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Entrevista a um artista plástico que pinta com os pés

Bitonga Blues - Um taxista com AKP

 

– Imagino o drama de viveres sem as mãos…
– Drama porquê?
– Porque tudo é feito pelas mãos.
– Tudo também pode ser feito pelos pés.
– O amor também?
– Sim, o amor também.
– Sei que te amputaram as mãos depois de terem descoberto uma doença que evoluia em direcção ao consumo dos braços. Tinhas cinco
meses apenas, após a tua mãe te ter dado à luz. De que doença estavas
acometido?

– Pergunta aos médicos que me amputaram.
– Que cruel é a vida!
– A vida não é cruel, ela é bela. Cruel és tu, que vens com essas espátulas
de aço, para sangrar as minhas feridas.
– Tens aqui um quadro espectacular, cheio de luz e graça, alegre. Como
é que uma pessoa como tu, sofredora, consegue fazer coisas tão lindas?
– Nós também temos a capacidade de cantar, com canções lindas, todas
as nossas dores. Podemos ir, mesmo sem as mãos, ao encontro da
aurora. Sonhar e amar.
– Tens olhado muitas vezes para a extremidade dos teus braços sem as
mãos?
– Quando acordo nem me lembro das minhas mãos. Nunca as senti.
Não sei o que são as mãos. Só oiço falar delas de pessoas como tu. Pessoas
que fazem tudo para rasgar com as unhas o meu coração. Mas é aí
onde se confirma a vossa pequenez.
– É espantoso e arrepiante ver-te segurar os teus quadros com os braços
sem as mãos e pintá-los com os pés. Como é que consegues isso?
– Olha, nem Deus sabe como é que consigo tudo isto e, se Deus não
sabe, como é que eu vou saber?
– Revoltas-te contra Deus, por estares nesta situação?
– Tu havias de te revoltar, se estivesses na minha situação?
– Não sei, porque eu tenho as minhas mãos e elas funcionam em pleno.
Se calhar podia maldizer o Senhor, se calhar não. Não posso responder
a essa pergunta porque tenho as minhas mãos inteiras e agradeço isso
a Deus.
– És um desgraçado. Não sabes o que dizes. Não entendes os sinais.
Fazes perguntas imerecidas. Devias ser, junto aos ramos que não produzem,
cortado, queimado, deitado fora e esquecido.
– Dizem que foste rejeitado por uma rapariga a quem prometeste casamento,
porque não tens as mãos. É verdade?
– E se for verdade!?
– Como é que te sentes quando pensas nisso?
– Depois de me ter rejeitado nunca mais pensei nisso. Ela tem todo o direito
de me aceitar ou rejeitar. Todos nós temos o direito a escolha. Mas
também achas que é fácil aturar um fardo como eu? Qual é a mulher
que pode aceitar um mutilado, que precisará constantemente das mãos
para comer, beber, satisfazer necessidades biológicas e amar? Qual é
essa mulher? Qual?
– Desculpa, não te quis magoar.
– Quem me magoa não és tu, Alexandre.
– Quem é?
– São as mãos que não tenho.
– Mas tu acabas de me dizer que não pensas nas mãos quando acordas!
– Por vezes penso nelas, penso nelas, sim.
– Qual é o teu maior desejo neste momento?
– O meu maior desejo neste momento é ter as mãos para abraçar a
minha mulher, afagá-la os seios, passeá-las nas coxas até a parte mais
macia do seu corpo. Levar ao colo os meus filhos, tateá-los com os dedos.
Carregar os meus quadros. Brindar contigo, Alexandre, um acontecimento
qualquer, com um copo de champanhe na mão. Encher as
minhas mãos desta areia que piso todos os dias com os meus pés feitas
mãos. Fazer tudo com as mãos, meu querido. Esse é o meu maior desejo.
– Mas as mãos, jamais as terás, meu irmão!
– Evidentemente!

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