justiça, sem advogados, sem juízes. Temos milhares de sociólogos e antropólogos formados e a sua escassez é enorme. Penso que é muito cedo para pensarmos que haverá uma mudança tão rápida no cenário artístico nacional, fundamentalmente porque ele é uma área órfã. A área da cultura sobrevive porque cada artista garimpa por si mesmo, por algo que o ajude a sobreviver.

Para mim, ainda falta um cruzamento intersectorial, porque o ISArC está a formar gestores culturais mas não sei se existe uma ligação clara dos mesmos aos criadores que estão a ser formados noutras universidades. Onde é que eles se irão entrosar? Se se reparar nas pessoas que se formaram no ISArC, constata-se que mais de metade é constituída por funcionários do Estado. Regressam para os seus sectores – sobretudo nas direcções provinciais – onde irão continuar a prestar serviços burocráticos costumeiros. Muitas pessoas estão a fazer uma formação superior que lhes permita procurar melhores empregos.

Agora que a Universidade Eduardo Mondlane graduou os estudantes de Teatro, se nós que fazemos teatro pararmos para analisar, dos estudantes graduados quantos estão a trabalhar na área? Constatamos que são três ou quatro. Os demais não são conhecidos. Provavelmente, a uma hora dessas, estão a trabalhar num banco ou numa ONG qualquer.

Para que haja impacto no trabalho que está a ser feito agora, a nível superior do sector artístico, precisamos de inserir os formados em artes nos Centros de Formação de Professores, de modo que os professores que são graduados nos Institutos Magistérios Primários estejam em condições de realizar uma formação artística nas escolas para ver se daqui a 20/30 anos teremos directores e PCA´s que tiveram uma cadeira de teatro, de música ou dança na escola para que saibam o valor da arte na formação de uma personalidade.

Nessa altura, se calhar, essas pessoas quando discutirem os orçamentos das suas empresas ou o Orçamento Geral do Estado poderão saber dizer que precisamos de potenciar as artes porque eu me formei como homem com esta e aquela cadeira. Então, para mim, ainda precisamos de potenciar a formação. Se as pessoas não tiverem nenhuma sensibilização artística ao longo da formação académica dos professores, como é que pretendemos que um professor leccione sem nenhuma bagagem artístico-cultural, como indivíduo?

O impacto (da nossa crise) é nacional

@Verdade: Quando o GTO-central entra em crise – como aconteceu agora com estas enxurradas – qual tem sido a dimensão do impacto?

AC: Alastra-se imediatamente para todo o território nacional. Infelizmente, o nosso meio artístico é informal. Nós trabalhamos com um pouco mais de 100 grupos de teatro que são informais. Nós é que os representamos jurídica e financeiramente. Os financiamentos dos projectos que eles realizam vêm através do GTO-Maputo.

Isso significa que se um grupo que está em actividade em algum distrito e o seu relatório mergulhou na água, em Maputo, não há como fazê-lo aprovar pelo doador e, imediatamente, o grupo entra em colapso em termos de projectos. As nossas crises, aqui, estendem-se em tempo real a todos os grupos no país.

@Verdade: Olhando para o impacto do incidente, de quanto dinheiro precisariam para repor o funcionamento normal do GTO?

AC: Há coisas que nenhum dinheiro iria repor como, por exemplo, os relatórios cuja elaboração custou anos de pesquisa e um trabalho oneroso. Perdemos relatórios de contas e de outras actividades, incluindo pesquisas e cursos ministrados aqui, por formadores estrangeiros que haviam sido filmados.

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