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Entre o dinheiro e o precipício

Entre o dinheiro e o precipício

Da noite para o dia, Mateus Panguane viu a sua modesta casa – fruto de mais de uma década de sacrifícios – ser destruída em pouco menos de 30 minutos, o que deixou a sua família e os seus bens ao relento. Em causa está o terreno que ocupa há 13 anos. Sem nenhuma documentação e desconhecendo o paradeiro da pessoa que lhe cedeu o espaço, o seu dilema é provar que aquele pedaço de terra lhe pertence.

Ao acordar na manhã da última quarta-feira, Mateus Luísa Panguane, de 39 anos de idade, não imaginava o que os astros lhe reservavam para aquela data. Até porque, conta, os seus dias têm sido normais. Ou seja, além das dificuldades financeiras por que passa e os sacrifícios que tem de fazer para garantir o sustento diário da família, a sua vida não é feita de grandes sobressaltos.

No dia 15 de Junho, Panguane levantou-se cedo da cama, pelas 4h00 da manhã – 30 minutos mais cedo do que o habitual. À semelhança de outros dias úteis da semana, preparou-se para mais uma jornada laboral. Pegou na sua bicicleta, despediu- se da sua esposa e pôs-se a pedalar para o seu posto de trabalho.

Há anos que esta tem sido a rotina habitual do técnico de limpeza de escritórios que mora com a mulher e dois filhos (menores de idade) numa pequena habitação com apenas dois compartimentos. Partilha também a divisão, de aproximadamente 3,5 por 8 metros, com a tia e uma cunhada há mais de cinco anos. A casa situa-se no bairro da Maxaquene “C”, no quarteirão 5 e ostenta o número 26.

Enquanto no local de trabalho tudo parecia normal, na sua casa acontecia o inesperado. Por volta do meio-dia, a família recebeu a visita – indesejada – de uma senhora (não foi possível apurar o nome) que reclama o terreno, acompanhada por um motorista, dois agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) e dois funcionários do tribunal do distrito urbano nº2 para executar a sentença de um caso que já perdura pelo menos há um ano. Há pouco mais de um mês, Mateus recusou-se a assinar a ordem de desocupação do espaço.

Naquele período do dia, a esposa de Mateus, Carlota Nhare, não estava em casa. Encontraram apenas a sua cunhada que, tendo tomado conhecimento da situação, tratou de chamar a irmã.

Após ter sido informada sobre a intenção de despejo, Carlota declinou-se a entregar as chaves, alegando tratar-se de um assunto que tem de ser resolvido com o seu marido, tendo de seguida trancado a porta da casa. Os executores da sentença disseram que desde o período da manhã estavam a tentar falar com o seu cônjuge e este simplesmente não atendia o telemóvel.

Depois de várias tentativas,quando o relógio marcava 13h00, conseguiu-se falar com o visado que explicou que não poderia abandonar o trabalho, mas estaria em casa por volta das 15h30.

Vendo que a esposa de Mateus se recusava a retirar os seus pertences do interior da casa, sob ordens dos homens do tribunal e protecção dos agentes da PRM, um grupo constituído por quatro pessoas – o motorista da senhora que quer ver o espaço desocupado e três jovens alcoolizados contratados na véspera – avançou com o arrombamento da mesma.

Empunhando uma catana e um machado curto, deitaram a porta abaixo e começaram a retirar os bens da família de Mateus colocando-os ao relento num terreno alheio. Mergulhada em pranto e carregando o filho mais novo nas costas, Carlota berrava para os homens. “Onde é que vamos morar?” questionava.

Perto das 15h00, Mateus chegava àquilo que restou da sua casa. Aparentemente calmo, encostou a bicicleta numa árvore e olhou para os bens de uma vida inteira amontoados no espaço alheio. Sem pronunciar uma palavra sequer, caminhou até ao interior da habitação.

A divisão estava vazia, com a excepção deum fogão, uma botija de gás, uma peneira e um capacete pendurado na parede. Ordenou os jovens que parassem o trabalho. Armados, os agentes da PRM aproximaram-se. Mas isso não foi o suficiente para inibi-lo. “Daqui eu só saio morto”, gritou, com os nervos em franja. E o irmão mais novo tentava acalmá-lo.

Levando os bens de volta para o interior da habitação já sem tecto e perante o olhar da sua família, Panguane disfarçava a dor de ver uma década de sacrifício a desmoronar, qual castelo de areia na praia. Mas os seus olhos revelavam tristeza. Afinal, é naquele lugar onde está uma vida inteira de sacrifício.

Uma história, duas versões

Devido a inundações no bairro de Minkadjuine, em 1997, Mateus Panguane abandonou a casa da sua mãe e foi procurar um espaço para morar. O visado conta que conheceu “nos copos” uma pessoa – que viria a ser seu amigo – que o informou de que a sua mãe dispunha de um lugar para o efeito.

Sem perder tempo, Mateus foi ter com a senhora de nome Delfi na Ndevo que lhe cedeu um espaço no quarteirão 5 do bairro da Maxaquene “C” mediante o pagamento de um valor monetário.

“Quando cheguei, viviam apenas neste terreno duas idosas. Havia aqui muito capim e, sozinho, limpei todo este espaço”, conta. O seu grande erro foi não ter exigido qualquer tipo de documentação. “Ela disse-me que não era preciso, pois não havia problema com o espaço”, afi rma.

A partir de 2002, a vida deixou de ser a mesma. À procura de terreno, a senhora que hoje reclama pelo espaço onde Panguane ergueu a casa bateu-lhe à porta perguntando se não estava interessado em vender a sua habitação.“Eu recusei, mas indiquei-lhe as casas das duas idosas que estavam a venda. E não sei qual foi o acordo que elas fizeram”, diz.

Mas Mateus não tardou a saber do que havia sido acordado. Tempos depois, recebeu um aviso para abandonar o espaço. Surpreso, recusou-se a deixar o espaço, afirmando que só sairia se arranjassem um outro espaço ou mediante uma indemnização. Diante da relutância, em 2005, a tal senhora levou o caso para o tribunal.

Sem documentos e, muito menos, advogado, Mateus perdeu a causa e, no ano passado, recebeu um prazo de 30 dias para desocupar o terreno. “Essa senhora comprou as chaves das duas casas e não este espaço. O meu azar é ser pobre e não ter condições financeiras para tratar os documentos”, afirma.

Mas há uma outra versão da história segundo a qual o espaço lhe foi cedido por um algum período pelo amigo, filho de Delfina Ndevo, uma vez que não tinha onde morar. Quando a casa vizinha foi vendida, Mateus foi informado da nova situação e entrou-se num acordo no qual ele deveria ficar ali enquanto procura um novo sítio para viver.

Mas o tempo foi passando e Mateus foi construindo, pouco a pouco, a sua casa, embora tenha sido avisado pelo novo proprietário do terreno, por diversas vezes, para não dar continuidade às obras. O que aconteceu no passado dia 15 viria a ser o cumprimento de uma sentença.“Se tivéssemos conversado, não teríamos chegado a este ponto”, afirma Mateus.

O chefe de quarteirão, Joaquim José Naftal, diz ter pouco conhecimento da controvérsia e mostrou-se bastante surpreendido, uma vez que não foi informado sobre a intenção e, muito menos, foi chamado para testemunhar o despejo. “Passei toda a manhã em casa, não fui avisado. Quando estava a tomar chá, ouvi os vizinhos a comentarem que havia uma família a ser despejada nesta área, e vim ver”, afirma.

Os homens que representam o Estado afi rmaram que, antes, passaram pelo círculo do bairro à procura do chefe de quarteirão, tendo-lhes sido dado o nome do antigo. “Fui ao círculo e ninguém me disse nada”, diz Joaquim Naftal.

Terra, um negócio lucrativo

Certamente que o leitor tem conhecimento de que em Moçambique a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida, ou por qualquer forma alienada, hipotecada ou penhorada. Mas isso é apenas teórico, pois a realidade sobrepõe-se ao preceituado no nº2 do artigo 109 da Constituição da República. Nos últimos anos, a terra passou a ser sinónimo de um negócio lucrativo.

Este é apenas um exemplo num oceano de casos semelhantes. No quarteirão 5, no bairro da Maxaquene “C”, o que há 13 anos parecia um espaço baldio, hoje é motivo de disputa, revelando um negócio de cerca de 300 mil dólares norte-americanos em jogo. De um lado está Mateus Panguane e do outro uma senhora não identificada.

Mateus tem a sua habitação construída num lugar estratégico, visto que impede qualquer tipo de obras no terreno que se encontra por detrás da sua casa – facto que valoriza aquele local. Entretanto, o tal espaço pertence a dois cidadãos de origem asiática que pretendem erguer um edifício e já demonstraram interesse em obter a área a qualquer preço.

Até ao fecho desta edição, Mateus Panguane e a sua família continuavam a viver naquele lugar, numa cabana improvisada, cujas paredes são de chapas velhas de zinco. “Eu não vou sair daqui. Se não me derem uma casa ou outro espaço para viver, eu prefiro morrer”, sublinha.

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