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Crianças com Horizonte?

Crianças com Horizonte?

Na semana da criança fomos ao Bairro do Maxaquene “A” falar com a “Associação Sócio-cultural Horizonte Azul”, ASCHA, que trabalha com crianças órfãs e vulneráveis desde 2003. No terreno constatámos que, não muito longe do centro da cidade, a forma como vivem 90 porcento das 190 crianças afectas à associação é a prova de que o Inferno existe e de como a dignidade humana pode ser anulada. Ainda assim, a força de vontade de ‘mana’ Dalila consegue, sem apoios significativos do Governo e das ONG’s que trabalham com crianças, mitigar o sofrimento destas ‘flores que nunca murcham’.

São 5h 30 da matina, a cidade ainda dorme, mas uma mulher acaba de entrar na sede do Grupo Dinamizador do bairro do Maxaquene “A”, Maputo. A mulher que vem carregada com cerca de 15 kg de livros pára diante de uma porta com a inscrição ‘Associação Sócio-cultural Horizonte Azul’. Chave na porta e é ela a primeira tripulante a assumir os comandos da pequena nau que já matriculou mais de 300 crianças e reintegrou no ensino, pelo menos, 50, desde que existe.

É sexta-feira. Dia de ‘reforço escolar’. Leia-se maratona de muito trabalho, rigor e paciência. Reforço escolar, na ASCHA, consiste na administração de aulas colectivas a crianças que a associação matriculou ou reintegrou no ensino.
Em Abril de 2005, as actividades da ASCHA resumiam-se à dança, à poesia e à terapia ocupacional. Aliás, “foi graças à terapia ocupacional que descobrimos que muitas crianças não estavam na escola ou estavam no ensino informal, alfabetização”, conta Dalila Macúacua, coordenadora e mentora do projecto. E acrescenta: “fomos às famílias e constatámos que, nalguns casos, as crianças não dispunham de registo de nascimento e, noutros, porque eram pobres. No mesmo ano fizemos o levantamento e identificámos 35 crianças que não existiam ‘legalmente’. Em 2006 fomos à Escola Primária do segundo grau Unidade 24 e depois à Direcção Distrital da Educação que permitiu que aquelas crianças fossem integradas no ensino, desde que a ASCHA desse explicação aos alunos que saíam do ensino informal para o formal”.

Desde então, a ASCHA usa a sala que se destina à alfabetização em três períodos: das 7 às 10 e das 14 às 17h. Duas vezes por semana, terças e quintas, nomeadamente. Nestas sessões, pouco mais de 60 crianças lotam a sala de 7 metros quadrados.

Este ano, com base no atestado de pobreza, a ASCHA já matriculou 50 crianças. De acordo com Dalila, o atestado é um documento que livra o seu portador de desembolsar os 35 meticais, valor que a escola cobra para a remuneração do pessoal que cuida da segurança dos estabelecimentos de ensino.
No entender de Dalila, o maior constrangimento com que a associação depara prende-se com o facto de “não poder oferecer, pelo menos, duas refeições por dia”. Já que “as crianças não conseguem concentra-se por causa da fome”. E, por isso, a associação clama dia e noite pela ajuda, particularmente do Governo, das ONG’s e da sociedade civil no geral.

Quando os petizes se encontram enfermos, dispõem de assistência médica e medicamentosa no Centro de Saúde dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique, através da ONG denominada “Meninos de Moçambique” que generosamente passa uma guia para esse efeito. Geralmente, as crianças padecem de doenças tais como malária, doenças de pele e febre.
Cada criança que busca abrigo na ASCHA dispõe de uma história única e de tirar o fôlego a qualquer ser humano que se preze. É o caso da história dos pequenos Laurinda, Olga e Alberto.

Histórias de cortar a respiração

Laurinda sentiu-se perdida quando a mãe morreu de SIDA. Tinha 11 anos e duas irmãs mais novas, Mariana e Rute, 10 e 7 anos, respectivamente. Sentiu-se perdida mas precisava de cuidar das irmãs mais novas. Laurinda e as irmãs vivem numa casa que mistura caniço e latas, ou seja, paredes de metal, acastanhadas pela ferrugem, janelas nem sequer existem, os espaços entre a disposição de caniços estão cobertos com pedaços de cartão e retalhos de roupa velha.

Laurinda é órfã de mãe, e o pai, esse, aparece esporadicamente quando lhe apetece para partilhar a casa com as filhas. E, muitas vezes, sem dinheiro para comprarem comida, mendigam o pão dos vizinhos, ou, apenas, ficam ao deus-dará.

Alberto, menino órfão, desde cedo viu-se obrigado pelo destino insurrecto a viver sem os seus pais. Divide a casa com a sua avó, tias e primos que, em nenhum momento, se dão conta da sua presença ou ausência. É na ASCHA onde esta “flor que nunca murcha” busca um ombro amigo com o fito exclusivo de esquecer os dissabores que a vida amargamente lhe proporciona no seu dia-a-dia. Alberto frequenta a 7ª classe e sonha um dia vir a dirigir este país que o viu nascer.

Não há palavras para descrever o que a nossa Reportagem viu no bairro do Maxaquene “A”: urina e fezes, excrementos de cães, humanos e gatos espalhados pelo quintal de uma casa. Aliás, chamar casa a paredes de caniço que nem sequer protegem o ser humano da brisa mais suave é um eufemismo. Pior quando nesse cubículo vivem nove pessoas: uma jovem de 29 anos, portadora de HIV, quatro filhos menores e mais três crianças que não sendo filhos da proprietária da residência, são seus irmãos. Aliás, Laura Timane, de 28 anos está no nono mês de gestação da sua quinta gravidez. Laura justifica com uma palavra a sua gravidez: “acontece”.

O interior da residência não se pode traduzir por palavras, mas é gerador de uma intensa e profunda emoção, marcante, gravada para sempre na memória e no espírito.
Olga, a frequentar a 6ª classe, filha mais velha de Laura, entrou para a associação em 2005, e era muito magra e doentia. “Frequentava casas de pasto e era avessa à escola, mas hoje posso dizer que o esforço valeu a pena, pois vai à escola sem problema, participa activamente nas actividades de apoio psicossocial e do reforço escolar e ainda aconselha as amigas a mudarem de comportamento”, refere, orgulhosa, Dalila.
Hoje Olga, olhando para o chão como quem não quer ser visto, diz sentir-se feliz pela actual escolha, pese embora em muitos dias da sua vida não tenha o que
comer.

O bairro do Maxaquene “A” é composto por 60 quarteirões, 4349 famílias, 11074 homens e 11659 mulheres de acordo com o senso de 2007. A ASCHA trabalha com 59 famílias, das quais 190 são crianças. Dessas famílias, desde 2003, 11 chefes de agregado morreram de SIDA e 13 já revelaram ser portadores do vírus que causa o SIDA, o HIV.

Naquele bairro, como em muitos do Grande Maputo, o acesso à água potável é o principal problema. Um garrafão de 20 litros custa um metical e está disponível através de fontanários e raras canalizações exploradas por indivíduos com sentido de oportunidade relativamente a um negócio rentável e sem fim à vista.

Ter água custa quase o mesmo (2 meticais) do que se paga para aceder à privacidade de quatro paredes com portas e um buraco no chão, a que chamam casa de banho. Por isso, o mais comum é optar-se pela económica solução do espaço público ou pelo recurso a um saco plástico, que depois é lançado para os telhados ou abandonado na rua. Os sistemas de esgotos e água canalizada são uma modernidade que não chega a estas bandas, embora se trate de um bairro que se localiza a menos de quatro quilómetros do centro da cidade de Maputo.

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