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Cândido Coelho, José Magalhães e Lurdes Mutola os esquecidos do século!

Cândido Coelho
- A morte do Becas traz à tona o não reconhecimento destes heróis do desporto

Foi o Estado moçambicano que decidiu, sem que eles tivessem pedido, que Cândido Coelho, José Magalhães e Lurdes Mutola fossem os desportistas moçambicanos do século. Numa cerimónia com pompa e circunstância, nos Paços do Concelho, perante o presidente da Federação Africana de Atletismo, os três receberam troféus que eternizam a distinção. No último 3 de Fevereiro, porém, foram totalmente ignorados.

Poucos dias antes da morte de Cândido Coelho, o Presidente Armando Guebuza distinguia, no dia 3 de Fevereiro, os primeiros cidadãos que por actos de vária índole em prol da sociedade mereceram receber medalhas de heroicidade. “O desporto foi esquecido. Desde logo e porque o próprio Governo já havia classificado José Magalhães, Cândido Coelho e Lurdes Mutola de atletas do século, nomes, à partida, perfilados para receberem distinções. Porque é que não foram lembrados?”

Desporto: uma coisa menor

Mutola, em 20 anos de carreira com uma verdadeira profusão de sucessos, o que teria que fazer mais para fazer parte do leque dos escolhidos a 3 de Fevereiro? José Magalhães, agora quase no anonimato, foi o maior “sprinter” do então espaço português. De Cândido Coelho, há referências q. b. nesta reportagem. Mas foram esquecidos. Ou talvez não. Terá sido esquecido todo o desporto moçambicano, que no pós-Independência só foi lembrado nos momentos dos triunfos. Que não foram poucos.

Porquê?

Ao contrário do que acontece em muitos outros países, em que o estatuto do desportista na sociedade é de cidadão de eleição - acima do de deputado ou embaixador - os nossos desporto e desportistas são considerados uma coisa menor que, ainda por cima, produz suor, coisa que até cheira mal...

 

Cada um por si

Lurdes Mutola “refugiou-se na África do Sul. Felizmente para ela, pouco ou nada monetariamente precisa do Governo. Tem a sua vida organizada, vai apoiando um e outro atleta e… a mais não é obrigada, pelo menos moralmente. José Magalhães tem uma reforma “desactualizada” dos CFM, vivia em extrema dificuldade numa pequena casa no Infulene, até que a sua filha o acolheu na cidade de Nampula. Vive incógnito, quase indigente.

E Cândido Coelho?

Não poderei ser acusado de só ter abordado a situação deste grande desportista após a sua morte, pois as dificuldades por que passou foram retratadas por esta pena por várias vezes. Cândido de Sousa Coelho, como um dos maiores e mais ecléticos atletas que esta pátria “pariu” tinha direito a outro tipo de tratamento e regalias.

Afinal porque se é considerado Atleta do Século?

“Os últimos anos de vida do “Becas” foram penosos, cheios de dificuldades, sem qualquer tipo de apoio institucional, vivendo quase da caridade dos amigos, quando o Estado – tal como faz noutras áreas – deveria dignificar uma figura que ele próprio distinguiu. Mas lavou as mãos.”

Registo das marcas apagados no tempo

Ser recordista “ultramarino” do decatlo (conjunto de 10 provas) é o que está na mente dos mais velhos. Hoje, no nosso país, poucos sabem o que é triatlo, pentatlo e muito menos decatlo. Se não temos praticamente lançadores nem saltadores, seria impensável termos atletas a aventurarem-se no conjunto de dez provas para obter uma pontuação melhor que a dos adversários. De todas as formas, tentámos mas não conseguimos trazer aqui os tempos e pontuações de Cândido Coelho.

Acredito que mais tarde se poderão obter junto da Federação Portuguesa de Atletismo, cujo arquivo não se extingue a cada mudança de Direcção. Na realidade, nem na Federação, nem nos arquivos pessoais dos “mais velhos” foi possível obter as marcas, tempos e recordes de Cândido Coelho. Que nos iriam deixar boquiabertos 40 e tal anos depois, sobretudo se se tiver em conta que, na época, as pistas eram de cinza, as varas de bambu e os “spikes” não tinham nada a ver com os de hoje.

Como treinador

Recordista também no futebol

Possui um registo, até agora imbatível, como treinador de futebol. Qual? Quando, no ano de 1982, o Desportivo de Maputo entrou em campo para realizar o primeiro jogo da segunda volta do “Nacional”, já levava para o campo garrafas de champanhe, em comemoração do título. Para a história ficavam também o recorde de 98 golos, o troféu de melhor marcador, guarda-redes menos batido, etc. Autor da proeza? Cândido Coelho. É que, antes, como que possuído de uma febre, participou em vários cursos de treinador até 1990, destacando- se os estágios em Portugal, tendo como colegas Carlos Queirós, Jesualdo Ferreira e Mirandela da Costa. Depois, foi ao Brasil para um curso da Federação Paulista.

Becas: uma vida sem meio-termo

Ao longo dos seus 64 anos de vida, Cândido Coelho terá feito quase tudo pela medida grande. Nas coisas boas e nas menos boas. Enquanto jovem e atleta, começou pela ginástica. Depois foi para as pistas, “pulverizar” tempos e marcas, saindo de uma corrida de 100 metros para fazer salto à vara e, no mesmo dia, mais uma ou duas provas. Não raras vezes, fazia escapadelas para jogar futebol em Ressano Garcia. Ao longo da semana, tinha tempo para jogar basquetebol, hóquei em patins e futebol de salão. Tudo ao melhor nível.

Craque na Lambada

Fora do desporto, era um bailarino que desafiava os melhores. Um verdadeiro craque na dança Lambada e no Rock. Essa e outras qualidades colocavam-no na “mira” das beldades que o assediavam a todo o momento e que, diga-se, ele não se fazia muito rogado. O Becas teve três casamentos, de que resultaram seis filhos, em épocas bem diferenciadas. Atleta de eleição, treinador e dirigente que acumulava sucessos, a sua vida foi extrema e vigorosamente vivida. Com alguns vícios que terão tido influência na sua saúde: o fumo e o álcool.

Um final penoso

A certa altura da sua vida, porque homem não muito preocupado com bens materiais, o Becas caiu em depressão. E se houve amigos que o apoiaram e compreenderam, outros viraram-lhe as costas. Deixou a actividade desportiva plena e “refugiou-se” numa propriedade na Costa do Sol, sendo visível uma certa mágoa por ter feito tanto pelo País, sem receber nada em troca. Após o seu último casamento, ano passado, a sua saúde já se mostrava débil. Teria que tomar decisões drásticas para recuperar das doenças que lhe estavam a minar a vida. Tudo passava pelo abandono dos vícios já citados. Resistiu até à internação no hospital.

E foi já muito combalido que “aceitou” ser internado, já com o fígado e os pulmões afectados. Permaneceu nos cuidados intensivos duas semanas, registou alguns progressos, mas acabou por falecer numa altura em que familiares e amigos já viam sinais duma recuperação plena. Cândido Coelho nasceu, cresceu e morreu praticando o bem, mas era frontal para quem o importunasse. Nas coisas boas e nas menos boas era um homem sem meios-termos. Por isso, mais que chorar o seu desaparecimento, há que celebrar uma vida em pleno, com muitas mais alegrias que tristezas.

Das pistas para a balalaica

O Benfica de Lisboa contratou-o em 1973, com um salário acima da média e todas as condições para o projectar a um patamar mais alto. Além disso, iria frequentar um curso no Instituto Superior de Educação Física. Porém, apenas durante três meses pôde desfrutar dessas condições, pois de Moçambique veio ordem para regressar ao serviço militar que estava a meio e, porque se encontrava em zona de “cem por cento”, não havia como contornar o problema. Para trás ficava o conforto e, quem sabe, uma carreira que poderia atingir níveis mundiais. Chegando a Niassa e à sua unidade, pouco tempo teve para “sacudir a poeira”, pois deu-se o 25 de Abril. Foi desmobilizado. Após a independência, passou a trabalhar na novel Direcção Nacional dos Desportos, colmatando a saída massiva de quadros portugueses.

Farinha com diesel

A balalaica passou a ocupar o lugar da farda e do fato de treinos.

Graça Machel, então ministra da Educação, enviava-o para as missões mais díspares, no país e no estrangeiro. Foi um dos pilares da primeira Comissão Nacional do Desporto, que integrava Joel Libombo, António Prista, Manuela Soeiro, Humberto Coimbra e Camilo Antão.

 

- Avançávamos para as zonas rurais para fazer formação. Estive vários anos no mato, a comer farinha com “diesel”. Era o que havia. Levávamos a farinha nos sacos, com tambores de “diesel”, que volta e meia se derramava para cima da farinha. Quando íamos jantar, já estávamos habituados à presença do cheiro do “diesel” na comida.

 

Tinha então 25 anos. O Benfica voltou à carga, insistindo que regressasse a Portugal e às pistas, reatando o contrato interrompido. A resposta foi um convicto “não”, pois uma vez o país independente, iria ajudar no desenvolvimento da nova nação.

 

Lurdes Mutola

A dama de Ouro

Em 20 anos de carreira, ganhou o que havia para vencer. Tudo aconteceu de forma rápida na vida de Mutola. No continente, venceu os Jogos Africanos, desfilando de ouro ao peito no Egipto (91) e Harare (95). Bateu o recorde mundial de juniores e conquistou o título de campeã mundial em Estugarda, na Alemanha. Participou nas Olimpíadas de Barcelona e Los Angeles sempre entre as primeiras colocadas mas, o ano de 2000, em Sidney, foi o da consagração pessoal e de glória para Moçambique. Pela primeira vez, a bandeira da “Pérola do Índico” era hasteada na maior competição planetária, provocando lágrimas a toda uma Nação. Lurdes disse adeus à alta competição no mês de Agosto de 2008, nas Olimpíadas de Beijing. Para trás ficou uma carreira ímpar, em que correu o mundo… a correr!

Começo no Chamanculo

Aos 14 anos era uma menina humilde dos subúrbios da capital do país. Usava trancinhas, fazia as lides de casa e frequentava a escola do Bairro de Chamanculo. Começou, então, a manifestar uma tendência pouco comum às raparigas da sua idade: o gosto pelo futebol. Em casa, ensaiava fintas com uma bola de borracha e aos fins-de-semana integrava-se em equipas que jogavam no “Cape-Cape”, um campo ao pé da sua casa. Foi encorajada a integrar uma equipa federada juvenil: o Águia D’Ouro. A potência do seu pé esquerdo e a forma como fintava permitiram-lhe obter sucesso num campeonato masculino. Porém, certo dia, marcou um golo decisivo que originou uma proibição, pois “desgraçava” os rapazes.

Pela mão do poeta Craveirinha abraçou o atletismo e, integrada na selecção, tomou parte, sem grande notoriedade, nos Jogos Olímpicos de Seul. Em Março de 1991, partiu para os Estados Unidos, iniciando uma das mais espantosas carreiras desportivas que o mundo já presenciou. Hoje, longe de viver uma reforma dourada, para além de ter regressado ao futebol, a Menina de Ouro põe em prática projectos de ajuda ao desenvolvimento do seu país, tanto na área desportiva como social, através da Fundação que leva o seu nome.

 

José Magalhães

O “filho do vento”

Em pistas de cinza, nas décadas 60 e 70, dominou por completo as corridas de velocidade, tanto curta como prolongada. Dos 100 aos 400 metros, era “rei e senhor”, vencedor antecipado. No auge da sua carreira, nunca perdeu internamente uma corrida.

A assobiar na estafeta

“Magatsutsa” para os amigos, tinha um fraco especial pelas estafetas, sobretudo a dos 100 metros, sendo o 3.º na recepção do testemunho para daí arrancar e garantir a vitória do “seu” Ferroviário. Porém, quando por atraso dos colegas partisse em desvantagem, era vê-lo a “assobiar”, como que a pedir passagem, já lançado no seu “pique” absolutamente irresistível.

Trabalhador dos CFM sem condições profissionais para o desporto, o velho campo de futebol era o seu local de treino. Mesmo assim, foi recordista de Portugal nos 200 e 400 metros, com as marcas fantásticas de 21.2 e 47.5s respectivamente, em 1967 e1968. Esses tempos permaneceram como recordes, tempos depois de ter abandonado as pistas. Terá sido o primeiro moçambicano a vencer a barreira dos 10 segundos nos 100 metros, sendo considerado, nos anos 90, o mais rápido corredor de todo o chamado império português.

Entre as várias honrarias e distinções de que foi alvo, salienta-se a escolha do seu nome para Atleta do Século no país, a par de Cândido Coelho e Lurdes Mutola. Na inauguração do Estádio Salazar (actualmente Estádio da Machava), foi quem deu a volta de honra no início da cerimónia, tendo tido o privilégio de acender a chama, na Pira Olímpica, sinal de inauguração do maior complexo desportivo feito por Portugal nas suas colónias de então. José Magalhães, que representou inúmeras vezes Moçambique e o império português nas mais variadas competições internacionais de atletismo, apesar de fora das pistas há muito tempo, detém ainda marcas que permanecem “no pódio”… volvidos mais de 40 anos.

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