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Catembe: o mito faz parte do passado

Catembe: o mito faz parte do passado

Do outro lado do rio ou do mar – segundo escreve o pensador – existe sempre um mito. Catembe veste esse mito, muito embora já ninguém o sinta e muito menos se acocore diante dele. É que, esta parcela de terra, que fica do outro da lado da baía de Maputo, está entranhada por outras almas, que ali se instalaram pelos mais diversos interesses. Catembe também é um entreposto, que vai dar passagem às pessoas que demandam Catuane, Matutuine e Ponta do Ouro.

Outros, passando por ali várias vezes, acabam ficando. Já não existe – porque não existirá onde existe um entreposto – a calmia daquele tempo. Há invasão de pessoas vindas de quase todo o país. Falam-se quase todas as línguas de Moçambique. O turismo, também, instala-se cada vez com maior ferocidade. As pessoas buscam terrenos para construir, tornando o lugar cada vez mais pequeno. Vende-se e compra-se de tudo no mercado informal. O xindindindi – variante do ronga – ouve-se cada vez menos, ou cada vez mais longe.

A força dos feiticeiros daquela zona parece enfraquecer e as pessoas falam cada vez menos deles. É a Catembe de hoje que ainda mantém no seu ventre os descendentes dos goeses que dali nunca mais vão sair.

Porque me buscas longe, nos espaços filho meu, se eu vivo ao alcance dos teus braços? Aljustrel, Junho de 1935 – poeta goês.

Quando você chega a Catembe e pergunta pelo Diogo, toda a gente o conhece. Se calhar seja melhor começar por lá, para com ele conversar e sentir uma parte do pulsar desta terra que de mítico já não tem muito.

O seu restaurante é uma casa de pasto bastante conhecida pela maioria dos maputenses que frequentam aquela estância. Agora também por aqueles que, ouvindo falar da Catembe e do Diogo, vão para lá e levam memórias, depois de degustarem um bom camarão. Segundo Diogo, Samora Machel já passou por ali. Tomou a sua última refeição antes de partir rumo aos caminhos que o levariam, a si e aos seus compatriotas, à liberdade. Catembe também é um retiro. No Verão toda a gente que ir para lá. onde este homem, de 65 anos, os recebe afavelmente.

Sangue goês

Diogo nunca saiu da Catembe. É filho de um goês que apareceu por lá levado pelo mar e pela força da aventura. Era um pescador e quando, ali chegou, ficou deslumbrado pela generosidade do mar e das pessoas. Atirou a âncora à água e nunca mais abandonou a Catembe. Nasceu um filho que até hoje está lá: Diogo, com 65 anos.

Este homem está ligado àquela parte de Maputo e às suas gentes, que não se pode falar da Catembe sem se evocar o seu nome. Mesmo enfiado na pele da sua idade. Mantém uma jovialidade de fazer inveja. No tempo da Um dos locais outrora emblemáticos da Catembe é uma casa de pasto que se chamava Jangada.

Era ali onde Chico António, em noites memoráveis, concentrava, quase todos os fins-de-semana, os seus fãs. Chico cantava e tocava, como sempre o fez: com amor. A jangada pegou fogo e ardeu, ficando neste momento apenas os escombros. juventude, segundo as suas próprias palavras, carregava dois sacos de cinquenta quilos ao mesmo tempo. Jogou muita porrada em “luta livre”. E, olhando-se para ele, vamos sentir facilmente a presença de um homem em constante exercício físico.

Perguntámos ao nosso interlocutor se a Catembe ainda mantém aqueles mitos antigos em que se falava de feiticeiros muito temidos naquela zona. “Isso já está a desaparecer com o tempo. Hoje fala-se muito pouco, também porque a juventude que hoje nasce, tem outras tendências. Os jovens que nascem aqui hoje e sejam filhos dos mandindindi, quando estão na idade de trabalhar, a primeira coisa que fazem é emigrar para outros lugares e, sendo assim, os usos e costumes desta terra estão a desaparecer”.

Sobre a própria língua, Diogo disse-nos também que cada vez se ouve pouco. “Se você quiser ouvir xindindindi vai para Catuane ou Matutuine”. Na verdade, prestando-se atenção às conversas que se tecem nas ruas ou nas casas de pasto, de xindindindi não ouviremos nada, ou quase nada.

Mas este homem não se esqueceu de uma história que com ele aconteceu ainda no tempo da juventude: “Nós vínhamos de Murrungulo e, de repente, o nosso barco ficou preso, sem mais nem menos, no meio do canal. Fizemos consultas, onde ficámos a saber que devíamos ter oferecido algum peixe da nossa faina à população de Murrungulo. Assim, tivemos que atirar alguns tambores de água para o mar e algum peixe também. Foi quando os espíritos nos deixaram passar”.

Xindindindi em queda livre

João Niquice, residente na Catembe há cerca de dez anos e a trabalhar actualmente na cidade de Maputo, confidenciou-nos – a propósito do desaparecimento do xindindindi – que a perca desse valor é bastante normal, na medida em que ninguém está a substituir os velhos.

“Os jovens que nascem aqui estão todos a sair à procura de melhores condições de vida e, em contrapartida, há uma demanda muito grande de pessoas que vêm para aqui à busca de lugar para construir e fazer algum negócio. A vida é assim, dá muitas voltas”. Niquice disse-nos ainda que esse factor – a perca de uma parte da vida para ganhar outra – não vai espantar de todo, porque a globalização também é isto.

“Todo o país está aqui representado, criando um convívio que só os moçambicanos conseguem manter. Voltando ainda ao nosso “guia”, o Diogo, dele ficámos a saber que existe muita agressividade pesqueira. “Agora há mais pescadores do que naquele tempo, isso torna o trabalho mais difícil. Mesmo com a agressividade do turismo, as casas de pasto aqui existentes aguentam-se a muito custo.

Apesar de tudo nós nunca fechámos. Não precisamos de reclames porque somos muito conhecidos já desde a década de ´50”. A uma pergunta nossa, João Niquice revelou que o facto de haver um paradoxo entre os jovens que saem à procura de melhores condições e aqueles que vão a Catembe à busca de uma oportunidade, ele foi peremptório: “Quem de conviver com as mesmas coisas. Isto é normal. Existem africanos que saem daqui para a Europa e europeus que saem da Europa para aqui”.

A comunidade goesa residente em Moçambique não pode estar, de forma alguma, dissociada do desenvolvimento histórico-cultural do nosso país. Da mesma forma como compatriotas nossos foram desterrados para destinos longínquos, no tempo da escravatura, existem goeses que também vieram para no nosso país como castigo. Outros chegaram como aventureiros, transportados em barcos de pesca, só que, chegados aqui, nunca mais quiseram largar a nossa terra.

Prosseguiram as suas vidas neste magnífico espaço geográfico e hoje, provavelmente, estão aqui para sempre. Nasceram aqui os seus filhos. Os homens que não tinham mulheres voltaram temporariamente a Goa para casar e trazer as suas esposas, para com elas continuar a procriação e manter a cultura e a tradição do seu país.

Os goeses aqui em Moçambique espalhamse por Maputo, Catembe, Beira, Quelimane, ilhas de Moçambique e Ibo. A sua língua – o concanin – ainda subsiste. Na Catembe ainda se pode ouvi-la quando estão entre eles. Diogo é o símbolo deles ali. A presença goesa em Moçambique remonta desde os princípios do século XVIII.

E desde então gerações e gerações têm vindo a trabalhar em Moçambique, principalmente nas cidades da então Lourenço Marques (hoje Maputo), da Catembe, da Beira, Quelimane, ilhas de Moçambique e Ibo, onde também se fundiram as culturas europeia, asiática e autóctone. Onde se podem encontrar as maravilhosas mobílias de origem goesa, o tipo de construção habitacional, como relata Júlio Carrilho no seu livro sobre Ibo.

Pureza cultural

Os goeses residentes na Catembe, maioritariamente pescadores, são considerados quase puros culturalmente, por tudo fazerem para preservarem as suas tradições. Aqui ainda se fala concanin – língua de Goa – com muita frequência. Ainda há goeses que saem da Catembe, quando atingem a idade de formarem os seus lares, para Goa, a fim de trazerem de lá uma esposa, que vai preservar os ritos.

Ainda nos dias em que se comemora o Dia de São Pedro, “deus dos goeses” encontraremos um ritual vivo que se caracteriza por uma regata de barcos, uma procissão marítima que vai até ao farol, que fica do lado direito da ponte para quem vai àquela localidade de barco, vindo da cidade de Maputo. Este ritual inclui um circulo à volta desse sinal marítimo, com os barcos unidos por uma amarra, para depois acontecer uma cerimónia em que uma coroa de flores que trazem consigo, é atirada para o mar. Nesse dia e no mesmo local, serão consumidos pequenos petiscos feitos com base em mariscos. E tudo isso vai preservar uma cultura goesa que veio para o nosso país nos princípios do século XIX.

À espera da ponte A infra-estrutura viria resolver um problema que apoquenta sobremaneira os residentes da Catembe. Quase diariamente tem-se registado, nas duas margens, um grande sofrimento por parte dos utentes. Se tem uma viatura que deseja levar para o outro lado, então tem que preparar a resistência dos seus nervos: a paciência. São filas enormes de carros de que se registam junto às pontes, à espera do único ferry-boat em funcionamento.

Porque os outros meios são de diminuta capacidade, podendo transportar apenas passageiros sem os seus meios automóveis. É um drama diário que terminaria com a construção da ponte. Segundo informações, a ponte, a ser construída, virá do cruzamento com a autoestrada para a Matola, na Brigada Montada, e o quartel dos fuzileiros.

O Governo de Moçambique lançou em Novembro de 2008 um convite internacional para a manifestação de intenções para efeitos de concepção e concessão da empreitada da futura ponte de Maputo para a Catembe. Já existem algumas empresas interessadas em abraçar esse projecto e um deles é o Grupo Mota- Engil, a cujo Conselho de Administração preside o ex-dirigente socialista e ex-ministro português, Jorge Coelho, o qual já se encontrou com o presidente Armando Guebeza, com a primeira-ministra, Luísa Dias Diogo, e com o ministro das Obras Públicas e Habitação, Felício Zacarias, como ele próprio deu a conhecer à Imprensa, em momento oportuno.

Sabe-se ainda que não há qualquer projecto relacionado com a ponte para a Catembe, mas o que o Estado moçambicano pretende com o concurso-convite lançado em Novembro de 2008 é encontrar um parceiro a quem o Governo dê referências sobre as ideias gerais que pretende ver concretizadas e receba desse mesmo parceiro um anteprojecto, da concepção da ponte, e uma proposta concreta sobre a engenharia financeira que possa assegurar a execução da obra.

A acontecer esta grande engenharia, será um grande alívio para a Catembe, que não só se ressente deste problema, como das estradas, que constituem um grande “calcanhar de Aquiles”, para aqueles que querem, não só circular dentro da vila, como seguir outros destinos, como Matola, Catuane, Matutuine e Ponta do Ouro. Porém, enquanto a ponte não vem, a vida não pára na Catembe.

Júlio Mossela é um jovem que veio da Zambézia para aquelas terras em 2007. Tem apenas 20 anos de idade e já decidiu que ali, por enquanto, será o seu lugar. “Tenho o meu primo aqui. Ele é que me trouxe para trabalhar com ele na pesca”. Sobre os rendimentos conseguidos na faina marítima, Mossela disse-nos que tem sido difícil trabalhar naquela área, por causa da procura incessante do marisco.

“Mas não podemos parar. A vida é assim mesmo, um dia vamos melhorar a nossa situação”.

Garrafas na praia

A praia da Catembe, um local que outrora fora limpo e aprazível, já não convida tanto. O primeiro sinal de repulsa virá da própria cor das águas, escuras, sobretudo em dias de mau tempo. Depois é o perigo que se corre de se sofrer um corte nos pés porque alguns banhistas irresponsáveis não se preocupam em acondicionar, em lugar seguro, as garrafas de bebidas – particularmente alcoólicas – que vão bebendo e depois as deitam fora aleatoriamente.

Aliás, um dos indivíduos por nós encontrado na orla, afirmou que, naquele mesmo dia, um banhista havia sido evacuado de emergência para o banco de socorros, após ter sofrido um corte num dos pés. Catembe é isto: também uma vila degradada e superlotada. Um mito do passado.

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