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Ecos de um Festival de Prata!

Ecos de um Festival de Prata!

Se o Primeiro Festival Internacional de Teatro que, em Novembro, infestou a Cidade de Maputo fosse uma cimeira internacional diríamos que os grandes princípios acordados foram a necessidade de o “País da Marrabenta” indemnizar o Grupo de Teatro Mutumbela Gogo (GTMG), assim como, a urgência de o mundo, sobretudo a Europa, aprender a escutar os africanos. No entanto, há muito mais envolvidos. Saiba a seguir…

Muito recentemente, a cidade de Maputo experimentou um movimento desusado de divulgação de artes cénicas, envolvendo colectividades teatrais moçambicanas e estrangeiras. Peças inéditas – “Sonhos Guerreiros, Portas, Pão com teatro, Culpado, Mentes e Sonhos” – só para citar algumas, colocaram-se em montra.

As obras, em si, tiveram o mérito de espevitar nos espectadores alguma reflexão sobre as múltiplas facetas de ser pessoa em sociedade. A luta pela vida, pela sobrevivência em terra alheia. As relações políticas, de dominação, sujeição e opressão, entre a África (com destaque para Moçambique) e a Europa. Foi um momento único de intercâmbio sócio- -cultural, artístico e, de partilha de saberes.

@Verdade ganhou interesse numa acérrima discussão que se instalou sob o mote “Mulher, Cultura, Desenvolvimento e Cooperação”. Afinal – por mais que pouco pareça – foi também ao abrigo destes que o GTMG, agora com 25 anos de velhice, conseguiu se manter-se.

Foi assim que o Mutumbela conseguiu (como explica o conceituado escriba moçambicano, Mia Couto – MC) realizar um percurso que tem a ver com o nós, os moçambicanos, “sermos modernos e produzir modernidade no país”. Mas, antes de mais vejamos como tudo – na perspectiva de MC – começou para que de cerca de 10 mil dias depois, Moçambique deva compensar o esforço empreendido pelo Mutumbela. Em razão de tudo, “este país tem uma grade dívida com o trabalho feito pelo GTMG”.

Moçambicanizar o teatro

Passam 25 anos desde que “eu e o Núcleo Duro – como se chamava o grupo de actores que inicialmente constituíam o Mutumbela Gogo – desencadeamos um debate sobre o que fazer para tornar o teatro feito em Moçambique (propriamente) moçambicano”, começa por dizer, MC, dando a impressão na época estar-se perante “um teatro em Moçambique, no entanto, não moçambicano”.

E mais, para MC o problema não somente era o facto de as obras serem escritas por dramaturgos estrangeiros. “Mas a própria linguagem, a atitude no palco, o português falado, a maneira como esse português não entrava dentro do coração e do corpo” – tudo isso não tinha nada a ver com o ser moçambicano.

Melhor, digamos que “nós não falávamos português. Éramos falados por aquele português. Era uma coisa muito solene do português padrão. Nós tínhamos muito medo de errar”. Como tal, a questão não era relacionada exclusivamente com a língua, mas de algo que se aproxima à alma, à identidade cultural nacional. Eis que “decidimos que o actor devia expressar-se a partir do coração”.

Ousamos assaltar novos universos

Dentro deste quadro, constatou-se a ausência de muitos factores (locais) determinantes, para se produzir teatro moçambicano. “Não tínhamos textos, tão pouco dramaturgos moçambicanos”. Onde encontrar os dramaturgos moçambicanos”, questionávamo- -nos. O facto é que não havia, como continua não havendo”.

Então, “assaltámos o universo da dramaturgia, como assaltámos o universo da língua, porque queríamos trabalhar. Fizemos de um modo que era mais nosso”, diz Couto revelando que,na época, o segredo foi deixar que a vida, a rua, o quotidiano das pessoas entrassem no interior do palco. O exemplo mais próximo foi o da produção da peça “os meninos de ninguém”, cujo texto surgiu ao longo do tempo.

“Recordo-me que eu, igual a todos os actores, fui à rua conversar com os meninos desamparados. Havia um lar que abrigava crianças em situações difíceis, sob custódia de freiras. Em certa ocasião, a freira mais velha chamou-me atenção sobre que estava a dar muita importância aos petizes. Assim, iam me mentir. Mas eu queria que elas me mentissem, pois sabia que a verdade não se dava facilmente”.

Ora, este episódio da vida do Mutumbela Gogo foi meritório para o conhecimento de MC. Afinal, “o Henning Mankell aconselhou-me a não procurar saber o que as crianças pensavam. Mas, o que elas sonhavam”. A partir daí, “ficou-me claro que todos nós temos uma nacionalidade. Mas que também vivemos em duas nações. A nação dos sonhos e a da realidade.”

Eis a dívida do país

Assim, Mia Couto dá vazão a um grande campo que o teatro, a arte, pode explorar. A língua dos sonhos.

De qualquer modo, o escritor não se deixou perder do foco da sua tese. Uma tese endividante. Sobretudo, porque nos primórdios de um teatro que rapidamente se tornou profissional, “estávamos a desenvolver um debate sobre a modernidade. A fronteira entre a escrita e a oralidade. Entre a tradição e a modernidade”.

Ou seja, “como sermos nós, deixando de sermos nós? É em relação a isso que este país tem uma grande dívida com o trabalho do Mutumbela”.

E não lhe faltam argumentos. Para si, “o Mutumbela não somente fez um trabalho de palco. Fez muito mais do que isso. Recordo-me quando José Saramago, o prémio nóbel português, esteve em Moçambique após assistir a uma peça teatral do Mutumbela, ficou extasiado a ponto de afirmar ter visto em Moçambique algo que nunca vira no mundo. “Esses actores cantam, falam, representam com o corpo”.

Na ocasião, “eu expliquei-lhe que não são apenas os actores. Mas que os moçambicanos vivem dessa maneira. Falam com o corpo, dançam quando dizem palavras. Para eles a dança não é só uma recriação. É uma linguagem. Os moçambicanos na sua maneira de estar no mundo não fazem nenhuma fronteira entre a palavra falada, escrita e aquilo que só deve ser dito pelo corpo”.

A lição

Partamos do caso da peça “O pão e o teatro” concebido por Lucrécia Paco, para não somente perceber a lição que nos é dada, mas acima de tudo, que caso o Mutumbela não tivesse uma atitude antagónica àquilo que dizemos ser, ou que determinadas pessoas dizem que somos, o grupo não tivesse evoluído.

Em ”Moçambique qualquer que seja o director, de qualquer que seja a instituição, faz uma representação tal para transparecer a sua importância”. Consequentemente, devido aos estatutos “não posso varrer no teatro, não posso rebaixar-me, fazendo um trabalho manual”.

Ou seja, “o director deve ter representações – que na verdade são uma série de estereótipos. Uma permanente representação do poder, o que o Mutumbela não teve. A Manuela passou a vida a varrer o chão do Teatro Avenida”.

Mia Couto, leva o seu pensamento ao extremo e, critica a um certo tipo de marasmo na sociedade. “O que é que faz um moçambicano quando quer alguma coisa e não consegue? Chora e pede ajuda, numa atitude (sempre) apelativa”.

Ou seja, o Ministério da Cultura deve criar-me condições para trabalhar. E quando isso não acontece ficámos estagnados. Contrariamente a isso, o Mutumbela nunca deixou de trabalhar porque não tinha condições. Labutou, na situação habitual, para conquistar melhores condições. Por isso, “a identidade não é apenas o que somos. Mas também o que deixamos de ser, para sermos o que precisamos”.

O mundo deve ouvir os africanos

Digamos que o segundo princípio determinado no seminário sobre a “Mulher, Cultura, Desenvolvimento e Cooperação” é a necessidade de o mundo, a Europa em particular, dar-se o tempo para “escutar os africanos”. Esta é a inspiração do conceituado encenador sueco Henning Mankell.

Nos dias que correm, Henning Mankell, qual homem de artes cénicas e da literatura, congratula-se pelo facto (de ao longo de muitos anos de cooperação com o GTMG) não ter “arrumado problemas”. O que, em outras palavras, significa que “o nosso intercâmbio foi um sucesso”.

O encenador traça um quadro não muito bonito sobre a relação de cooperação entre o “velho continente” e o africano. É que na sua visão, “bastas vezes, chegam em Maputo, indivíduos carregados de malas. Pensam que trazem soluções. Chegam cheios de muitas palavras, determinando tudo o que os nativos devem ou não fazer. E não colocam questões”.

Para Mankell o problema é que “os europeus são pessoas que falam muito e não dizem nada”, o que imediatamente o difere deles. Senão vejamos “desde que cheguei (se estiver a mentir que a Manuela e Lucrécia o digam) sempre estive pré-disposto a ouvir”.

E mais, “nunca cheguei com respostas acabadas para os problemas do Teatro moçambicano. Cheguei com questões e propostas”. Provavelmente seja esta partilha de saberes, em que Henning Mankell descobriu que os africanos são sábios. Como tal, “se eu fosse profeta mas infelizmente não sou iria sair pelo mundo inteiro e, pedir às pessoas para ouvir melhor os africanos”.

Para Mankell “se as pessoas começarem a escutar bem os africanos (e eles têm muito a dizer) aprenderiam muito.” sobretudo porque a sua experiência o manda assumir que “a nossa cooperação foi possível e, certamente, um sucesso, porque escutámo-nos uns aos outros. No nosso trabalho, não há solteiros. Há amor ao teatro e aos contos. O que eu penso que seja um dos segredos das artes cénicas. Mas, para mim, o maior segredo tem sido falar pouco e saber escutar os outros”.

Homenagear a Kalungano

O outro aspecto importante na dissertação de Mankell é a urgência de se homenagear um poeta, um revolucionário, um homem que sempre esteve próximo às actividades culturais em particular o Teatro Avenida, no país. Marcelino dos Santos.

“Lembro-me que quando cheguei, pela primeira vez em Maputo, em 1989, numa das (nossas) sessões de ensaio no Teatro Avenida, de repente entrou um homem. Ficou sentado. Não falou nada. Perguntei a Manuela sobre quem era aquele homem, ao que ela me respondeu que se tratava de Marcelino dos Santos.”

Terminado o ensaio, “ele teve reflexões inteligentes sobre o nosso trabalho e saiu. Mas um facto importante é que durante todos os anos da “vida” do Teatro Avenida, Marcelino dos Santos sempre esteve presente”.

Como tal, e porque nós sabemos que Marcelino dos Santos é poeta, revolucionário e um dos líderes da criação de Moçambique independente, “não acha que seja tempo, agora, de fazer uma peça sobre a sua vida e obra?”, questiona Mankell propondo esta façanha à directora do Teatro Avenida, Manuela Soeiro.

Falo a minha língua, que havia sido interdita, na terra deles

De uma ou de outra forma, se no seminário inspirado na temática da Mulher, Cultura, Desenvolvimento e Cooperação, tivesse sido excluída a figura feminina, provavelmente algum aspecto do festival não teria corrido perfeitamente.

Curiosamente, enquanto os homens teimam em desencadear acções, inclusive em fóruns políticos, em emancipar a mulher, desta vez é a figura feminista que exige o contrário. Ou seja, que se emancipe primeiro o homem, como condição de garantir a independência da mulher.

São desta linha de pensamento, pessoas como a encenadora alemã Edithi, a também encenadora e actriz moçambicana Lucrécia Paco (LP). No entanto, esta última que por sinal ainda não se esqueceu dos efeitos opressantes do sistema colonial português prefere falar da liberdade.

Durante o seminário, Lucrécia apresentou- se-nos poliglota. Como o fizera em cena. Explorou o xi-Ronga, o português, o inglês, o francês, inclusive o alemão. Fê-lo não somente para ser compreendida por todos, nem por mera vaidade feminista mas, acima de tudo, porque a “língua é poder”.

Aliás, “o facto de eu poder viajar pelo mundo, conhecer pessoas e tornar Moçambique conhecido deve-se, em grande parte, ao domínio da língua. Esta unifica as pessoas”.

Esta actriz com um saber teatral enciclopédico entende que a luta das mulheres pela emancipação não deve ser feita de forma isolada.

“Nós, as mulheres, devemos contar (sempre) com os homens. Por exemplo, com o Henning, despertei para a necessidade de utilizar o diário, não apenas em situações cénicas, mas também na vida. Porque há vezes que, na questão da violência doméstica, se exige à mulher que apresente provas. Ora, sem o registo dos factos ela não teria como provar. Limitar-se-ia a simular com o corpo, como acontece na peça, o que pode não ser suficiente”.

Irreverente como sempre LP louva o tipo de cooperação que o Teatro Avenida desenvolvera com os seus parceiros. É uma cooperação baseada na compreensão mútua.“Ninguém veio ditar-me as regras sob as quais devo trabalhar. Faço-o como o fazia. O importante, em teatro, é o gesto, a partilha de sentimentos. Portanto, os 25 anos de carreira, os laços de cooperação, representam isso”.

LP teve ainda tempo para falar dos estimuladores da sua paixão pelo teatro. Uma paixão vulcânica, que remove barreiras e, finalmente, soltou um desabafo.

“Esta paixão encontrei na mamã, diz referindo-se à Manuela Soeiro e, acrescenta: Há duas décadas “ela disse que ninguém me apoia; ninguém me dá patrocínio eu vou montar uma padaria”. E montou. Hoje, passam 25 anos e, estamos a celebrar. Estou a falar inglês, a encontrar o mundo, a pregar sobre Moçambique no mundo”.

E mais, “estou a falar a minha língua, que me havia sido, interdita na Europa, a terra deles”, finaliza.

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