Estou na cidade de Tete, em 2010, e o calor que faz é por demais redundante, por demais causticante, que o melhor é não evocá-lo. Quanto mais se reclama, ele mais perfura – como broca – a medula, e deixa-nos sem qualquer alternativa. Mesmo assim, debaixo desta adversidade, as pessoas não vacilam. Erguem-se contra o próprio sol, levando sobre os seus ombros todo o peso das gazuas de que necessitam para fender o chão da vida, a fim de fazer brotar a água que vai molhar a garganta seca.
Caminham erectos desde que o sol se levanta das pedras agrestes, abrem o peito largo endurecido pelas batalhas diárias, e entregam-se com sacrifício ao desafio de vencer numa vida que está permanentemente contra a sua dignidade. Nos passeios da urbe, estendem-se homens e mulheres cegos que não fazem mais nada senão esticar a desgraçada mão pedinte, desprezada pela maioria que passa por eles.
Outros ainda depositam uma moeda que nos vai lembrar o rico que atira os restos da faustosa comida para os canis, onde Lázaro a vai disputar com os cães. São pessoas que pedem esmola com uma mão e, com a outra, agitam o chocalho que entra em consonância com vozes arrepiantes, sobretudo pela melancolia das rolas que elas aspergem.
O palco são os passeios quentes por demais, mas eles estão ali usando o cântico para pedir, numa acção injusta porque um artista não esmola. Quem canta, ainda por cima daquela forma profunda, não pode ser tratado a nível do chão, ou do colector para onde se atiram as sobras. Mas ninguém dá importância a estas actuações, ninguém dá valor a estas parábolas. Pior do que isso, ninguém percebe as mensagens que os sinais dos cegos transmitem.
É a primeira vez que vejo tantos cegos de uma só vez, cantando nos passeios à espera de uma recompensa. É uma imagem de beleza chocante que vai para além das minhas capacidades de percepção. É o outro lado da vida, sempre inesperada, por isso não me surpreendo de todo, como nunca me vai surpreender a própria morte. E aqueles que dizem que o fulano morreu inesperadamente, então, ignoram que a vida é inesperada.
O sol é implacável em Tete, mas não demove aquelas almas que lutam pela vida incessantementee não dissuade também a minha vontade de ver de perto esta mulher – entre muitos homens e mulheres – que canta com sonoridade distinta. Canta e abana a cabeça cujo rosto está ostensivamente virado para o sol. É uma posição penosa, porém ela mantém-se inabalável. Chama a atenção de todos os que não resistem à sedução espiritual, e outros ainda, muitos, depositam moedas e notas nas suas mãos que funcionam como uma mola de impulsão para o seu empreendimento.
Eu também sou impelido a chegar mais perto, sem me importar com a canícula. O cântico é mais forte que o sol. Por isso todos chegam ali, para serem aquecidos como as peles dos batuques esticadas nas labaredas do fogo. Tenho uma nota de vinte meticais na mão, e também quero colocá-la na mão desta mulher que nunca tinha visto em lugar nenhum.
Agora parece estar a olhar para mim com aqueles olhos grandes que não vêem nada. Estremeço no meu interior, entretanto não paro de avançar. Vou devagar olhando também para os olhos dela que não param de me flagelar.
– A makutxemeratani (qual é o teu nome)? Falo um pouco em nyungwe e, quando ela me perguntou o nome, senti uma catarse no meu peito. Coloquei a minha mão – segurando o dinheiro – sobre a dela. E ela apertou-me e sorriu e disse: Tatenda (obrigada). Fiquei a saber depois que se chama Chifunde.
Que nome tão lindo!