Quando, na última sexta-feira, a bola rematada pelo ganês Asamoah Gyan bateu com estrondo na trave da baliza uruguaia lembrei-me imediatamente de Ghiggia, o pequeno e rápido extremo direito da selecção celeste que numa escapadela pela direita, quando faltavam 11 minutos para o final da partida, rematou para o fundo das redes brasileiras, emudecendo as 200 mil almas presentes no Maracanã, dando ao Uruguai, esse pequeno país 40 vezes mais pequeno do que o Brasil, o seu segundo título mundial.
A “safadeza” – como dizem os brasileiros – foi tão grande que o episódio ficou conhecido por Maracanazo. E Ghiggia ainda hoje é um anátema para os brasileiros que quando pronunciam o seu nome batem na boca, como se do diabo se tratasse. Anos depois, Ghiggia chegou mesmo a dizer que só três pessoas haviam calado o Maracanã: o Papa, o Sinatra e ele.
E prova disso é que há quatro anos, quando o desmancha-prazeres uruguaio aterrou no aeroporto de Rio de Janeiro para colocar o pé na calçada da fama existente no mítico Maracanã, 56 anos depois da histórica vitória de 1950, foi imediatamente reconhecido por uma mulher-polícia que não devia ter sequer 30 anos. Admirado, Ghiggia perguntou-lhe como é que ela, sendo tão nova, sabia da história. A jovem respondeu-lhe de pronto:
“Todos nós ainda sentimos esse jogo como se tivesse sido hoje.” Na sexta-feira, faz hoje oito dias, a trave da baliza uruguaia foi o nosso Ghiggia e a África de 2010 fez as vezes do Brasil de 1950. Ghiggia silenciou um estádio com 200 mil espectadores e um país com 80 milhões de habitantes – população do Brasil naquela altura. A trave da baliza uruguaia, ao parar o pénalti de Gyan, silenciou um continente, 53 países e 900 milhões de habitantes.
Mas antes, no último lance do prolongamento, os deuses pareceram ter abençoado África, quando o juiz português Olegário Benquerença apontou para a marca da grande penalidade, punindo uma mão de um defesa uruguaio em cima da linha de golo.
Menos de um minuto volvido, os mesmos deuses que pareciam ter abençoado África, abandonaram-na à sua sorte, tendo a esperança do continente morrido na trave da baliza uruguaia. Em menos de um minuto, África passava do céu, ironicamente a cor das camisolas uruguaias, para o purgatório dos penaltis, descendo depois ao inferno quando o uruguaio “El Loco”, fazendo jus ao nome, bateu o derradeiro pénalti imitando o atrevimento do checoslovaco Panenka – bola picada descrevendo um arco – na final do Europeu de 1976 discutida a penaltis com a Alemanha, então Federal. Sessenta anos depois, o Uruguai, esse pequeno país de quatro milhões de habitantes, voltou a ser alvo de execração.
Mas desta vez de todo um continente.
*Espero que os leitores me perdoem o tema futebol neste espaço mas nunca como na passada sexta-feira o nosso continente esteve tão perto de atingir as meias-finais da segunda maior competição desportiva – depois dos Jogos Olímpicos – mundial. Daí entendi tratá-lo no espaço mais nobre de um jornal.