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As obrigações do Estado no caso MBS

A designação americana de que o empresário moçambicano Momade Bachir Sulemane (MBS) é um barão de drogas visou directamente o indivíduo em causa, que agora está sujeito a medidas administrativas com potencial impacto negativo na sua vida empresarial – o encerramento de agências bancárias no Maputo Shopping Center e as consequências que isso tem nas suas transacções comerciais ja são um enorme fardo.

A designação americana visou directamente MBS, como dissemos, mas acabou também visando, indirectamente, o Estado moçambicano – enquanto subscritor de convenções e protocolos que têm por objectivo combater o tráfico de drogas e práticas associadas como a criminalidade organizada e a lavagem de dinheiro – na medida em que foi feita, implicitamente, a alegação de que o nosso país é usado como um corredor de tráfico de drogas por um cidadão com grande crédito na classe política e governativa moçambicana, financiador de campanhas eleitorais do partido Frelimo e dos seus candidatos ao mais alto cargo do Estado, a Presidência da República.

Em suma, a droga financia o poder político em Moçambique, pôde-se concluir. Por isso, embora não tenha tido uma reacção categórica e definitiva, o Estado moçambicano acusou a dor da dignidade ferida. E teve uma reacção a dois níveis: primeiro, o Governo disse que Bachir tinha uma “ficha limpa” (de acordo com o Ministro do Interior, José Pacheco); segundo, a Procuradoria Geral da República (PGR) anunciou a formação de uma equipa para investigar o caso. No caso do Ministro Pacheco, factos posteriormente relatados pela comunicação social e confirmados pelo advogado Máximo Dias (que representa Bachir) indicam que o cidadão MBS ja havia tido “problemas” com a Polícia em Moçambique e na Suazilândia.

No caso da equipa da PGR, reina nos círculos da magistratura e na opinião pública alguma estupefacção alimentada pela falta de clareza em relação ao objecto e objectivo da formação de tal equipa, questionando-se se ela vai fazer um levantamento a partir do zero ou a PGR está apenas a espera de receber elementos do Governo americano para depois fazer o “aprofundamento” da matéria e só avançando mais objectivamente com um procedimento criminal contra MBS se, obviamente, a vontade política o permitir.

Seja como for – e isto é o mais importante neste momento – os moçambicanos esperam que o Estado use todos os instrumentos legais disponíveis para clarificar este caso, protegendo a sua dignidade colectiva e repeitando o direito internacional que subscreveu, a começar pela Convenção Internacional sobre Tráfico e Consumo Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas e pela Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (também conhecida por Convenção de 2 Palermo). Se o Estado não tomar medidas de investigação concretas, e comunicando à opinião pública sobre o que tem feito, corre o risco de ser considerado conivente com os actos ilícitos imputados ao cidadão Bachir.

Neste momento, o que pesa sobre MBS, do ponto de vista criminal, são alegações bastantes, efectuadas por um Governo que apoia financeiramente o povo moçambicano na sua luta pelo desenvolvimento. O Governo americano não acusou formalmente Bachir de nenhum crime e nem existe sobre ele um mandado de captura. Mas diz ter evidências suficientes para lhe designar barão de droga e aplicar sanções económicas para proteger o seu sistema financeiro – de resto uma postura egocêntrica e que não facilita o combate directo, à luz das convenções internacionais, ao tráfico de drogas. A questão que se coloca agora é a de saber qual é o primeiro passo que o Governo moçambicano deve tomar para clarificar este assunto.

Há duas saídas: a primeira é a PGR começar a investigar sob trevas, baseando-se em pistas que a designação americana deixou no ar ou em pistas que alguma comunicação social tem produzido. Estas duas opções são dependentes de haver: i) vontade política ao mais alto nível; ii) capacidade de trabalho em matérias semelhantes. Mas não é certo que estes elementos existam, pois em casos recentes de alegações e informações de fontes credíveis sobre tráfico de drogas e sobre o envolvimento de moçambicanos em actos de corrupção comprovada no estrangeiro, eles nunca foram accionados. Podemos recordar dois exemplos recentes para sustentar esta afirmação.

O primeiro tem a ver com uma série de reportagens publicadas (no Jornal Zambeze) em 2008 sobre um alegado envolvimento dos proprietários do Grupo Afrim (acaba de abrir um hotel de 5 estrelas na baixa de Maputo, justamente ao lado do Maputo Shopping Centre e também inaugurado pelo Presidente Guebuza) em tráfico de drogas; o segundo tem a ver com a acusação feita pela Serious Fraud Office, do Reino Unido, de que o antigo Director Nacional de Estradas e Pontes de Moçambique, Carlos Fragoso, recebeu subornos da empresa britânica “Mabey and Johnson” em troca de favores para esta firma ganhar contratos de obras públicas no país (Fragoso terá recebido 286 mil libras).

Hoje, ninguém sabe o que é que a Justiça moçambicana fez com estes dois casos. E os informes do Procurador-Geral da República não trazem nenhuma informação sobre os mesmos. O caso de Bachir assume, no entanto, uma maior gravidade em virtude das suas claras ligações ao poder político. Neste sentido, o Governo terá de aceitar uma coisa que fontes americanas em Maputo afirmam: Washington só fornecerá informação concreta sobre as actividades de Bachir se Maputo incluir investigadores americanos numa task force visando aprofundar as investigações, garantindo que as informações não seriam posteriormente viciadas ou manipuladas no sentido de inocentar Bachir de uma acção criminal – se bem que, geralmente, as provas sobre tráfico de narcóticos são duráveis e pouco susceptíveis a manipulação, mesmo depois de partilhas com entidades cooperantes. A constituição dessa task force é enquadrável no direito internacional sobre matéria de narco-tráfico, criminalidade organizada e lavagem de dinheiro.

Em 1996, Moçambique ratificou (pela Resolução n.° 11/96, de 4 de Maio) a Convenção das Nações Unidas sobre o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988, a qual veio reforçar a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 e a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, que ja haviam sido ratificadas pelas Resoluções 7/90, de 18 de Setembro, e 8/90, de 12 de Setembro, respectivamente. Os Estados Unidos da América ratificaram a convenção em 1990. 3 Ao abrigo da Convenção, os governos de Moçambique e dos Estados Unidos da América obrigam-se a prestar-se mutuamente auxílio judiciário nas investigações referentes a infracções cometidas de acordo com o estabelecido do documento, trocando informações e elementos de prova (al. e) do Art. 7 ).

Esta colaboração aplicar-se-ia imediatamente no caso MBS, mas só houvesse um processo judicial em Moçambique contra o empresário. Tanto quanto é do conhecimento da opinião pública, ainda não existe um processo crime contra Bachir e não há clareza em relação ao papel da equipa de investigação que o PGR instaurou, nomeadamente sobre o seu objecto e objectivo de trabalho. Mas também é sabido que o Código do Processo Penal moçambicano não prevê a figura de inquérito judicial e, sendo assim, quando o PGR designa uma equipa para investigar um caso, isso significa automaticamente que ja foi aberto um processo crime contra o visado (e não estamos a falar de um processo civil ou administrativo).

A PGR deve, portanto, clarificar se existe ou não um processo crime contra Bachir, para que a opinião pública deixe de alimentar advinhas sobre qual é o sentido da reacção do Estado moçambicano em relação a esta matéria. Mas, seja como for, para viabilizar uma investigação com vista a clarificar se o seu cidadão MBS é, de facto, narcotraficante – ou o Governo americano inventou uma montanha que pariu um rato, como tentaram convencer os media da corrente dominante – Maputo deve usar outras opções que a Convenção estabelece e deixar de se escudar na inacção sob pretexto de que não existe processo judicial e, portanto, não há lugar a cooperação judicial (dado que até nem existe processo criminal nos EUA contra Bachir).

E a solução dada pela Convenção em referência é o recurso a via diplomática, através da Interpol (Art. 8). A recusa à cooperação diplomática neste contexto deve ser devidamente fundamentada (Art. 16) pela entidade solicitada. Tanto Maputo como Washington podem dar o primeiro passo: Moçambique para se livrar do fardo de ver um dos seus mais proeminentes empresários na lista negra da Casa Branca, situação indesmentivelmente comprometedora para o futuro das ajudas americanas no quadro do combate à pobreza; e os Estados Unidos da América para garantirem que os dados que dizem possuir sobre as actividades de MBS não vão ser esvaziados nesse pântano de ligações promiscuosas entre a política e os negócios em Moçambique – se bem que, como dissemos, esta é uma ideia pouco credível.

É, pois, aqui onde reside a ideia do task force. A sua constituição parece ser a única via que Moçambique tem para apurar a veracidade à volta das acusações contra Bachir. O recurso a via diplomática com vista a cooperar com as entidades americanas numa investigação conjunta para o aprofundamento dos elementos indiciários está previsto nos artigos 35, 21 e 7 das Convenções de 1961, 1971 e 1988, respectivamente. Como dissemos, para além das sanções económicas impostas a Bachir, o Governo americano parece estar inclinado na constituição dessa task force. Neste momento, o Governo moçambicano tem tratado o assunto de forma muito secreta, não dando informação sobre que demarches foram ja tomadas com vista a viabilizar essa cooperação diplomática com os Estados Unidos da América.

Ao abrigo da legislação internacional parece não haver muito campo para Maputo excusar-se de agir. As investigações sobre criminalidade transnacional organizada (Bachir é acusado de ser um dos principais traficantes da África Austral) são bastante dispendiosas e requerem conhecimentos técnicos especializados. Por isso, a Convenção de 1988 inscreveu a possibilidade dos países signatários cooperarem directamente, ou por meio de organismos internacionais ou regionais, de modo a canalizarem apoio aos Estados de trânsito de narcóticos, com destaque para os países em 4 desenvolvimento que o solicitem (n.° 1 Art. 10). Ou seja, Moçambique pode ter apoio técnico e financeiro de outros países e de agências internacionais para investigar o caso.

Por outro lado, a convenção sobre criminalidade organizada prevê no seu artigo 18 (cooperação judiciária) todo um conjunto de actos, entre os quais o fornecimento de informação, elementos de prova e pareceres de peritos; prestar qualquer tipo de assistência compatível com o direito interno do Estado-parte requerido; e os Estados-parte devem prestar qualquer tipo de assistência judiciária possível (no quadro das investigações). Por outro lado, Moçambique não deve ignorar os acordos que tem feito em contextos de cooperação regional, concretamente no quadro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).

Como se sabe, MBS foi acusado pelo Departamento do Tesouro dos EUA de ser um dos principais traficantes de drogas na África Austral, portanto com implicações para os países da SADC. Esta comunidade tem um protocolo relevante sobre a matéria, o Protocolo sobre Combate ao Tráfico Ilícito de Drogas, ratificado por Moçambique através da Resolução n.° 23/98, de 2 de Junho. O protocolo visa proteger a utilização da região como um corredor de droga destinada aos mercados internacionais.

Fazendo uso desse protocolo, o Governo pode solicitar a cooperação dos Estados-membros da SADC no sentido de apurar sobre a existência ou registo de actividades ilícitas do empresário nos seus territórios (al. iii) Art. 2). Em suma, à luz das convenções internacionais, o Governo moçambicano tem poucas margens para se remeter ao silêncio e à inacção neste caso.

Se bem que a designação de Bachir como narcotraficante não afecte ainda as relações diplomáticas entre Maputo e Washington, uma inacção e postura dúbia nos próximos meses pode comprometer a ajuda que os EUA prestam a Moçambique através do Orçamento Geral do Estado e de programas vistosos como o Millenium Challenge Corporation (MCA), que prevê um investimento de mais de 500 milhões de USD em 5 anos.

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