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Pandza: Apetece-me um Xigovia

– Apetece-me um xigovia – disse-me, sem estar a falar comigo.

Tinha surgido da multidão que circulava apressada, uns subindo outros descendo a rua, como duas marias-café se fundindo, mil pernas para lá, mil pernas para cá.

Seus passos descompassavam do resto da gente. Era o mais lento, andando em quase salto. Parecia tropeçar no tempo, movido por um velho motor à dois tempos: perna, muletas. Perna, muletas. Perna, muletas…

O metal frio das muletas magoavam o chão, num ka, Ka, Ka, (…) desafi nado e arrastado. Atravessou a estrada calcando o asfalto irregular. Picotou o passeio até onde cimento e alcatrão desaguam em areal. A poeira cedeu quando cravou a muleta no chão como se ancorasse num mar seco.

Descansou a meia perna na muleta ancorada, e encostou a outra muleta na perna inteira, deixando os braços livres. Sentado numa perna, e de pé noutra, garimpou moedas nos bolsos e entregou-mas, pronunciando a marca do cigarro preferido, não sei se o que mais lhe violenta as entranhas ou o mais barato.

Estendi-lhe o braço com o maço aberto. Três cigarros espreitavam, avulsos. Com as mão trémulas tirou dois. Emprestei-lhe uma caixa de fósforos. Serviu-se, protegendo do vento o lume. Guardou o palito usado num canto do lábio. Deu o primeiro trago, fazendo aquela careta que os fumadores fazem, quando sentem o prazer da nicotina alcatroar-lhes os pulmões. Demorou com o fumo nas entranhas, e quando soltou, estava com o olhar distante.

Foi ali que, em tom de desabafo, me disse, sem estar a falar comigo: “Apetece-me um xigovia”. Segurava o cigarro com a ponta dos dedos, habituado aos cigarros sem filtro. Com as pestanas em persiana protegia-se da fumaça. Os fumos levedavam e pareciam ir misturar-se aos flocos de nimbostratos. As bermudas deixavam perceber, na perna inteira, cicatrizes violentas, características do estilhaçar de uma mina.

– Tu és militar? – perguntei.

– Não. Um militar é um cigarro avulso. A vida é um maço inteiro, selado – respondeu-me, tragando os fumos, sem olhar para mim. Entre dedos, o cigarro ia e vinha da boca.

– Apetece-me um xigovia – repetiu, de cigarro e palito na boca, e ficou a ver o sol crestar o tempo e as moscas esvoaçarem as poças de água.

Eu disse-lhe que na minha meninice, de fisga no pescoço, eu também soprava xigovia, conversando com o vento que me trazia recados dos meus ancestrais, e comunicando com o gado sedento a precipitar-se para o rio.

Sentado, à sombra frondosa duma árvore, embrulhava-o nos cinco dedos, com a mão em concha, a palma virada para cima, encostava meu queixo ao pulso, com destreza, como se dela fosse beber, soprava, aquele sopro quase beijo, nos buraquinhos da pequena cabaça.

O som assobiado entranhava na pele, no solo, na vegetação, o gado pausava de mugir, os pássaros se calavam para ouvir e o rio fazia remoínhos, amainando a fome dos seus jacarés. Quando a guerra chegou o xigovia perdeu encantamento. Agora, com a terra cicatrizada, também a mim me apetecia um xigovia.

– Estiveste na guerra? – perguntou-me.

– Não. Nunca. Sempre estive em paz.

– A paz é um cigarro sem fumo, com dois filtros – comentou.

– És desmobilizado? – perguntei.

O homem olhava com desconfi ança para o horizonte. Devia estar a olhar para o vento. O fumo que lhe chamuscava os pulmões, parecia misturar-se ao odor chamuscado do vento. Aquele vento parecia trazer-lhe lembranças da guerra. Demorou a responder. Quando soltou os fumos dos pulmões, deitou fora a beata. Acendeu outro cigarro e respondeu, com o palito na boca:

– A vida me recrutou, e o destino me desmobilizou – embarcando nas muletas para se retirar – a guerra é um cigarro sem filtro, o tabaco é pólvora. Não queima os pulmões, explode o corpo. Vês? A minha perna é uma beata.

Foi-se embora. O tempo pesava-lhe nos movimentos e os caminhos demoravam-lhe nos passos. As muletas, eram a extensão dos braços, e fingiam ser a segunda e terceira perna. No chão arenoso deixavam um rasto de furos, pareciam tiros, e o pé inteiro carimbava nas pegadas um mapa, que me lembrava o mapa cicatrizado do meu país.

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