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Continua difícil a vida dos siameses

Continua difícil a vida dos siameses

Em 2001, José e Helena Omar, gémeos siameses acompanhados pela mãe, voltaram à terra natal, Moçambique, depois de separados pelo cirurgião especialista português, Gentil Martins, em Lisboa, corria o ano de 1999. Todavia, 13 anos depois, quase todo o apoio do Estado moçambicano cessou e a vida dos siameses prossegue, qual mar de dificuldades.

Aparentemente, no princípio tudo corria bem, dada a forma acolhedora com que foram recebidos pelo Estado moçambicano, que prontamente arrendou uma casa no bairro Alto-Maé, na capital do país, e garantiu um emprego para a mãe numa creche com vista a proporcionar uma vida tranquila aos rebentos, sem falar na assistência alimentar e noutras facilidades.

Passado algum tempo, as benesses cessaram e os siameses prosseguem a vida num mar de difi culdades. A sobrevivência praticamente artifi cial a que foram submetidos – sobretudo a menina – não é compatível com a falta de meios em que vivem, agravada com a reduzida atenção médica que recebem. “Os cirurgiões de Portugal avisaram que devíamos visitar o médico regularmente, mas tem sido impossível. Desde Novembro passado que não vemos um. No Hospital Central de Maputo, as enfermeiras sempre mandam voltar sem ver o doutor”, disse visivelmente aborrecida a mãe acompanhada pelos filhos na segunda-feira, quando saía da urologia do HCM para onde retornará esta sexta-feira.

É que, além do acompanhamento psicológico para mudar o comportamento de Helena, que na verdade é um rapaz, devem, periodicamente, visitar um urologista com o fi to de verifi car a saúde do aparelho urinário de ambos. Para além de terem nascidos ligados pela bacia e bexiga, os gémeos partilhavam o órgão reprodutor.

Depois da operação, o órgão ficou apenas com José Omar. Ainda assim, José, tal como a irmã Helena, em maior dose, passou a depender de tubos para urinar e defecar. Com 13 anos, os gémeos frequentam a quarta classe numa escola próxima de casa no bairro Hulene. Consta que ali tudo vai bem, mas em casa nem tanto.

Nos últimos tempos, a menina detesta ser tratada como mulher. “Acho que alguma coisa está falhar no tratamento hormonal e psicológico. O doutor Gentil disse que até a idade próxima à puberdade, o processo devia começar de forma exaustiva, mas não é o que vemos”, conta o pai.

Helena está cada vez mais homem que mulher. “Às vezes, parece que tem força superior à dos rapazes. Ela não gosta de ser trançada e diz que aquilo serve para maricas. Até pouco tempo queria que fosse chamada por Marcelo”, acrescentou a mãe.

Um nomadismo que só piora a situação

Depois de nove anos no apartamento que o Ministério da Defesa Nacional arrendou no Alto- Maé por cinco mil meticais, em Outubro do ano passado, a família foi obrigada a desocupar o imóvel, alegadamente porque o proprietário subiu a renda para doze mil meticais, quantia que o Estado recusou pagar, alegando falta de capacidades fi nanceiras.

Sem alternativas, a família mudou-se para Hulene, cerca de cinco quilómetros do centro da cidade de Maputo. Deste modo, José Omar e a irmã foram transferidos da escola primária do Alto-Maé para uma escola mais próxima de casa. Os gémeos carecem de força para percorrer longas distâncias e muito menos para disputar as grandes batalhas, que se travam para obter um lugar nos transportes públicos e privados de passageiros na capital do país.

Em Hulene, pagaram adiantados 15 mil meticais de renda, valor referente a três meses e tudo parecia correr bem, até ao princípio do segundo mês quando o proprietário apareceu dizendo que estava a vender o imóvel. “Como não tínhamos dinheiro, saímos para uma casa do tipo dois, onde fi cámos apenas sete dias, porque outra família que arrendava o mesmo espaço foi-se queixar ao proprietário de que os nossos fi lhos cheiravam a urina e gastávamos muita água a lavar fraldas”, conta Isabel para quem tudo seria evitado se o Estado tivesse comprado uma moradia própria, assim que voltaram de Lisboa.

De casa em casa, em Dezembro a família acabou por alugar um terceiro espaço no valor de cinco mil meticais, mas, de uns dias para cá, depois de saber que o imóvel é pago pelo Estado, o proprietário apareceu a exigir sete mil meticais mensalmente, valor superior ao total do salário do casal. A casa tem as mínimas condições de habitabilidade. É do tipo três, com cozinha e casa de banho internas, mas o valor é demasiado alto para uma família que tem como receita mensal cinco mil meticais. “Não sei onde iremos buscar tal dinheiro. Provavelmente seremos obrigados a sair outra vez”, desabafou a mãe.

Uma luta remota

O calvário pela sobrevivência começou logo que os bebés nasceram no Hospital Rural de Cuamba, na província nortenha do Niassa a dois mil quilómetros de Maputo, onde não havia meios para separá-los, pelo que foram transferidos para Nampula. Ainda assim, a escassez de meios não deixou de atormentar a vida dos gémeos, o que fez com que fossem transferidos para Maputo.

Já na capital do país, contaram com o apoio incondicional da pediatra Orlanda Albuquerque que, sensibilizada com as condições fi nanceiras precárias da família e com a complexidade do assunto, encetou diligências, nomeadamente apelando ao auxílio externo. Envidados os esforços, e depois das recusas da França e da Inglaterra, António Gentil Martins, cirurgião e pediatra português, motivado pela sua vasta experiência em operações do género, mostrouse imediatamente disponível a colaborar. Para Portugal os gémeos partiram acompanhados pela mãe.

Uma vez lá os médicos começaram por analisar como poderiam separá-los. Num relato intitulado “Os estudos de Gentil Martins”, lê-se: “A intervenção cirúrgica dos gémeos moçambicanos prolongou-se por catorze horas e meia, segundo o chefe da equipa de 12 cirurgiões responsáveis por este êxito, tudo decorreu dentro do previsto, até o tempo que a separação dos bebés demorou.”

Embora esta complicada cirurgia tenha corrido bem, Gentil Martins chamou a atenção para a importância dos primeiros oito dias, período em que poderiam surgir algumas complicações, nomeadamente infecções e/ou pontos rebentados. O médico revelou que a parte mais complicada do processo de separação dos dois gémeos siameses ligados pela zona abdominal e pélvica verificou-se ao nível da divisão do aparelho urinário. “A intervenção cirúrgica começou às 9 horas do dia 22 de Novembro. Helena, foi a primeira a deixar a sala de operações, às 22h e 30 minutos. Uma hora mais cedo que o irmão, José.”, pode ler-se no relatório médico.

A mãe Isabel, apesar de todo o sofrimento e ansiedade, recorda os tempos de Lisboa com alguma nostalgia. “Tínhamos muito boas condições de vida e uma assistência muito melhor. Eu vivia numa pensão com tudo pago, enquanto os meus fi lhos repousavam nas camas do hospital D. Estefânia sob bons cuidados médicos”.

E foi assim que o casal José Omar e Isabel Muatine, de Nampula e Niassa, respectivamente, deixaram a terra natal, em busca da solução para a anomalia dos fi lhos siameses, mas continuam a enfrentar outras dificuldades.

Uma questão pertinente aqui se coloca: haverá um final feliz, nesta história em que até a esperança já começa a dizer que não vale a pena?

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