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Depois de Adubada a Fecundidade a criança nasceu!

Depois de Adubada a Fecundidade a criança nasceu!

Mais do que um problema meramente ignorado, em Moçambique, a falta de filhos numa casa devido à infertilidade de um dos cônjuges ainda é vista como um problema unicamente feminino. Nascido numa sociedade tradicionalista e machista, na cidade da Beira, Dany Wambire publicou, no passado dia 30 de Outubro, a sua primeira obra literária intitulada “A Adubada Fecundidade e Outros Contos”. Composto por 12 dramas, o livro aborda, em alguns episódios, o dilema da esterilidade nas famílias moçambicanas.

Diria, se por acaso alguém me questionasse sobre o autor, que é uma experiência única abarcar na escrita de Dany Wambire. O seu jeito lírico e extrovertido (essa particularidade dos beirenses) de interpretar a realidade é o mais importante aspecto para desvendar-se a técnica oral que o artista emprega.

Em “A Adubada a Fecundidade”, que também é o titulo de um dos contos, compreende-se que Dany não escreveu a obra por pura vaidade, muito menos para divertir os leitores. Os factos retratados no livro parecem-me marcas indeléveis concebidas ao longo da sua vida no seio social.

Tal como se percebe no texto “A Calamidade”, o autor experimentou diversas situacções que, de uma ou de outra forma, fustiga(va)m os seus conterrâneos, como é o caso dos desastres que sempre assolam a sua urbe.

“Todos, na nossa cidade, sabiam: Fevereiro era um mês abortado, impedido de chegar ao seu falecimento. Vinte e oito eram os dias, que ocupavam os compartimentos deste mês, o segundo dos doze filhos do Ano”.

Por isso, “muitos meses zombavam de Fevereiro, por não ser resistente às intempéries da vida. Ele albergava fenómenos naturais, que se abatiam sobre a nossa cidadezita. Ingénuo, ele hospedava os ciclones e as cheias. Esse era o seu modo de vingar-se do seu pai, o Ano, por lhe dar insuficientes dias para morrer”.

Ora, na “A Calamidade” encontramos um homem poeta, metafórico, que, meio à dor do povo, descreve a situação com precisão de um indignado e, por ventura, conhecedor do assunto. Deste modo, o artista anseia ver o mundo, em particular a província de Manica, transformada e/ou melhorada.

No entanto, de acordo com o prefaciador do livro, Mia Couto, “percebe-se que Dany não está apenas à busca de um modo de dizer: ele tem já uma raiz que é sua, um traço estilístico que define a sua identidade.

Estes contos são um mergulho nesse outro mundo que não aceitamos ver mas que é nosso e que traduz a nossa diversidade de povo. Há nestes textos uma lógica marginal mas que quer ser parte da correnteza do rio e as personagens, aparentemente estranhas das suas histórias, apenas espelham a realidade plural do nosso quotidiano”.

Uma história marcante!

Após o lançamento da obra, conversamos com Dany para explicar-nos o conteúdo do livro e os respectivos temas. Mas, por mais incrível que pareça, o autor recusou-se a justificar as razões da escolha do título. Talvez seja, de facto, algo que não se defenda: “(…) tudo o que escrevo é consequência da invasão que a minha alma sofre. Quando esse ser – que não sabe ainda qual é – invade o meu ego, começo a registar”.

Na verdade, este problema “amnésico” é de todos os poetas. Sempre usam a mesma filosofia. “A Adubada Fecundidade” versa sobre a realidade dos moçambicanos. Dos férteis – homens e mulheres – que se encontram a viver maritalmente.

Os personagens principais – Cristoamo e Criminosa – estão casados há bastante tempo. Com cinco décadas de vida e sem nenhum descendente, nota-se que o homem caminha, a passos largos, para a morte. Por outro, Criminosa tem apenas vinte anos de idade e, se calhar, o seu azar foi de ter sido juntada à um velho com cabelo esbranquiçado e com, quase, duas décadas de diferença.

De qualquer forma, a desigualdade da idade entre os dois parecia não preocupar o casal até que vários anos passaram “sem que o ventre de Criminosa hospedasse um sanguíneo inquilino. E desconhecia-se a razão dessa desnaturalidade. Talvez o ventre de Criminosa estivesse roto, cheio de furos de escape. Talvez o sémen de Cristoamo fosse insípido, incapaz de deixar o ventre da mulher com óvulos na boca”.

Como de costume quando algo idêntico acontece nas várias famílias moçambicanas, Criminosa foi submetida à tratamentos para descobrir o, suposto, problema que lhe impossibilitava de conceber. Nessa passagem, Dany traz-nos a figura de uma mulher que, nesse Moçambique contemporâneo preservador de hábitos tradicionais e machistas, sofre humilhações e preconceitos no lar.

E metafórico, em reconhecimento dessa realidade, afirma: “parece mentira, mas neste mundo o homem nunca é inválido. Sempre foi e sempre será macho”. Por essa razão, “tradicionalmente, porém, havia uma explicação, sempre que os casais do distrito não tivessem filhos. A culpa do infortúnio recaía nas mulheres, enquanto que os homens se gabavam, garbosos, da masculinidade nunca débil”.

Volvido algum tempo, o problema é solucionado com a intervenção da mais temida e respeitada curandeira do distrito. Por essa razão, no segundo mês de tratamentos, Criminosa consegue finalmente engravidar, situação que deixou Cristoamo satisfeito.

Como sempre, no distrito, quando uma criança nasce numa família tem de ter algumas marcas paternais e, se calhar, ser sujeitada à vários examines. Santija, filha de Criminosa que nascera nove meses depois, não foi excepção.

As idosas da região obrigaram, de imediato, a criança a ter que chupar no peito da mãe. Mas estranhamente, Santija “esquivava-se dos mamilos da progenitora. Embora esfomeada e ávida de comer pela própria boca, a petiz dispensava o esbranquiçado líquido fervido no lume materno. E essa indiferença prolongada da miúda deixou as adultas mulheres com os nervos à flor da pele. Algo anómalo estava sucedendo. Pior ficou, quando entontecimentos e convulsões tomaram de assalto a cabecinha da pequena”.

O acontecido movimentou a família, de novo, de um lugar para o outro à busca de uma razão, que justificasse o repúdio da criança. Mas, a verdade é que a filha não é de Cristoamo: Criminosa de nome era uma poliandra e o esposo um estéril.

Minibiografia

Danito Gimo da Graça Avelino, ou simplesmente Dany Wambire, nasceu em 1989, na província de Manica. Licenciado em Ensino de História pela Universidade Pedagógica (UP), Dany é actualmente professor primário na Beira e dirige a Revista Literária Soletras – A sopradora de Letras.

Conta com numerosos textos publicados em alguns dos principais jornais do país entre 2011 e 2013. Em 2013 foi galardoado com o Prémio Magnum Opus, correspondente internacional da Academia de Alquimia do Brasil. Ainda em 2013 recebeu a Menção Honrosa no Prémio Internacional José Luís Peixoto, com a obra “A Adubada Fecundidade e Outros Contos” e a Menção Honrosa no X concurso Valdeck Almeida de Jesus (Brasil), com o poema “As vontades do poeta”.

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