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Conflito Homem/Animal – Terror leonino

Namorar de “sinagoga em sinagoga”

 

Em meados do ano passado, Sérgio Veiga, um dos mais conhecidos caçadores de Moçambique, foi contratado
por uma empresa de prospecção petrolífera para proteger os seus trabalhadores contra ataques de animais selvagens. Por essa altura, nas imediações de Palma, no extremo norte de Cabo Delgado, um casal de leões havia-se transformado em comedor de homens, aterrorizando as populações circunvizinhas. Eis o relato desses dias pela voz de um dos protagonistas.

Em meados de 2008, uma empresa de prospecção de petróleo, a actuar no “Norte” de Moçambique, na província de Cabo de Delgado, convidou-me, como especialista de fauna bravia, para fazer parte de uma equipa de caçadores que iriam aconselhar e proteger a vida dos seus trabalhadores contra ataques de animais selvagens.

Já tinha alguma informação sobre o conflito homem/animal naquelas províncias. Sabia também que os animais em causa eram, basicamente, elefantes, leões e leopardos. E que os dois últimos eram os mais temidos pela população. Aliás, todos os anos registam-se na província, entre Mocímboa da Praia e Palma, mais de vinte casos mortais causados por ataques de leões e outras tantas crianças resgatadas por leopardos.

Quando chegámos à zona em questão fomos informados pelas autoridades locais de que desde o princípio do ano os leões já tinham vitimado cerca de quinze pessoas.

No segundo e terceiro dias fizemos uma apresentação teórica, onde expusemos, através de pequenas demonstrações, como proceder em caso de encontro inesperado com animais selvagens. Nas semanas seguintes, a fim de tentar compreender melhor as causas dos ataques, optámos por visitar algumas vilas
fustigadas pelas incursões dos felinos. Dialogámos com as populações locais e, após preciosas informações colhidas no terreno, chegámos a algumas conclusões: acreditamos que nenhum animal ataca o homem sem apreensão ou mesmo medo. Seguindo essa linha de pensamento, entende-se com facilidade a razão pela qual os leões vitimam na maior parte dos casos mulheres. Em África, principalmente no mato, a mulher passa a maior parte do dia no campo, de enxada nas mãos, com o filho às costas. Igualmente, o carácter mais sedentário do seu quotidiano torna-a mais vulnerável aos ataques. Por oposição, o homem, pela sua postura mais agressiva, intimida mais facilmente o leão. O homem africano, caçador e andarilho, caminha quase sempre com uma catana na mão ou armado de arco e flecha, por conseguinte, muitas vezes é ele que surpreende o leão, tendo assim uma função de predador e a mulher de presa.

Geralmente, quando um leão se torna comedor de pessoas, é porque se encontra envelhecido, perdendo a agilidade para caçar. Nessa condição desvalida, aguçado pela fome e sem alternativa, vê-se tentado a atacar o ser humano. Após a análise das distâncias e dos tempos entre as incursões, chegámos à conclusão que o responsável pelos ataques era um casal de leões de meia-idade com uma regular actividade de caça.

Leões do Diabo e Leões de Deus
 

Em alguns casos, quando as florestas são muito densas, como acontece em algumas zonas do litoral norte de Moçambique, os leões adaptados a esse habitat, apesar de não serem considerados uma subespécie, possuem uma característica diferente da do leão da savana: os machos têm menos juba, normalmente são de menor porte e aparentemente mais agressivos. Os leões que percorrem estas áreas, andam geralmente aos pares e, ao contrário da maior parte dos casos, os machos participam activamente nas caçadas.

Mais tarde, percebemos que tudo gira num círculo vicioso, não só pela redução gradual do sustento do leão, mas quando os leões abatem uma presa, a população segue-lhes o rasto e roubalhes a carne, comprometendo, assim, a sua subsistência. Nessa condição, o animal, sem alternativa, vê-se tentado a atacar o ser humano. Quando isso acontece, não há retrocesso: após ter provado carne humana, o leão jamais voltará à sua condição natural. Viciado, nunca mais opta por outra, passando a considerar o homem uma presa fácil. Esse leão tem, por isso, que ser abatido, encerrando deste modo o círculo.

Nota-se um desequilíbrio na fauna bravia nestas áreas. Existe um número acentuado de predadores – grandes e pequenos – como leões, leopardos, hienas e uma grande variedade de gatos do mato, como o gato serval, a janeta, a civeta, o gato raiado de preto e branco, etc., mas, em contrapartida, a escassez de outros animais é notória: registámos apenas alguns pequenos grupos de búfalos, umas manadas de elandes e pala-palas e alguns facocheros e um ou outro pequeno antílope.

A Estrada Nacional que caminha paralela à costa vinda de Mocímboa da Praia, passa por Palma e termina quando alcança o Rio Rovuma, na fronteira com a Tanzânia. No comprimento da costa até à estrada é onde se regista uma maior densidade populacional e, por haver menos animais, os habitantes tornam-se
menos vigilantes, não protegendo devidamente as habitações contra as incursões dos felinos. É precisamente nessa condição vulnerável que acontece a maior parte dos acidentes, principalmente
com leões e leopardos. É inacreditável como nessas zonas, aparentemente despidas de vida selvagem, de um momento para o outro, como vindo do nada, aparece um leão para atacar uma pessoa. Na maior parte das vezes, os locais acreditam serem animais movidos pelo Diabo, relacionando estes ataques com
problemas familiares ou situações conflituosas entre amigos, acreditando que alguém se transformou em leão ou conseguiu comandar o seu espírito a fim de atacar o seu inimigo. As populações locais crêem que os leões de Deus não atacam pessoas, só os de feitiço.

Ataques em Catadupa
 

 

7 de Julho: Junto à vila de Quionga, às três da tarde, uma mulher foi atacada mortalmente por um casal de leões quando amanhava a terra. Acorremos ao local e testemunhámos o acto. Fizemos uma busca breve mas os leões, como fantasmas, tinham-se deixado engolir pela floresta.

17 de Julho: Na vila de Quirinde, dois leões tentam atacar sem sucesso uma mulher quando esta regressava da machamba. No dia seguinte fomos ao local e confirmámos o movimento nos rastos ainda frescos daquela madrugada. Os leões tinham estado a cerca de cem metros da vila e a menos de quinhentos da praia. Fizemos um reconhecimento na zona, os rastos perderam-se na densidade das matas.

22 de Julho: Junto à Estrada Nacional, a norte de Quionga, a cerca de cinco quilómetros acima de Palma, às seis horas da tarde, um casal de leões ataca e mata uma mulher de meia-idade, com uma criança às costas. A vítima havia-se afastado da residência não mais do que cinco metros. O marido ouviu apenas um grito de aflição e quando acudiu, apanhou somente um pedaço da capulana ensanguentada e a filha com sete meses a chorar no chão. Nas primeiras horas da manhã, assim que chegámos ao local, tivemos um breve encontro com os familiares da vítima e pusemo-nos no encalço do rasto. As marcas eram evidentes, a mulher estava morta. No capim tombado podia-se facilmente presumir que os leões arrastaram um corpo já sem vida.

Um homem e uma catana contra dois leões
 

Continuámos com a rotina do nosso trabalho, acompanhando os topógrafos nas longas caminhadas que faziam pelas florestas, quando traçavam as linhas sísmicas para a pesquisa de petróleo. Quase diariamente, nas nossas batidas, encontrávamos pegadas frescas de leão, o que não nos facilitava o trabalho. Porque assim que localizámos o primeiro ataque, tentámos definir a movimentação dos leões problemáticos e o cruzamento de outros rastos confundia-nos. Todavia, tudo indicava que se dirigiam para sul.

6 de Julho – Como calculámos, os mesmos leões moveram-se cerca de três quilómetros a sudoeste e fazem mais uma vítima: uma mulher. Como no caso anterior, assim que o sol se pôs, a mulher afastou-se de casa para fazer necessidades e a cinco ou seis metros, foi atacada por dois leões. Quando chegámos
ao local, nas primeiras horas do dia, encontrámos um grupo de homens armados com catanas e zagaias prontos para lhes seguirem o rasto. Tivemos dificuldades em falar com eles. Só tinham vingança na alma. Ouvimos, atentos, as palavras atrapalhadas do genro da vítima, mas era a ponta da catana que nos contava a história quando nos mostrava os sinais que estavam escritos na terra. Tudo parecia irreal: a leoa abocanhou a mulher pelo pescoço e matou-a instantaneamente. Depois arrastou o corpo morto e desapareceu na escuridão da noite. O genro, que estava sentado na varanda, quando a ouviu gritar, apercebeu-se do que estava a acontecer e, num movimento instintivo, eivado de ódio, pegou na catana e correu a acudir. Depois parou momentaneamente, e assim que os olhos se habituaram ao escuro, viu a leoa a fugir com o corpo morto da mulher. O macho parou e fez-lhe frente, mas ao ver a fêmea desaparecer pelo mato, seguiu-a e desaparecer ambos no escuro.

O homem, como um animal ferido, procurou o rasto na noite onde só o instinto o guiava. À procura do que só o Diabo conhecia, os olhos gaseados daquele homem varriam cada vulto que o rodeava, cada movimento, para depois fixar o olhar no rastejar felino de duas sombras. Percebeu que o corpo morto da mulher não estava com eles, provavelmente tinham-no largado algures pelo caminho quando fugiam. Com um movimento lento sem deixar de controlar a reacção dos leões procurou em redor e não tardou em descobrir a silhueta de um corpo morto preso nos espinhos de uma micaia tombada. Ergueu-o e, atento a cada passo que dava, tentou voltar com o cadáver da sogra para casa, mas parou quando se sentiu perseguido. Olhou para trás e rodou calmamente o corpo. Os olhos amarelos dos leões gelaram-lhe a alma. Com o corpo morto tombado no ombro enfrentou-os, segurando firmemente a catana com a mão direita. Da garganta fugiu-lhe um grito rouco que parecia agarrá-lo à vida: “Venham! Se querem a vossa carne têm que ser mais fortes do que eu. Venham buscá-la!” Disputaram a mesma presa, a catana na mão demarcava terreno, o rosnar dos leões amedrontavam, mas o homem, medindo cada passo, conseguiu entrar em casa. O espírito do homem foi mais forte. Os leões, inconformados, rondaram toda a noite a casa. Só quando a madrugada nasceu, a luz do dia devolveu-os ao mato.

Mulheres principais vítimas

28 de Julho, 9 horas da manhã. Num poço entre o nosso acampamento e a vila de Palma registou-se mais uma vítima mortal. Palma via nascer um dia aparentemente igual aos outros. Homens e mulheres, cada um para o seu lado, movimentavam-se nos mais diversos afazeres. Tudo parecia calmo como em outras manhãs. Mulheres com os bidões à cabeça, iam e vinham do poço. Mas naquela manhã, o Diabo parece ter escolhido os olhos de uma leoa para seguir com malícia os movimentos descuidados daquelas mulheres. Um silêncio súbito pareceu ter acordado olhares incrédulos que acompanhavam o andar rasteiro e ameaçador de uma leoa que se aproximava como um fantasma vindo do Inferno. As mulheres fugiram em desordem, pegaram nos filhos pelos braços e correram para onde o destino as quis levar. Uma delas deixou cair a lata que trazia à cabeça. O coração bateu forte no peito quando percebeu que a leoa tinha escolhido o seu bebé. Dos olhos saltaram-lhe lágrimas mas a coragem empurrou-a para junto da filha. A leoa, esfomeada, não perdoou e atacou a mulher, matando-a. Depois, com o corpo sem vida entre as patas, olhou à volta, a criança tinha ficado desamparada sentada no chão a chorar, mas a leoa não lhe tocou
porque estava mais empenhada em arrastar o cadáver para o mato. Depois, por detrás de cada árvore apareceu uma mulher. Aquela gente sabia que a união faz a força e que só assim podia vencer aquilo que lhes parecia já ser o seu destino. A leoa, ao sentir-se ameaçada, acabou por deixar a presa e fugiu.

Quando recebi a notícia, estava longe, no mato. Assim que voltei, ouvi com detalhe o que me contaram. Depois estudámos pelos rastos o movimento dos felinos. Só podiam ser os mesmos. O macho tinha estado ali muito perto escondido a ver a fêmea actuar.

29 de Julho, 7 da manhã. No mesmo local, os leões tentaram atacar outra mulher, mas o povo, alerta e vigilante, fez-lhes frente, conseguindo afugentá-los.

Agora, o obscurantismo parecia estar a invadir o meu bom senso. Encontrava-me baralhado. Seriam mesmo leões? Ou fantasmas, como acreditava a maior parte da população? Era a primeira vez que aqueles leões tinham voltado ao mesmo local! Mas baixar os braços era perder, era deixar morrer gente, era deixar crianças órfãs. Se tivéssemos um meio de atrair aqueles leões ao local do crime, tínhamos meio caminho andado. Mentiria se não dissesse que estava num dos momentos mais difíceis da minha carreira. Mas tinha de acreditar. Tinha a certeza de que a insistência havia de pôr a sorte do nosso lado.

12 de Agosto, 9 da manhã. O casal de leões fez mais uma vítima. Como tínhamos deixado o nosso contacto em algumas vilas na periferia de Palma, recebemos um telefonema de Mondlane, que fica quinze quilómetros a sul, informando-nos de mais um ataque de leões. A vítima era, uma vez mais, feminina. Não
havia tempo a perder. Tínhamos que ir ao local o mais rapidamente possível.

Como tínhamos um helicóptero à disposição da empresa, um dos nossos colegas responsáveis por questões ambientais sugeriu que o utilizássemos para tentar localizar os leões. Embora não estivéssemos convencidos do sucesso da operação, não perdíamos nada em tentar. Sobrevoávamos a zona durante mais de meia hora, mas o mato cerrado tornou as buscas infrutíferas.

14 de Agosto, 15 horas. Na mesma vila, os leões vitimam mais uma pessoa. Desta vez um homem de avançada idade. Fomos ao local nas primeiras horas da noite, mas a sorte ainda não estava do nosso lado.

17 de Agosto, 9 da manhã. Mais uma mulher vitimada no distrito de Mocímboa da Praia, na vila de Named, a mais de setenta quilómetros do primeiro ataque. Os leões continuavam a dirigir-se para sul.

22 de Agosto, 8 da manhã. Na vila de Magaia, um leão matou uma mulher que se dirigia ao hospital com uma criança no colo.

Enquanto colhíamos informações sobre o sucedido, verificávamos que dois jovens estavam a ser maltratados pela população local, tendo sido despejados para a caixa aberta da viatura da polícia. Pensámos que se tratava de um caso normal de furto ou qualquer outro problema relacionado com alguma irregularidade que não nos dizia respeito, e, embora lamentássemos a desumanidade com que eram tratados, achámos que não devíamos interferir.

A reunião com os líderes locais foi marcada para o princípio da semana seguinte. Depois, assim que obtivemos dados mais detalhados sobre o ataque dos leões, decidimos ganhar tempo e começámos a criar condições para partimos para o local.

Leão ferido torna-se perigoso

 

Na viagem para Magaia o meu pisteiro pôs-me ao corrente do que se estava a passar com aqueles dois jovens que tinham sido presos. Já tinha tido conhecimento de casos idênticos mas mesmo assim não deixei de ficar estupefacto: um deles havia tido, no dia anterior, uma discussão com a mãe, por isso foi acusado de se transformar em leão para matá-la; o outro, como era o seu amigo, só poderia ser o outro leão. Agora tínhamos mais um motivo adicional para perseguir os leões: a sua morte constituía a prova da inocência dos dois jovens. Chegámos a Magaia ao pôr-do-sol e após um breve encontro com o líder local, como um dos jovens ali presentes mostrou conhecer o local do ataque, convidei-o para nos acompanhar ao sítio.

Andámos dois quilómetros e quando chegámos a uma machamba o meu pisteiro descobriu, por entre os cajueiros, duzentos metros à nossa esquerda, o brilho aceso e inconfundível de um leão. Enquanto me aproximava cauteloso na tentativa de definir melhor os seus contornos, olhei para a frente e, iluminado pelos faróis do carro, vejo o macho passar uns setenta metros à nossa frente com o passo largo a tentar escapar-se pelo mato. Instintivamente peguei na mão do meu pisteiro, apontei o foco de luz na direcção do leão, engatilhei a arma e antes de o carro parar completamente, disparei instintivamente.

Senti o embate da bala a atingi-lo. O leão deu um salto, rodopiou a rosnar, e antes de eu conseguir atingi-lo novamente desapareceu nas trevas da noite. Tive segundos para definir o lance, mas fiquei convencido ter seguido a melhor opção, apesar de não ter conseguido alvejá-lo mortalmente. Pelo movimento do animal
para se escapulir na mata e pelo som do embate de a bala, fiquei convencido de que atrasei ligeiramente o tiro e em vez da bala o atingir mortalmente no coração ou nos pulmões, perfurou-lhe o abdómen.

Pouco mais podia fazer naquele momento, apenas acreditar que no dia seguinte voltaria ao local para encontrar o leão sem vida. Nos dias seguintes montámos uma perseguição que se revelou infrutífera. Provavelmente o animal ferido refugiara-se numa mata fechada, para depois aos poucos ir perdendo as forças, acabando finalmente por morrer.

Por fim a leoa

Regressámos à aldeia de Magaia. A população estava assustada. A leoa tinha estado a rugir durante toda a noite. Ficámos convencidos de que o macho tinha morrido e que a fêmea chamava por ele. As fêmeas são sempre mais fiéis. Em princípio só abandonaria o seu companheiro quando tivesse a de certeza que este
estava morto. O que só aconteceria apenas depois de começar a apodrecer e a cheirar mal.

Começámos a estudar a maneira de a caçarmos. Fomos ao ponto de água mais próximo para ver se tinha ido beber. Confirmámos as suspeitas. Encontramos-lhe o rasto, tinha estado a beber durante a noite, depois subiu o declive, caminhou algumas dezenas de metros na picada e entrou no mato. Continuávamos com o problema de não termos carne para o isco, por isso optámos por fazer uma plataforma numa árvore para lhe fazer uma espera. Subimos para o esconderijo no topo da árvore por volta das quatro da tarde. Assim que o sol se pôs, a leoa começou a rugir. Rugiu algumas vezes durante a noite até que o dia a silenciou.

A leoa não veio beber. Optámos por comprar um cabrito, mas desta vez não o matámos.

Entretanto, recebi uma chamada de emergência numa linha sísmica e tive que ficar lá durante a noite a guarnecer uns colegas. Na machamba onde tinha atirado ao macho havia uma cabana abandonada. O António, um dos meus companheiros de equipa, amarrou um cabrito a uns setenta metros e esperou. A hora do leão passou e nada aconteceu. O cansaço tomou conta do António e este optou por voltar com o cabrito mais que um quilómetro a pé pela picada.

O cabrito parece que tinha conhecimento do plano, e tentou vingar-se. Volta e meia berrava. O António tentou, várias vezes, acalmá-lo, mas o animal berrava cada vez mais. Acho que foi a única vez que ele não quis que a leoa aparecesse.

Na noite seguinte, a decisão tinha sido “farolinar” toda a noite. Assim que o sol se pôs o farolim começou a varrer a floresta. Não tardou muito a aparecer o que afincadamente procurávamos. Ali estava ela, no meio da picada, decidida a pedir-nos contas. O António, calmamente, meteu a cruz negra do óculo na cabeça da
leoa. Comprimiu o gatilho… e a leoa caiu fulminada.

Finalmente, a paz e a tranquilidade haviam regressado a Palma. Volvidas, cinco semanas, ainda não havia registo de qualquer ataque de felinos. Ficámos com a certeza de que não havíamos matado dois leões, mas sim dois criminosos que tinham vitimado mais de 26 compatriotas.

Recordávamos com alegria o dia em que o administrador nos pediu para darmos uma volta à cidade com o leão na caixa do nosso carro de caça. Era importante que as pessoas compreendessem que tínhamos matado um leão animal e não um leão de feitiço. No movimento barulhento, no meio da excitação do povo que perseguia o carro, surgiu uma mulher cega amparada por um homem que a ajudava a caminhar. Queria tocar no leão! Apalpou-o como quem certifica a autenticidade de um produto. Sentimos gratidão no reflexo baço dos seus olhos.

Quando a noite chegou, na minha consciência, tinha uma certeza: os dois jovens acusados de se terem transformado em leões foram soltos. Depois disso imaginei quantas pessoas mais iriam matar aqueles “leões”! Desde que cheguei a Palma foi a noite em que o meu sono descansou melhor.

Uma semana mais tarde, voltámos à aldeia de Magaia. As pessoas tinham começado a circular no mato. O ciclo estava fechado. O chefe da aldeia informou-nos de que tinha sido encontrado morto um leão a cerca de dez quilómetros da aldeia. Não quisemos atravessar aquela ponte de novo. Preferimos acreditar que se transformou em espírito.

 

 

 

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