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Deficientes moçambicanos querem inclusão nos projectos de desenvolvimento

A Associação dos Deficientes de Moçambique (ADEMO) é uma das mais antigas agremiações da sociedade civil moçambicanas que lida com os direitos das pessoas com deficiência no país. Com 24 anos de existência, o agrupamento clama por uma maior inclusão nos projectos de desenvolvimento. O sentimento da ADEMO está sintetizado no apelo de Abel Machavete, secretário executivo da associação, que afirma que no âmbito das acções que visam o desenvolvimento do país “não se esqueçam de nós.” Ele lamenta, no entanto, um facto que no seu entender revela a secundarização deste grupo social por partes dos que almejam liderar os destinos do país. É que, segundo diz, “nunca ouvimos, num manifesto, algum candidato a dirigir- -se a este grupo específico e dizer: ‘Eu vou fazer isto mais aquilo’”.

@Verdade – O que é concretamente a ADEMO e quando foi criada?

Abel Machavete (AM) – A ADEMO é uma Associação dos Deficientes Moçambicanos. Somos uma organização da sociedade civil criada a 18 de Novembro de 1989. Na altura, um dos grandes desafios que norteou a criação da ADEMO foi a necessidade de defender os direitos de pessoas com deficiência, independentemente de qual ela fosse, pois entendemos naquele época que, no âmbito dos direitos humanos, as pessoas com deficiência se encontravam em desvantagem comparativamente às outras. Foi por isso que surgimos como um movimento de advocacia.

@Verdade – De forma comparativa, como vê a situação do deficiente naquela época e actualmente?

(AM) – Infelizmente, não posso dizer que estamos numa situação positiva, estaria a ser optimista demais. Mas caminhamos para esse estágio. De 1989 até hoje passaram 24 anos e foram anos de muita batalha. Durante esse tempo, o número de pessoas com deficiência que beneficiavam de serviços públicos, os mais básicos, como a educação, o emprego e a saúde, com destaque para a reabilitação, comparando com os número actuais, quer ao nível das cidades, quer nas zonas rurais, podemos dizer que há alguma melhoria. Encontramos alguma sensibilidade nas instituições públicas para responder a algumas necessidades de pessoas com deficiência. No entanto, ainda temos muitos desafios.

@Verdade – Pode mencionar alguns ganhos verificados nesse período?

(AM) – Bem, não tenho as estatísticas, mas no caso concreto da educação, comparando o número de pessoas com deficiência que tinham acesso a instituições de ensino, naquela época, e as que têm agora, percebe- se claramente que algo de bom aconteceu. Entretanto, estamos cientes de que precisamos que se faça muito mais. É que, apesar dos avanços que se registaram, continuamos muito preocupados com a inércia em certas tipologias de deficiência.

É o caso de surdos-mudos, crianças com deficiência mental que ainda não encontram espaço dentro da nossa esfera de educação. Em termos numéricos há algum avanço. Mas continuamos a “dar de caras” com grandes desafios, principalmente no que respeita à deficiência auditiva e visual, se comparada com a física. Preocupa-nos, sobretudo, a não existência de professores que possam responder às exigências específicas deste grupo social.

Não temos, aqui em Moçambique, professores formados para dar aulas em língua de sinais. O Braille também não é do domínio dos professores. Para o caso da deficiência visual, os alunos ainda encontram alternativas dada a existência do Instituto Visual da Beira.

Assim, as crianças antes de entrarem para o ensino regular são preparadas para o uso desta tecnologia, que é a leitura e escrita em Braille. Mas esse é sol de pouca dura, porque quando já integradas nas escolas, os mesmos alunos não encontram professores capazes de interpretar essa escrita. E aí surge outro grande desafio. Como manter esses alunos na escola?

@Verdade – Como ultrapassar esta situação?

(AM) – Para esses casos, os alunos, por vezes, são obrigados a levar gravadores para a escola onde gravam as matérias e transcrevem-nas quando chegam a casa. Para o caso das avaliações, o professor é obrigado a dar teste oral. A situação é complicada. No sector de transportes, temos também gigantescos desafios. Veja que 80 porcento dos transportes, por exemplo na cidade de Maputo e Matola, são assegurados pelo sector privado. E esses meios de transporte não oferecem as mínimas condições para acolher as pessoas com deficiência.

A situação é tão precária que uma pessoa deficiente física que, portanto, usa carrinha de rodas para se locomover, quando pretende tomar um “chapa”, para além das péssimas condições em que é transportada, ainda tem que pagar pela carrinha que lhe permite deslocar-se. Os transportes públicos também não ajudam muito em termos de acesso. O Governo nunca se preocupou em arranjar viaturas adaptadas aos deficientes.

@Verdade – Como associação, quais são os pontos focais da vossa intervenção?

(AM) – Nós não temos pontos focais, mas temos o controlo da situação da deficiência em Moçambique. Nós somos uma organização nacional, temos delegação em todas as províncias, e em alguns distritos. Ainda não abrangemos todos os 128 distritos, mas pretendemos fazê-lo. Fomos a primeira organização que surgiu para responder às preocupações das pessoas com deficiência. Muitas associações que, hoje, respondem a tipologias específicas de deficiências surgem da ADEMO, ou seja, existiram primeiro como departamentos na ADEMO.

@Verdade – Como é que a ADEMO actua ou articula as suas actividades?

(AM) – Nós actuamos de várias formas, tudo no sentido de interceder a favor do deficiente. Temos uma escola na qual trabalhamos com crianças com deficiência auditiva, atraso mental e algumas múltiplas deficiências. Fizemos um levantamento de petizes deficientes ao nível da cidade de Maputo. Constatámos que algumas crianças tinham ligeiras deficiências que até podiam ser sanadas com acesso à fisioterapia.

Algumas sofriam de doenças que acabariam por se tornar deficiências quando não tratadas mas, por outro lado, encontramos crianças que, mesmo em idade escolar, não estavam matriculadas. Portanto, sentimos a necessidade de encontrar formas de enquadrá-las num sistema de educação. Nessa altura, só tínhamos três escolas especiais no país. E então decidimos abrir esta, a Escola Comunitária da ADEMO.

Os alunos com deficiência que estão na Escola Secundária Josina Machel, hoje, partiram da nossa instituição. Essa foi uma forma de mostrar ao Governo que, sim, é possível. Para além deste, temos vários projectos de geração de renda, principalmente para as mulheres. Notámos que existem muitas mulheres chefes de famílias que não têm uma fonte de renda.

@Verdade – Qual é a capacidade de absorção da vossa escola?

(AM) – Estamos a funcionar com cerca de trezentos alunos e a partir de 2007 conseguimos que fosse a MINED a pagar aos professores, que pertencem ao Sistema Nacional de Educação.

@Verdade – Actualmente, como é que a sociedade moçambicana lida com a deficiência?

(AM) – Bem, infelizmente, devo dizer que ainda persiste o preconceito no seio da nossa sociedade. As pessoas com deficiências ainda são estigmatizadas. Nós reconhecemos, no entanto, que essa é uma questão de mudança de mentalidade e que isso leva tempo. Ainda é possível haver situações em que numa família, quando alguém é deficiente, a tendência é esconder-lhe.

E isso não acontece apenas nas zonas rurais, como muitas pessoas imaginam, mas também nas cidades onde o nível de informação e o seu acesso supõe-se que seja elevado. Portanto, o cenário é o mesmo. Ainda existe muito preconceito em relação à deficiência, os tabus são enormes.

@Verdade – Mas a que se deve esse facto, tendo em conta que, por exemplo, nas cidades as pessoas têm acesso à informação?

(AM) – Insisto na questão da mudança de mentalidade que é um aspecto que não ocorre do dia para a noite. Infelizmente, as pessoas ainda têm aquele pensamento de que quando há alguém deficiente no seio da família ele é resultado de alguma maldição, ou é um tipo de castigo. Pensam que a pessoa com deficiência traz vergonha, relacionam isso com a maldição.

Entretanto, nós, como ADEMO, continuamos a travar a nossa luta no sentido de mostrar que o raciocínio correcto não é esse. Para além de factores de natureza biológica, a deficiência resulta da dinâmica da vida que em alguns casos até pode ser evitada.

@Verdade – O Sistema Nacional de Ensino tem capacidade para absorver todos os petizes?

(AM) – A capacidade de absorção do Ministério de Educação ainda é muito reduzido. Sentimos, porém, que há um esforço por parte do Governo para resolver o problema de acesso ao ensino, desde que foi lançado o projecto piloto, educação inclusiva, que preconiza que as crianças com e sem deficiência devem partilhar o mesmo espaço e, na melhor das hipóteses, as mesmas turmas. O grande problema é a falta de professores com qualificação para leccionar.

@Verdade – Como é que um país que anualmente forma professores não possui mecanismos para englobar essas qualificações?

(AM) – Nesse aspecto, quanto a nós, o que na verdade falta é a sensibilidade por parte dos decisores. Somos vítimas da vontade política de quem tem por obrigação tomar a decisão de fazer as coisas acontecerem. A tecnologia existe, é só uma questão de importar. Veja que os poucos professores que hoje leccionam em língua de sinais ou em Braille foram formados em Portugal e nós temos uma forte ligação com esse país. Temos cooperação, no que diz respeito ao Braille, com o Brasil que ao nível do mundo é um exemplo na questão de inclusão. Aqui mesmo em África temos exemplos da África do Sul, do Uganda. Então o que nos falta é vontade política para que as coisas possam acontecer.

@Verdade – E como é a ADEMO lida com essa falta de vontade política?

(AM) – Nós entendemos que a nossa função como associação da sociedade civil é trazer as coisas e mostrar que elas são possíveis. Nós colocamos essas questões quando estamos na mesa perante os decisores. Nós temos trabalhado com o Governo e em particular com o Ministério da Educação no sentido de mostrar que existe muita tecnologia que pode ser explorada, procuramos sensibilizar o Ministério nesse sentido.

@Verdade – No sector do emprego temos a Estratégia da Pessoa com Deficiência na Função Pública desenhada pelo Governo. O que tem a dizer sobre a iniciativa?

(AM) – Foi um avanço, mas falta a sua materialização efectiva. Ela não está a ser cumprida. Se formos a olhar, mais uma vez, para o caso da educação, encontraremos numa escola algum professor com alguma deficiência, mas isso só não basta. O que nós estamos a dizer é que esta estratégia deve ser mais inclusiva. Queremos ver em todos os sectores pessoas com deficiência, e a trabalhar, claro, respeitando-se as capacidade individuais que essas pessoas apresentam.

Não estamos a exigir que a estratégia obrigue a que se dê emprego a pessoas sem qualificações para um determinado sector. Temos muitas pessoas com deficiência que são excluídas. É isso que não queremos que aconteça, que a avaliação seja em função de a pessoa ser ou não deficiente.

@Verdade – Mas são a favor da estratégia?

(AM) – Numa fase inicial sim. Nunca tivemos algo semelhante. A estratégia é um ponto de partida. Só precisa de ser melhorada.

@Verdade – Em que aspectos?

(AM) – O próprio Ministério de Trabalho ainda não conseguiu estabelecer metas para o sector de trabalho. Nós entendemos que o sector privado deve ser coagido por lei a aceitar dentro do seu quadro pessoas com deficiência. É preciso rever as percentagens estabelecidas para garantir a empregabilidade da pessoa com deficiência.

Fala-se de um mínimo de dois porcento e máximo de cinco, dependendo do número de funcionários de cada instituição. Não temos dados estatísticos fiáveis de pessoas com deficiência em Moçambique, mas olhando para aquilo que são os número globais e as causas de deficiência, como guerras, acidentes e outros, entendemos que são muitos os deficientes em Moçambique.

A Organização Mundial da Saúde estima que num país em via de desenvolvimento, como é o caso de Moçambique, a média de deficientes ronda entre os 10 e 15 porcento da população. Entretanto, nós falamos internamente de menos de cinco porcento, logo, há alguma disparidade, que é visível a qualquer um.

@Verdade – A questão da deficiência é complexa. A que níveis prevalece a dupla discriminação?

(AM) – Ela prevalece e para mim nem seria apenas dupla, mas sim tripla. Olhando dentro da família quando temos meninas e meninos com deficiência, se há alguma oportunidade, os primeiros a beneficiar são os rapazes. E só depois é que é a rapariga. Ou seja, esta situação começa dentro da família.

E saindo da círculo familiar, encontramos um cenário em que as mulheres estão em desvantagem em relação aos homens mesmo que tenham o mesmo tipo de deficiência. Mas tudo isso parte da educação que recebemos. As pessoas são ensinadas a pensar que o homem tem mais capacidade do que a mulher e tudo o que vem a seguir a isso é a replica desse falsa premissa.

@Verdade – O exercício da cidadania requer um nível elevado de acessibilidade nas suas mais diversas formas. Como é que olham para a participação da pessoa com deficiência nos processos eleitorais?

(AM) – Nós participamos como qualquer outra pessoa. O que já fizemos com algum sucesso há anos foi que as pessoas com deficiência não fiquem nas filas à espera de votar. Mas não exigimos nenhum tratamento especial. O que pedimos é que quando se monta a cabina de voto se tenha em conta os deficientes que andam em cadeiras de rodas, pois estes, dependendo da altura, podem não conseguir usá-la devidamente.

E, por vezes, pedimos que se desloque a urna para onde a pessoa possa conseguir depositar o seu boletim. Em alguns casos encontramos alguma resistência. Mas na maior parte dos casos as pessoas têm tido essa sensibilidade. Talvez seja porque há aquela tendência de que precisamos de maior número de pessoas a votar.

O que é mau é que nesses processos nunca vimos num manifesto, por exemplo, algum candidato que se dirija a esse grupo especifico a dizer: “Eu vou fazer isto”. Nunca vimos isso. Sentimos que há uma necessidade de haver algum manifesto político que aponte para a existência de grupos específicos na sociedade e que diga de forma clara o que se compromete a fazer para este grupo. E cumprir.

@Verdade – Tem havido alguma pressão relativamente a esse aspecto?

(AM) – Estamos a preparar-nos. Temos alguns planos que gostaríamos de ver implementados. Estamos a notar que há um grande desenvolvimento nas cidades de Maputo e Matola. E para nós este desenvolvimento só fará sentido se abarcar todas as pessoas. Ninguém se deve sentir excluído. Por exemplo, o município de Maputo divulgou o seu plano de desenvolvimento do sector de transporte para os próximos anos. Para nós, importem tudo que quiserem, mas não nos esqueçam. Isso é o que queremos, inclusão.

@Verdade – Em algum momento pensaram em criar o vosso próprio manifesto?

(AM) – Temos um plano que vamos partilhar com os candidatos às presidências de municípios. O documento contempla a saúde, os transportes, e, principalmente a educação, que para nós é o sector chave. Queremos mais crianças deficientes nas escolas. Na saúde queremos que se garanta o acesso à reabilitação.

@Verdade – Pretendem mais escolas especiais…

(AM) – Mais escolas especiais seria uma segregação, queremos que haja mais inclusão.

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